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Kamala Harris, vice-presidente dos EUA, no Capitólio, em Washington (7/4/2024) | Foto: Reuters/Tom Brenner
Edição 227

O exército pró-Kamala e anti-Trump

Ao ser indicada por Joe Biden como sua substituta na disputa pela Presidência dos Estados Unidos, Kamala Harris conseguiu piorar o que estava ruim

Branca Nunes
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A nudez do rei foi admitida pelo próprio presidente dos Estados Unidos no domingo, 21 de julho. Com um curto recado publicado na rede social X e a promessa de falar à nação mais tarde sobre o assunto, Joe Biden renunciou à tentativa de vencer pela segunda vez o adversário Donald Trump. A decisão foi precipitada pelo sumiço dos doadores do Partido Democrata e pelas sucessivas demonstrações de que faltavam ao governante de 81 anos condições físicas e mentais para enfrentar mais quatro anos de mandato.

A desistência de Biden tornou-se questão de tempo depois do debate de 28 de junho. Até mesmo veículos de comunicação ostensivamente favoráveis ao democrata, como a CNN e o New York Times, confessaram a preocupação decorrente de lapsos de memória, perda do senso de direção, quedas em público e a expressão de quem não sabe direito onde está nem o que faz ali. 

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Foi uma renúncia inexplicavelmente tardia. Em março, antes mesmo do fracasso de Biden no debate, Matt Welch, editor da revista Reason, escreveu: “Para muitos de nós que observamos de perto o declínio da velhice, a insistência da Casa Branca e da mídia de que não havia nada de errado equivale a uma manipulação descarada”. Para Welch, isso aprofunda a desconfiança no establishment.

Na antecipação do adeus, o presidente em fim de mandato não pareceu hesitante ao anunciar que seria substituído na campanha eleitoral por sua vice, Kamala Harris. Principal nome do partido, Barack Obama não escondeu seu desagrado com a escolha e tentou trocar a indicação imperial feita por Biden por uma votação entre os eleitores do partido. Mas a escolhida soube transformar em fato consumado a candidatura da segunda mulher a disputar a Casa Branca. A primeira, Hillary Clinton, foi derrotada por Trump em 2016.

“A renúncia foi causada principalmente por dois fatores”, conta Ana Paula Henkel, colunista de Oeste e especialista em política americana. “As pesquisas internas do Partido Democrata deixaram claro que ele não tinha mais chance de ganhar de Donald Trump. E, como os grandes doadores colocam dinheiro nas campanhas baseados nesses levantamentos, as contribuições foram radicalmente reduzidas.”

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Kamala Harris, vice-presidente e candidata democrata à Presidência dos EUA | Foto: Lawrence Jackson/Casa Branca

A insistência de Biden em ser candidato torna mais complicada a trajetória de Kamala. Primeiro, eles terão de explicar ao eleitorado por que o partido insistiu durante meses numa mentira: Biden tinha plenas condições de concorrer. Outra pedra no caminho: a escolha pelas primárias será ignorada. A candidata foi escolhida por um único homem. A vice-presidente tentou livrar-se do segundo obstáculo obtendo rapidamente o apoio de importantes membros do Partido Democrata, como Bill e Hillary Clinton, Nancy Pelosi e Gretchen Whitmer.

“Eles arrumaram um problema sério”, acredita Ana Paula. “Nos Estados Unidos não é como no Brasil. Aqui, os donos de uma sigla decidem quem vai disputar a eleição. Lá, você faz eleições em miniatura, as chamadas ‘primárias’, e eleitores registrados no partido escolhem o nome preferido. Nesse processo, já haviam optado por Biden quase 15 milhões de eleitores. É como dizer agora a todos eles: ‘Esqueçam as primárias, a gente decide’.”

US$ 200 milhões

Se as eleições não estivessem tão próximas, Kamala teria de mostrar-se singularmente hábil como política para livrar-se de líderes democratas que já sonham com a Casa Branca. Muitos queriam Gavin Newsom, governador da Califórnia. “Três coisas penderam a favor de Kamala”, explica Ana Paula. “Além de ser mulher e negra, por ser vice de Biden, só ela pode herdar os US$ 200 milhões arrecadados até agora pela campanha do candidato à reeleição.”

Kamala integra a ala radical do partido. Biden, bem mais moderado que sua vice, defendia, por exemplo, mais verbas para as forças policiais. “Kamala é da extrema esquerda democrata, uma espécie de Psol ianque”, afirma Ana Paula. “Ela costuma iniciar reuniões dizendo: ‘Meu nome é Kamala Harris e meus pronomes são she [ela] e her [dela]’.”

Filha de imigrantes indianos e jamaicanos, ela é a primeira vice-presidente negra do país. Os democratas esperam que isso amplie o apoio de eleitores afrodescendentes, latinos e jovens que, embora costumem optar por democratas, não vinham demonstrando o mesmo entusiasmo exibido na campanha de 2020.

Previsivelmente, jornalistas brasileiros a serviço do consórcio no poder se juntaram ao exército pró-Kamala e anti-Trump

Há quatro anos, Ana Paula publicou na edição 34 de Oeste o artigo “Quem é (de verdade) Kamala Harris”. Entre outros episódios biográficos, Ana conta que Kamala engavetou provas contra padres acusados de abuso sexual, exigiu doações para livrar da cadeia bandidos envolvidos numa série de protestos violentos, prendeu cerca de 1,5 mil pessoas por “violações de uso de maconha” e impediu a realização de um teste de DNA que poderia ter inocentado Kevin Cooper, um presidiário no corredor da morte. Fora o resto. 

“O embuste oficial, a partir de agora, é convencer as pessoas de que nunca houve ninguém mais indicado para o cargo de presidente do que Kamala Harris — a quem descrevem como ‘moderada’, ‘pragmática’ e ‘experiente'”, observa J.R. Guzzo, em sua coluna nesta edição. “Em quase quatro anos no cargo, ela não conseguiu formular nenhum pensamento coerente. Fracassou na única tarefa que recebeu — fazer alguma coisa para lidar com a invasão do território do seu país por imigrantes ilegais. Não tem outra proposta visível que não seja a defesa do aborto.”

Czar da fronteira

O problema das fronteiras e dos imigrantes ilegais, aliás, é a maior pedra no sapato do governo Biden — e de Kamala Harris. O presidente encarregou a vice de enfrentar as “causas raiz” que estimulam a diáspora de povos da América Central em direção aos EUA — pobreza, violência e falta de oportunidade para mulheres, por exemplo. Mas Kamala fez o possível para ficar longe da encrenca. 

Será difícil para Kamala explicar por que foram detidos na fronteira, em dezembro de 2023, 250 mil imigrantes ilegais — um recorde histórico. Ou o que permitiu que milhões de vizinhos sem documento entrassem no país durante a gestão de Biden. “Se a fronteira não fosse um caos, Kamala Harris estaria fazendo campanha com esse tema agora”, constata um artigo de Peter Savodnik, editor do site The Free Press.

Segundo Savodnik, diversos veículos de comunicação que até recentemente se referiam a Kamala como “czarina da fronteira” começaram a corrigir com erratas textos que incluíam tal codinome. “A imprensa reescreve a história recente para se adaptar ao ambiente político atual”, afirma o articulista.

Recentemente, Elizabeth Nolan Brown, também editora da Reason, previu esse movimento. “Se Harris se tornar a indicada do partido, a pressa em considerá-la uma santa — na imprensa, nas redes sociais, entre as celebridades — vai aumentar rapidamente.” Tanto por causa de sua identidade quanto pelo desespero causado pela perspectiva de Donald Trump ao cargo de homem mais poderoso do mundo.

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Dilma Rousseff, então presidente do Brasil, durante pronunciamento sobre o processo de impeachment no Palácio do Planalto, em Brasília (7/12/2015) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Uma Dilma que fala inglês

A constante ausência de lógica em seus discursos ou declarações faz com que Kamala seja comparada à ex-presidente Dilma Rousseff. Numa entrevista recente, por exemplo, o jornalista quis saber se Kamala já visitou a fronteira com o México. Como nunca deu as caras por lá, seguiu-se um momento de visível desconforto. Então, ela riu e recorreu a uma informação sem pé nem cabeça: “Mas eu também não fui à Europa”.

Em julho de 2021, Kamala afirmou que os americanos que viviam em áreas rurais teriam dificuldade para tirar xerox de documentos de identidade. Em março de 2022, caiu na gargalhada ao lhe perguntarem se os Estados Unidos receberiam mais imigrantes ucranianos. Uma imensidão de americanos até hoje tenta descobrir o que ela quis dizer com isso. Essas são algumas peças de um vasto acervo de esquisitices.

Misoginia e racismo

Previsivelmente, jornalistas brasileiros a serviço do consórcio no poder se juntaram ao exército pró-Kamala e anti-Trump. “A intensidade dos ataques misóginos e racistas contra Kamala Harris surpreende até os pessimistas observadores da política americana.” O início do artigo publicado nesta semana na Folha dá o tom da nova argumentação que será usada por aqueles que, durante meses, insistiram na ideia de que Joe Biden estava apto a concorrer a um novo mandato. 

Ainda convalescendo da decepção provocada pelo fracasso do atentado contra Donald Trump, jornalistas da velha mídia recuperaram a alegria e o ânimo combatente com a entrada em cena de Kamala. Na primeira aparição, a candidata lembrou que foi procuradora-geral da Califórnia e jurou que foi vitoriosa no combate a autores de crimes semelhantes aos atribuídos ao candidato do Partido Republicano. “Eu conheço o tipo de Donald Trump”, gabou-se Kamala.

Uma veterana da tropa de choque do consórcio garantiu que a vice-presidente é uma grande oradora e tem três vantagens sobre Hillary Clinton: sabe sorrir, é levemente irônica e não tem marido mulherengo. Hillary não tinha tanta autoridade moral para acusar Trump de abusador. Kamala tem.

No dia seguinte, Kamala repetiu o mesmo discurso. Uma jornalista da GloboNews explicou que não fora redundância: é que a candidata já definira a linha de argumentação que vai usar na campanha. “Tem mais”, entusiasmou-se o outro: “Kamala é jovem. O idoso agora é o Trump”. É uma argumentação de alto risco. Biden não teve de renunciar por ter chegado aos 81 anos, mas porque não parece bem do juízo. Mais: o tiroteio etarista pode ricochetear em Lula. O presidente brasileiro tem 78 anos — a mesma idade de Trump, que esbanja energia.

Mais grave ainda: os jornalistas talvez não saibam que a TV em que trabalham foi criada por Roberto Marinho quando tinha 66 anos. Permaneceu no comando até morrer, aos 98. As Organizações Globo eram uma fortaleza liberal-conservadora. Transformaram-se num quartel de estafetas.

Hillary Clinton
Hillary Clinton, primeira mulher a disputar a Casa Branca, derrotada por Trump em 2016 | Foto: Marc Nozell/Flickr

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4 comentários
  1. Carlos Sergio Souza Rose
    Carlos Sergio Souza Rose

    Brilhante artigo. Afiadíssima, Branca Nunes. Parabéns.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Essa Kamala até a cara dela escancara que é uma mala sem alça. Que os Estados Unidos se livre dela.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Eu sei de uma coisa, a política não é uma loucura. Se for pesquisar sobre esses que estão fazendo papel de louco, antes faziam papel de crápulas. Esse Biden mesmo tem imagens dele bolinando crianças em algumas ocasiões

  4. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Excelente. Precisamos de muita informação precisa sobre Kamala, muito discernimento para nos blindarmos da saraivada de confete e serpentina que os jornalistas-militantes vão usar no carnaval da campanha eleitoral. Cabeça feita e estômago forte serão necessários. Haja saco!

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