“O soberano é aquele com o poder legal de
comandar em uma situação de emergência.”
(Carl Schmitt, Teologia Política, 1922)
Muita violência política já se cometeu em nome “do povo”, “do Estado”, “da nação” ou “da igualdade”, chegando-se, inclusive, ao paroxismo do genocídio nos regimes totalitários do século 20. Foi recorrendo a bandeiras que, tiradas do contexto, muitos espíritos contemporâneos (sobretudo os adeptos da ideologia vitimista-identitária) poderiam até julgar positivas — o orgulho nacional, a identidade tribal, o anseio por reparação histórica etc. — que os nazistas adquiriram musculatura político-militar para perpetrar o massacre industrial de milhões de pessoas.
Com efeito, em nome da proteção do “Estado” ou do “povo”, nazistas e comunistas aboliram a ordem liberal-burguesa, na qual vigia o rule of law, para instaurar um sistema de lei marcial permanente, em que a razão de Estado se sobrepunha aos controles judiciais. Resta que, como sugeri nos meus dois últimos artigos (“De volta ao Estado dual”, edição 225, e “Um país rumo a um Estado totalitário”, edição 223), o poder político no Brasil de hoje recorre ao mesmo expediente, governando sob uma espécie de lei marcial disfarçada sob o guarda-chuva conceitual da “democracia defensiva”.
Foi sob o conceito de “democracia defensiva” que, já em seu primeiro dia no poder, o regime lulopetista criou a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), sob o comando da Advocacia-Geral da União (AGU). Note-se que o órgão foi criado antes do famigerado 8 de janeiro, o “incêndio do Reichstag” tupiniquim.
A noção de “democracia defensiva” está necessariamente ligada a um estado de exceção. É o que afirmam expressamente os juristas Eduardo Rêgo e Gustavo Justino de Oliveira no artigo “O uso dos instrumentos de democracia defensiva no Brasil hoje”:
“A primeira premissa é que a democracia defensiva somente deve ser aplicada de forma espontânea, isto é, sem esgotamento legislativo, em tempos de exceção. Em tempos de normalidade institucional, não há razão para invocá-la. A verificação sobre a ocorrência ou não do estado de exceção deve ser feita caso a caso e deve contar não apenas com a desconfiança do agente comprometido com a salvaguarda da democracia, mas também com um certo consenso da comunidade político-jurídica.”
O detalhe final é de suma importância. A fim de justificar o emprego de medidas de exceção, foi preciso consolidar “um certo consenso da comunidade político-jurídica” sobre a suposta ameaça contra a qual a “democracia defensiva” deveria se impor. Esse consenso, como todos sabem, diz que Bolsonaro e os bolsonaristas usaram os meios democráticos contra a própria democracia, questionando o nosso processo eleitoral e semeando a desconfiança em relação às nossas instituições. Coincidentemente, os fabricantes desse suposto consenso são também os responsáveis pela missão autoatribuída de instaurar a “democracia defensiva” no país.
Em outras palavras: a “verificação sobre a ocorrência ou não do estado de exceção” é realizada pelos mesmos atores que, a partir da conclusão positiva da verificação — ou seja, da ocorrência do estado de exceção —, passam a dispor de instrumentos excepcionais de repressão política. Eis por que o consenso sobre a “ameaça Bolsonaro” tenha de ser repetido de maneira obsessiva e goebbelsiana.
‘Nenhum dos direitos fundamentais é absoluto’
Um resumo da narrativa justificadora do estado de exceção aparece em matéria publicada no portal Conjur sobre um encontro de “democracia defensiva” do qual fizeram parte autoridades eleitorais e políticas brasileiras (dentre elas o chefe da PNDD, o AGU Jorge “Bessias”) e representantes da Embaixada da Alemanha no Brasil. Lê-se na matéria:
“Para sobreviver às ondas de populismo extremista experimentadas na última década, as democracias liberais consolidadas como o Brasil devem estabelecer mecanismos para evitar que as liberdades e direitos garantidos pela Constituição Federal sejam usados para ameaçar a própria existência do Estado Democrático de Direito. A isso se dá o nome de democracia defensiva.”
Na qualidade de protagonista da “democracia defensiva” à brasileira, Alexandre de Moraes, que antes já justificara os abusos judiciais pela necessidade de “inovar para preservar a democracia”, celebrou a “democracia defensiva” nestes termos:
“Não é possível que a Constituição permita o uso sem limites de determinadas liberdades para que a própria democracia seja rompida. Não há lógica nisso. Não é de hoje que nenhum dos direitos fundamentais é absoluto. Há limites individuais e coletivos no sentido da prevalência do Estado Democrático de Direito.”
A ideia de “democracia defensiva” nasce no meio jurídico alemão do pós-guerra. A PNDD, por exemplo, inspira-se fortemente no Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV), o Serviço Federal para a Proteção da Constituição da Alemanha, criado ao fim da Segunda Guerra com vistas a impedir o eventual ressurgimento de movimentos radicais nos moldes do partido nacional-socialista. O germe da “democracia defensiva” acha-se no conceito correlato de “democracia militante” (streitbare Demokratie), cunhado pelo filósofo e exilado político alemão Karl Loewenstein.
O ‘paradoxo da tolerância’
Em artigo publicado em 1937 na American Political Science Review com o título “Democracia militante e direitos fundamentais”, Loewenstein apontava as fragilidades institucionais da República de Weimar (e das democracias europeias em geral), que haviam permitido a ascensão de Hitler ao poder. Sua ideia, obviamente bem-intencionada, era fundar uma democracia dotada de mecanismos constitucionais robustos para resistir aos autocratas que, valendo-se dos mecanismos institucionais democráticos e do próprio voto popular, adquirissem meios de ação para solapar o mesmo sistema que lhes permitira ascender politicamente. A lógica do autor seria posteriormente consagrada no famoso “paradoxo da tolerância”, de Karl Popper, segundo o qual não se pode ser tolerante com os intolerantes, e que foi citado ipsis litteris por Gilmar Mendes — muito familiarizado com o contexto jurídico germânico — no evento do TSE e da Embaixada da Alemanha.
Redigido no contexto do embate filosófico e existencial contra o nacional-socialismo, o artigo de Loewenstein propunha medidas de defesa da democracia. O problema é que, se essas medidas podem soar justas e razoáveis no tocante aos nazistas, cujo extremismo político-ideológico pode ser aferido objetivamente pelo registro histórico dos crimes contra a humanidade por eles cometidos, o juízo sobre o eventual teor antidemocrático de propostas e movimentos políticos raramente é tão preto no branco, sendo carregado de viés e contaminação ideológica. Adjetivos como “extremista”, “fanático”, “populista”, “antidemocrático” etc. não são termos técnicos ou conceitos jurídicos, mas alcunhas de sentido elástico, necessariamente marcadas por subjetivismo, parcialidade e interesse. Daí ser temerário o acúmulo nas mãos de um mesmo grupo político do poder de definir o conteúdo dessas palavras e o poder simultâneo de dispor de medidas de exceção com base nessa classificação.
O desejo de vingança
O comentário de um magistrado alemão presente no evento com as autoridades eleitorais brasileiras ajuda-nos a perceber como ela tem sido mal aplicada no Brasil, de forma insidiosa, autoritária e — por que não dizer? — antidemocrática. “Os tribunais constitucionais servem melhor à democracia quando não se tornam atores públicos, mas cumprem sua tarefa de guardiões da Constituição, sendo neutros em meio ao embate político de ideias” — disse Josef Christ, juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, na presença dos colegas brasileiros.
Ora, no Brasil, o tribunal constitucional se tornou um ator público onipresente, intrometendo-se em todas as esferas, opinando sobre todos os assuntos, perpetuamente sob holofotes e diante de microfones. Nossos magistrados vivem por aí, nos mais variados palanques políticos, alardeando seu projeto político de “combater a extrema direita populista” ou “derrotar o bolsonarismo”. Daí que, em vez de guardiões da Constituição, os magistrados brasileiros têm sido vistos por muitos como os seus principais violadores.
Fica claro que esse mecanismo não teria como funcionar de forma justa na presença de funcionários públicos em cujo espírito faltam as características pessoais básicas do bom juiz (a temperança, o equilíbrio, a prudência e a busca por isenção) e sobram as do militante político (o açodamento nos juízos, a superficialidade nas avaliações, a adesão aos maneirismos da tribo política de referência e o desejo de vingança).
A ‘lei superior da autoconservação’
Segundo Carl Schmitt, o célebre filósofo do direito nazista, a lei marcial
“é caracterizada por sua autoridade praticamente ilimitada, ou seja, a suspensão de toda a ordem legal prevalecente até então. E pelo fato de que o Estado continua a existir enquanto a ordem legal está inoperante. Essa situação não pode ser rotulada como anarquia ou caos. Uma ordem no sentido jurídico ainda existe, embora não seja uma ordem legal. A existência do Estado tem prioridade sobre a aplicação continuada das normas legais. As decisões do Estado são libertadas das restrições normativas. O Estado se torna absoluto no sentido literal da palavra. Em uma situação de emergência, o Estado suspende o sistema legal existente em resposta à chamada ‘lei superior da autoconservação’.”
A teoria de Schmitt foi integralmente adotada pela Gestapo via Karl Rudolf Werner Best, conselheiro jurídico da polícia política nazista, que escreveu em 1937:
“A tarefa de combater todos os movimentos perigosos para o Estado implica o poder de usar todos os meios necessários, desde que não estejam em conflito com a lei. Mas esses conflitos com a lei já não são mais possíveis, desde que todas as restrições foram removidas após o Decreto de 28 de fevereiro de 1933 [pós-incêndio do Reichstag] e o triunfo da teoria legal e política nacional-socialista.”
Adotando a lógica defensiva e a ideia de lei marcial permanente, mostra Fraenkel, a Gestapo conseguiu transferir domínios inteiros da vida cotidiana da jurisdição do Estado normativo para a do Estado prerrogativo, julgando os casos mais variados e comezinhos, incluídos os referentes ao direito privado, à luz da “lei superior da autoconservação”. Por sorte, toda semelhança com a jurisdição ilimitada hoje requerida pela “democracia defensiva” tupiniquim não passa de mera coincidência…
Leia também “De volta ao Estado dual”
Esta ”justiça” alocada no poder no oásis de Brasília quer holofote, porém, longe do povo. Não a toa são frequentas os convescotes em Lisboa e outros ares distante de terra tupiniquim.
Excelente artigo. Parabéns. Bastante enriquecedor e nos mostra como chegamos aonde chegamos. Só copiamos o que não presta do resto do mundo. O STF de hoje tem a pior composição possível de todas.