“Talvez o detalhe mais importante fosse a codificação de cada residência por cores”, descreve a reportagem de Vivian Wang, publicada no jornal The New York Times em 25 de maio deste ano. “Verde significava confiável. Amarelo, precisava de atenção. Laranja exigia ‘controle rigoroso’.” Essa é uma das formas usadas pelo Partido Comunista Chinês para manter a população do país sob controle. O gráfico tricolor está fixado na parede de uma delegacia e mapeia os apartamentos de um complexo de prédios localizado em Pequim. Além da classificação por “grau de periculosidade”, há informações como nomes, números de telefone e outros dados sobre os moradores.
Em 28 de maio, Oeste revelou em primeira mão que o Supremo Tribunal Federal (STF) havia aberto um processo de licitação para contratar uma empresa que monitorasse em tempo real o que está sendo publicado sobre a Corte nas redes sociais. Segundo a reportagem de Cristyan Costa, o serviço funcionará 24 horas por dia, sete dias por semana. E os assuntos abordados pelos usuários serão agrupados de três maneiras: positivo, negativo e neutro — assim como as cores que catalogam os apartamentos na capital chinesa. Também de forma similar ao que é feito em Pequim, além da classificação por “grau de periculosidade”, a empresa contratada deverá identificar, entre outras coisas, quem fez a postagem e de qual local ela foi feita.
“O STF solicita no edital que a empresa contratada utilize uma ferramenta específica no trabalho de monitoramento”, descreve uma reportagem da revista Veja publicada em 18 de junho. “Ela precisa ser capaz de ‘identificar públicos, formadores de opinião, discursos adotados, georreferenciamento da origem das postagens, bem como avaliar a influência dos públicos, dos padrões das mensagens e de eventuais ações organizadas na web’.”
Vigilância sem precedentes
Elaborado por um policial local para “lidar com perigos ocultos da sua jurisdição”, o esquema chinês vai ao encontro do que deseja o presidente Xi Jinping. “O Partido Comunista Chinês há muito tempo exerce o aparato de controle mais abrangente do mundo contra ativistas e aqueles que possam expressar descontentamento”, informa a reportagem do New York Times. “Durante a pandemia de coronavírus, a vigilância atingiu uma escala sem precedentes, rastreando virtualmente todos os residentes urbanos em nome da prevenção de infecções.”
Agora está claro que Xi Jinping deseja tornar esse controle permanente e o mais abrangente possível. Estão sendo recrutados voluntários e aposentados que jogam xadrez ao ar livre para serem os olhos e ouvidos do partido nas ruas. No local de trabalho, os empregadores são obrigados a nomear “consultores de segurança” que relatam regularmente à polícia qualquer suspeita. “Está claro que a intrusão acentuada do governo durante a pandemia foi uma aceleração de um projeto de longo prazo”, avisa o NYT.
O direito de censurar
A adoção de um monitoramento em tempo real de quem publica críticas aos ministros nas redes sociais é só mais um passo em direção a um modelo chinês de controle da população, que começou a ser implantado há cinco anos com a instauração pelo Supremo Tribunal Federal do chamado Inquérito das Fake News. Batizado por Marco Aurélio Mello, ex-ministro da Corte, de Inquérito do Fim do Mundo, esse processo deu ao STF o direito não só de censurar o que achar necessário, mas de acusar, investigar, processar e condenar quem bem entender, quando e como quiser.
“Tomei conhecimento da instauração desse inquérito na casa de Luís Roberto Barroso, pelo então presidente do STF, Dias Toffoli”, contou Mello numa entrevista publicada na edição 206 de Oeste, em março deste ano. “Ele me viu e disse: ‘Determinei, mediante portaria, a instauração de um inquérito e designei o relator. Marco Aurélio, sei que Vossa Excelência não vai concordar’. Perceba que Toffoli nem sequer sorteou o caso, mas, sim, escolheu o seu condutor, o ministro Alexandre de Moraes.” Recém-chegado à Corte, o então calouro Moraes ganhou o inquérito de presente, o que era absolutamente incomum no STF.
Segundo Mello, embora a Procuradoria-Geral da República e o Ministério Público tenham pedido o fim do procedimento, não foram atendidos. “As investigações estão ocorrendo há cinco anos, e confesso que não sei com qual finalidade, o que implica ainda um desgaste enorme para o próprio Supremo, por ser a ‘vítima’ que atua como investigador”, diz. “Vejo como algo ruim para o Estado Democrático de Direito.”
O primeiro episódio de censura explícita aconteceu em abril de 2019, quando Moraes determinou que o site O Antagonista e a revista Crusoé retirassem do ar reportagens e notas que citavam o então presidente do STF. Os textos mostravam que o personagem chamado de “Amigo do Amigo de Meu Pai” em e-mails trocados entre executivos da Odebrecht era Dias Toffoli. O caso inaugura também outra prática que se tornou rotineira na Corte: a cobrança de multas milionárias. Para a reportagem da Crusoé, estipulou-se o pagamento de R$ 100 mil por dia caso não tirassem a matéria do ar. Diante da repercussão negativa, os ministros voltaram atrás poucos dias depois.
O ápice da série de arbitrariedades aconteceu em 8 de janeiro de 2023, quando milhares de brasileiros foram presos, acusados de tentar dar um golpe de Estado
Em 16 de fevereiro de 2021, o deputado federal Daniel Silveira foi preso depois de divulgar um vídeo com ofensas e ameaças contra ministros do STF. A ordem de prisão foi expedida por Alexandre de Moraes, que ignorou o artigo 53 da Constituição: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. A perseguição a Silveira desprezou inclusive um indulto presidencial, dado por Jair Bolsonaro em abril de 2022.
Esses são apenas dois exemplos de uma série de outros episódios que incluem a prisão de outros parlamentares, o julgamento pelo STF de gente sem foro privilegiado, a perseguição a empresários que compartilharam emojis num grupo de WhatsApp e a censura a jornalistas e veículos de comunicação. Um dos capítulos mais sórdidos desse filme B foi a proibição da produtora Brasil Paralelo de publicar um documentário sobre o atentado sofrido por Jair Bolsonaro em 2018, às vésperas da eleição.
Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia ponderou que “não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil”. Em seguida, emendou: “Medidas como esta, mesmo em fase de liminar, precisam ser tomadas como algo que pode ser um veneno ou um remédio”. Apesar de reconhecer a inconstitucionalidade da decisão, permitiu a volta da censura “até o dia 30 de outubro de 2022”. A resolução, contudo, permanece em vigor.
O ápice da série de arbitrariedades aconteceu em 8 de janeiro de 2023, quando milhares de brasileiros foram presos, acusados de tentar dar um golpe de Estado. Nenhum portava armas, não havia participação das Forças Armadas ou de grupos políticos. Os crimes cometidos pela grande maioria foi ser contra o presidente eleito e estar na Esplanada dos Ministérios no dia em que o Congresso e outros prédios de órgãos públicos foram invadidos e depredados por grupos de vândalos. Septuagenários, donas de casa, autistas e doentes com câncer em estágio avançado estão entre os “golpistas” altamente perigosos que receberam penas de até 17 anos de cadeia.
Direitos fundamentais
A contratação de uma empresa para monitorar os cidadãos em tempo real é o mais recente capítulo dessa ópera do absurdo. “Uma sociedade está doente quando a sua suprema Corte de Justiça anuncia que vai contratar uma empresa para lhe contar tudo o que está sendo dito ou escrito a seu respeito pelas pessoas a quem cabe proteger”, afirma J.R. Guzzo, no artigo de capa desta edição. “Por que isso, se o brasileiro tem o direito constitucional de dar a sua opinião sobre o STF, ou sobre qualquer outra coisa?”
Para Samantha Meyer, pós-doutora em Direito Constitucional, as primeiras perguntas que se deve fazer nesse caso são: um órgão do Judiciário precisa fiscalizar o que está sendo dito sobre ele? Isso é uma atribuição do STF? “O papel do Supremo é julgar, não monitorar”, afirma. “Não cabe a ele fiscalizar, que é uma função do Ministério Público.”
Segundo o antropólogo Flávio Gordon, colunista de Oeste, esse é “mais um passo no caminho em direção à ditadura, à censura e ao controle completo da população”. “Buscam mecanismos para se punir qualquer tipo de crítica, sempre ancorados em causas virtuosas: ‘combate às fake news‘, ‘desinformação’. Na verdade, tudo não passa da defesa de um projeto de poder.”
Samantha chama a atenção para o custo da operação, orçada em cerca de R$ 350 mil — dinheiro que, de acordo com a advogada, deveria ser investido no exercício da jurisdição, como na celeridade do Judiciário. “Monitoramento de pessoas é o que acontece na China, um regime totalitário, não numa democracia”, afirma. “O Poder Judiciário deve ser imparcial, mas a própria classificação entre o que é positivo, negativo ou neutro já é um juízo de valor.”
O título de um artigo publicado no site do STF afirma que o “Supremo cumpre papel de guardião dos direitos fundamentais e humanos”. Um desses direitos é — ou deveria ser — a liberdade de expressão.
Leia também “Jornalismo suicida”
Pacheco ficará para a história como co-autor da instalação dessa ditadura.
Caminhamos a passos largos para a instalação de uma ditadura totalitária !
Já não tenho esperanças.
Nossas instituições apodreceram nas mãos de pessoas que e julgam acima de tudo e de todos.
Abandonaram a Carta Magna e todo o conjunto de leis que regem a sociedade em defesa de um insano projeto de poder.
Proteger sim, mas monitorar os cidadãos não é atitude de nação democrática.
Estamos entregues ao Grande Irmão, personagem da obra de George Orwell, utilizada em todas as ditaduras mundo afora.
Alguém ainda duvida que estamos em uma ditadura?
Parabéns pela reportagem importante e assustadora. Não sei como vamos sair deste beco em que estão metidos os cidadãos brasileiros.
Olha a falta que um impeachment faz. Esta atual composição do STF é a pior de todas.
Não é a sociedade ue está doente é o STF, através de sua composição encabeçada por pessoas doentes, psicopatas ue sofrem do espectro sádico e tirânico. Ministros covardes ue estão se deleitando em usar o poder para subjugar pessoas humildes e indefesas. Como os serial killer, to mais matam, mais precisam matar para se satisfazer. No caso deles, uanto mais mostram poder e cometem maldades e vinganças, mais uerem cometer.
É por essas que não dá para fingir normalidade no Brasil atual. Não podemos normalizar a corrupção, o sentimento que o crime compensa, afinal este não é o país que queremos deixar para nossos filhos.
Parabéns pela belíssima reportagem ! estamos vivendo há anos uma ditadura !
Um santuário de leprosos foi o que se transformou esse STF. A hermenêutica pendular. Eles não sabem se transforme o Brasil numa Cuba, numa China ou numa Venezuela. Tem um ditado que diz que o Brasil não é pra amador. A diversificação do país é muito grande pra um líder tão analfabeto, e seus comparsas não estão com capacidade pra formar a ditadura por completo
Na forma como o STF vem atuando certamente haverá críticas cada vez mais ácidas. O povo será prisioneiro e os únicos livres serão os ministros daquele tribunal.
STF é uma Instituição ditatorial que faz muito mal ao país.
Excelente matéria, relara todas as atrocidades praticadas pela Corte que deveria proteger a Constituição e os direitos dos cidadãos.
Um vergonha.
E tudo isto tem um único culpado: Rodrigo Pacheco.