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Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro | Foto: Montagem Revista Oeste/Agência Brasil/Reprodução Redes Sociais
Edição 223

Sérgio Cabral: a doce vida de um condenado

Mesmo com condenações que somam mais de 400 anos, o ex-governador do Rio de Janeiro está livre para namorar, sambar e ensaiar a volta à política

anderson scardoelli
Anderson Scardoelli
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Um casal é fotografado num restaurante localizado no terraço de um renomado hotel em Copacabana, zona sul carioca. O homem e a mulher são vistos conversando, se abraçando e se beijando. Em determinado momento, ela confere mensagens no aparelho celular, enquanto ele fuma um cigarro de palha. Registrada na noite de sexta-feira, 15 de março, a cena não seria nada demais, não fosse o personagem envolvido. Trata-se da vida amorosa de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro. Apesar de somar mais de 400 anos de prisão em 23 diferentes ações penais, Cabral está livre para curtir um jantar romântico ao lado de sua nova namorada, a estilista Saliha Istanbuli.

Com extensa ficha criminal, Cabral se viu livre da cadeia graças ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em dezembro de 2022, a Segunda Turma da Corte decidiu que a prisão dele deveria ser revogada. Foram três votos a dois a favor do ex-governador fluminense. O voto de desempate — e que determinou a soltura — foi do ministro Gilmar Mendes.

Ministro Gilmar Mendes, responsável pelo voto de desempate, que determinou a soltura de Sérgio Cabral | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

O Supremo que libera para convívio em sociedade um condenado a mais de 400 anos de reclusão é o mesmo que mantém atrás das grades figuras que fazem o Brasil entrar para a infame lista dos países com presos políticos. Esse é o caso, por exemplo, de Filipe Martins, ex-assessor para Assuntos Internacionais de Jair Bolsonaro, e Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (leia a reportagem de capa desta edição).

Quatro séculos de penas

Diferentemente da dupla “bolsonarista” que nem condenada foi, Cabral responde em liberdade e com direito a acumular vitórias perante a Justiça brasileira. Apesar de ser réu confesso, chegando a admitir que recebia propina desde os primeiros meses de seu governo do Rio de Janeiro, já viu, de uma vez só, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) anular três de suas condenações no âmbito da Lava Jato. Decisão que ocorreu em março, justamente quando a operação completou dez anos de história.

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Fora da cadeia por decisão do STF, Cabral foi beneficiado, em fevereiro de 2023, pelo TRF-2. Na ocasião, o tribunal resolveu revogar a prisão domiciliar. O entendimento foi unânime em favor do ex-governador. Desde então, ele pode — mesmo que com tornozeleira eletrônica — andar livremente pelas ruas, restaurantes e hotéis do país.

Além disso, estão prestes a prescrever outras ações que correm contra o ex-governador na Justiça Eleitoral fluminense. Mesmo com penas que passam de quatro séculos, ele permaneceu detido por apenas seis anos e um mês, de novembro de 2016 a dezembro de 2022. Situação que acaba por incentivar novos casos de corrupção no cenário da política nacional, avaliam especialistas em Direito Penal e Criminal.

Incentivo à corrupção

O procurador de Justiça Roberto Livianu é dos que avaliam que Sérgio Cabral na rua estimula corruptos e malfeitores da administração pública. Livianu é membro do Ministério Público de São Paulo há 32 anos, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac).

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Sérgio Cabral nos tempos em que teve de encarar a prisão | Foto: Reprodução/Agência Brasil

“O efeito é nefasto em relação ao combate à corrupção, quer pela quantidade de anos pelos quais ele foi condenado, quer pela quantidade de processos, quer pelo fato de ser réu confesso”, diz Livianu. Para o presidente do Inac, os casos de corrupção protagonizados por Cabral enquanto autoridade máxima do Poder Executivo do Rio de Janeiro resultaram em inúmeros problemas para a população do Estado. “Foram negados direitos à educação, à saúde. Isso gerou um dano social e profundas consequências. Isso é de extrema gravidade.”

O procurador chama a atenção para o fato de Sérgio Cabral ter sido o último político envolvido em denúncias no âmbito da Lava Jato a deixar a prisão. Livianu ainda destaca que o ex-governador do Rio de Janeiro não caiu na mira da polícia somente por prática de corrupção passiva. Houve uma série de condenações por crimes como lavagem de dinheiro e associação criminosa.

O presidente do Inac alerta ainda para a necessidade de mudar alguns pontos da legislação brasileira ou, se for o caso, o entendimento por parte do STF. Nesse sentido, avisa que o Supremo decidiu pela libertação de Cabral porque passou a imperar a tese de que não se pode prender alguém antes do trânsito em julgado. Livianu enfatiza, contudo, que “a maioria das democracias ocidentais” pune com prisão alguém com condenação no “segundo grau”.

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Sérgio Cabral foi governador do Rio de Janeiro de janeiro de 2007 a abril de 2014 | Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
A certeza da punição

O advogado criminalista Rafael Valentini, sócio do escritório FVF Advogados, é outro a reforçar que o tempo de encarceramento de Cabral se deu por meio de pedidos de prisão preventiva. E que, até agora, não houve nenhuma condenação definitiva, sem chance de recursos. Ciente da sensação de impunidade em casos como esse, Valentini entende que a legislação penal do país é completa. Mas que investimentos em estrutura e equipe poderiam ajudar a aumentar a agilidade dos processos — como, por exemplo, dar uma condenação definitiva a quem, em tese, já deveria estar cumprindo mais de 400 anos de reclusão.

Doutor em Direito Penal, Matheus Falivene tem visão similar à de Valentini. Para ele, o principal problema não é a falta de punição, mas a demora para aplicá-la. “Como os processos acabam sendo excessivamente demorados, há a impressão de que a impunidade impera”, diz. “Em termos criminológicos, a certeza da punição é muito mais efetiva para inibir o cometimento de um crime do que a quantidade de pena.”

Sambando na cara dos brasileiros

Outro fator que ajuda a fortalecer a sensação de impunidade é o estilo de vida que Cabral levava tanto antes quanto depois da prisão. Em setembro de 2009, o então governador liderou uma festança com vinho e uísque em Paris. O pretexto foi comemorar uma honraria concedida pelo governo francês. Tornado público em 2012, o caso ficou conhecido como “Farra dos Guardanapos”, porque parte da comitiva decidiu dançar com os panos amarrados na cabeça. Segundo o portal Terra, a confraternização desfalcou os cofres públicos em cerca de R$ 1,5 milhão.

“Farra dos Guardanapos”, quando parte da comitiva decidiu dançar com os panos amarrados na cabeça | Foto: Reprodução

Depois de se ver livre da prisão, o ex-governador vai além de namorar e fumar cigarro de palha em Copacabana. Em julho do ano passado, a escola de samba União Cruzmaltina, que é ligada à torcida uniformizada do Vasco da Gama e disputa a terceira divisão do Carnaval carioca, anunciou que o samba-enredo de 2024 seria desenvolvido para homenagear Cabral. Diante da repercussão negativa, a agremiação abortou a ideia. Mas deu tempo de o político condenado a mais de 400 anos de detenção sambar — literalmente.

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Para Livianu, a possibilidade de Sérgio Cabral — ou qualquer outra pessoa com condenações por associação criminosa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro — ser tema de samba-enredo é ultrajante para a sociedade. “É um cenário pitoresco”, diz. “Cúmulo do absurdo. Imagine se a moda pega e resolvem homenagear o Marcola e o Fernandinho Beira-Mar? É o fim do mundo.”

Influencer, podcaster e crítico cultural

Sem a homenagem no Carnaval prosperar, Sérgio Cabral não se abateu. Nos últimos meses, ele atua para se fortalecer nas redes sociais. Conta, por exemplo, com perfil ativo no Instagram, onde tem 40 mil seguidores e conta verificada. Na plataforma, ignora suas condenações e rotineiramente promove seus feitos durante os quase oito anos nos quais governou o Rio de Janeiro. Detalhe: com comentários limitados a quem Cabral segue, o espaço se transforma num festival de elogios ao corrupto confesso.

Formado em jornalismo, Sérgio Cabral se dedica a meios alternativos de comunicação. Virou podcaster. Em 13 programas disponíveis no serviço de áudio Spotify, ele faz análises sobre economia, política, assuntos internacionais, e já indicou a produção Machos Alfa, que consta no catálogo da Netflix. Trata-se, segundo Cabral, de “boa dica para quem quer curtir uma série no final de semana”.

Ativo nas redes sociais, chegou a fazer postagens em que aparece se exercitando. No dia 19 de maio, posou em pé e sorridente ao lado dos filhos para uma foto publicada no Instagram. No dia seguinte, surgiu no noticiário abatido e sentado numa cadeira de rodas. Ele estava a caminho da sede fluminense da Justiça Federal para um interrogatório.

O ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, compareceu de cadeira de rodas, no início da tarde desta segunda-feira (20), na Justiça federal, para prestar o seu primeiro depoimento após ter saído da cadeia. 20/05/2024
O ex-governador Sérgio Cabral compareceu de cadeira de rodas para prestar depoimento na Justiça Federal (20/5/2024) | Foto: Carlos Elias Junior/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Em março, o ex-presidiário estreou como colunista do jornal carioca Correio da Manhã. E está presente no canal Papo com Cabral, no YouTube. Na plataforma de vídeos, o ex-governador se propõe a entrevistar figuras que vão de padres a artistas. Em uma das edições do projeto, recebeu Eduardo Tchao, ex-repórter da TV Globo. E ameaçou voltar a atuar ativamente na política. Sem partido desde que se desfiliou do MDB, em 2019, Sérgio Cabral ameaçou se candidatar a deputado federal em 2026.

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Apesar da confiança de Cabral, o advogado Arthur Rollo, especialista em Direito Eleitoral, acredita que não será tão fácil. “Parece que ele ficará longe da vida pública por muitos e muitos anos, diante das condenações colegiadas, embora provisórias, que já recebeu”, afirma Rollo. “Para conseguir ser candidato a deputado federal em 2026, Sérgio Cabral não poderá ter nenhuma condenação.”

Cabral parece discordar. “A Justiça tem sido muito correta”, disse em seu canal no YouTube. Correta para homens como Cabral. Enquanto livra da cadeia um condenado a mais de 400 anos, prende gente como Filipe Martins e Silvinei Vasques.

Leia também “Dez anos de Lava Jato: a corrupção venceu”

7 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Um réu confesso que declarou em depoimento que é viciado em roubar.
    Um ministro do STF que além de libertar o réu confesso, concedeu liberdade ao próprio cunhado, quando deveria ter se declarado impedido.
    Enquanto isso, na sala de torturas temos presos políticos e civis encarcerados sem cometer nenhum crime.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Imagine o que a quadrilha deste cara não roubou efetivamente. Entre 2007 e 2014 não existia povo ativo na internet procurando política como tem hoje. Roubaram demais.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Esperar o quê de um país que tem um STF com a pior composição possível. E com o devido respeito, não é possível que um condenado pela justiça há mais de 400 anos de prisão tenha mais de 40.000 seguidores no Instagram. Isso só mostrar como temos muitos idiotas e imbecis no Brasil.

  4. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    A justiça eleitoral deveria deixar ele se candidatar, se ganhar, descobrimos que o Brasil não tem solução.

    1. Bernardo Rocha Bordeira
      Bernardo Rocha Bordeira

      Puro suco de Brasil. Surreal.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse advogado Rollo é especialista em direito eleitoral em qual país? Cabral difícil de se eleger? Ele não tá vendo Lula não? Esse supremo é uma cachorrada

  6. Brian
    Brian

    Para os brasileiros a notícia confirma que vale a pena ser bandido neste país, desde que você seja comunista. Esquerdopata como o stf.

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