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Edição 229

As raízes filosóficas e espirituais do wokeísmo

Uma breve recapitulação de alguns temas e símbolos que culminaram nas diversas seitas woke contemporâneas

Flávio Gordon
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Muito se fala hoje em dia no wokeísmo como um movimento religioso, uma espécie de religião civil secular e pós-cristã. Mas, a julgar pelo que tenho acompanhado da literatura pertinente, a associação entre wokeísmo e religião (feita majoritariamente por críticos do primeiro) não tem ido muito além de um uso descuidado da noção de religião, quase sempre tratada, à moda iluminista, como sinônimo de irracionalidade. Assim, ao descrever o movimento woke como uma religião, boa parte de seus críticos (secularistas) não pretende muito mais que o tachar de irracional, o que é deveras decepcionante. Daí que, segundo penso, um tratamento adequado do wokeísmo como religião deveria necessariamente aprofundar-se na antropologia filosófica e na concepção de história subjacentes ao fenômeno, o qual tem raízes profundas na história do movimento revolucionário no Ocidente, esse, sim, abordado por muitos autores, de forma competente, sob a ótica da fenomenologia religiosa.

O que pretendo no artigo de hoje é fazer uma breve recapitulação de alguns temas e símbolos que, tendo surgido no seio dos movimentos milenaristas medievais, atravessado a modernidade revolucionária e os movimentos ideológicos de massa do século 20, culminaram nas diversas seitas do wokeísmo contemporâneo. Em particular, nossa arqueologia das ideias revolucionárias começa no século 12, com o aparecimento da consciência histórica moderna.

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O pioneiro das modernas filosofias da história foi o monge calabrês Joaquim de Fiore (1132-1202), um teólogo e místico, fundador da Ordem de São Giovanni, que desafiou a tradicional concepção agostiniana até então dominante e historicizou (ou imanentizou) a escatologia cristã. Como mostra Eric Voegelin em A Nova Ciência da Política, a ideia de redivinização da ordem política ganhou clara expressão com Fiore, quando o monge aplicou o simbolismo da Santíssima Trindade a uma especulação sobre o curso dos acontecimentos temporais, fazendo do trinitarismo cristão uma verdadeira filosofia da história.

Na interpretação de Joaquim de Fiore, a história da humanidade dividia-se em três períodos sucessivos, correspondentes às três pessoas da Trindade. O primeiro período foi a Idade do Pai. Com o aparecimento de Jesus Cristo, teve início o segundo período, a Idade do Filho, que seria substituído finalmente pelo terceiro período, a Idade do Espírito — um tempo de confraternização universal que duraria até o Juízo Final.

Tratava-se de uma progressão histórica do espírito, sendo que cada fase se fazia representar por um personagem bíblico, com figuras de transição entre elas. A última fase estaria começando precisamente no tempo biográfico de Fiore. O monge calabrês dizia já ser possível visualizar a terceira revelação (além das duas dispensações tradicionais do Antigo e do Novo Testamentos), que consistiria na libertação final do espírito em sua plenitude.

Bíblia Sagrada aberta
Bíblia Sagrada | Foto: Reprodução/Freepik

A filosofia joaquina da história sugeria que, na última era histórica — a Idade do Espírito —, a Igreja não seria mais uma hierarquia clerical mundana, mas uma comunidade monástica de santos que, na esteira de São Bento, estavam destinados a realizar um último esforço para curar um mundo em degeneração. Para Joaquim de Fiore, as três fases históricas sobrepunham-se umas às outras, já que a segunda começava a surgir de dentro da primeira, e a terceira, de dentro da segunda. Essa sobreposição ocorria também no nível do desenvolvimento espiritual.

Assim, desde São Bento, a Igreja futura dos monges já teria surgido em germe de dentro da Igreja dos clérigos. A primeira idade teria sido o tempo dos homens leigos, sob a égide do Pai; a segunda, dos clérigos, sob a égide de Cristo; finalmente, a terceira seria a era da plenitude espiritual dos monges, iluminados pelo Espírito Santo.

Joaquim de Fiore não extraiu qualquer implicação revolucionária de suas ideias. Pode-se dizer que suas intenções eram até conservadoras, isto é, fiéis ao espírito do cristianismo primitivo. Seu propósito era o de dessecularizar a Igreja e restaurar o seu vigor espiritual. No entanto, após a sua morte, monges franciscanos e dominicanos passaram a disputar o título de representantes da “verdadeira Igreja”, seguindo de maneira radical o ascetismo e o espiritualismo do mestre. A doutrina de Fiore passara, na época, a ser chamada de “O Evangelho Eterno”, numa alusão ao uso dessa expressão no Apocalipse de João.

No capítulo sobre Joaquim de Fiore em seu O Sentido da História, o filósofo Karl Löwith cita um interessante comentário do teólogo quaker Rufus Jones sobre a efervescência causada pelo aparecimento da filosofia joaquina:

“As descobertas, visões e profecias de Joaquim sobre uma ‘nova era’ foram um rastilho de pólvora, soando como mágica a seus discípulos e seguidores, que produziram em seu nome um grande estoque de livros incendiários, que circularam amplamente e exerceram um efeito propagador na receptiva mentalidade do período. O clímax do movimento foi alcançado em 1254 com o aparecimento em Paris de um livro intitulado Introdução ao Evangelho Eterno, escrito por um jovem leitor de teologia na Universidade de Paris, chamado Gerard de Borgo San Donnino. O livro anunciava ousadamente que a era do Evangelho Eterno, a dispensação do Espírito Santo, começaria dali a exatos seis anos, ou seja, precisamente em 1260. Donnino declarou que Joaquim já introduzira uma nova fase de vida contemplativa e que os ‘espiritualistas’ seguidores de São Francisco, entre os quais se incluía, seriam os órgãos e intérpretes da nova era. A tempestade que estourou no mundo com a descoberta desse livro […] transbordou para os campos da heresia, trazendo uma onda crescente de sonhos, esperanças e expectativas.”

Gravura do filósofo Joaquim de Fiore | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Os espiritualistas franciscanos consideravam-se os representantes da nova era, cujo clímax seria o tal ano de 1260, quando, segundo criam, o Imperador Frederico II revelar-se-ia como o Anticristo. Vendo em Joaquim de Fiore um novo João Batista, e apresentando São Francisco como o Novus Dux (“novo guia”) da Idade do Espírito, senão mesmo como o “novo Cristo”, os franciscanos inspirados por Fiore se lançaram numa tentativa desesperada de viver uma vida cristã em pobreza e humildade incondicionais, ansiando por transformar a Igreja em uma comunidade de “eleitos” — sem papa, sem hierarquia clerical, sem sacramentos, sem Sagradas Escrituras e sem teologia. O objetivo, em suma, era realizar as leis do Reino de Deus no presente saeculum. Com tudo isso, os seguidores do monge calabrês deram início ao processo, que viria a ser duradouro, de sacrificar a eternidade no altar da história, e que atingiria o seu auge nos séculos 19 e 20.

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De fato, a intenção original de Joaquim de Fiore acabou, com o passar do tempo, sendo virada pelo avesso: ao invés de fortalecer a austeridade de uma vida espiritual contra a mundanização da Igreja, suas ideias terminaram por encorajar a busca por novas realizações históricas e, consequentemente, resultaram numa ressacralização do tempo. Como sugere Voegelin, a escatologia trinitária de Joaquim de Fiore forneceu um agregado de símbolos que têm informado a auto-interpretação das sociedades modernas até os dias de hoje.

O primeiro desses símbolos é evidente, consistindo na concepção da história como uma sucessão de três fases. A periodização humanista e enciclopedista da história em Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna, por exemplo, é uma nítida variação sobre o tema joaquino. Outro exemplo é a célebre teoria dos três estados de evolução do espírito humano (teológico, metafísico e científico-positivo), desenvolvida por pensadores como Turgot e, sobretudo, Comte. Considere-se também a dialética hegeliana, a dialética marxista e, obviamente, o símbolo nacional-socialista do “terceiro reino” (Dritte Reich).

Karl Marx, em 1875 | Foto: Wikimedia Commons

Um outro símbolo importante derivado das especulações joaquinas é o do “líder” da nova era. Promovida por monges franciscanos, a consagração de São Francisco como o Novus Dux foi a sua aplicação mais imediata, sendo mais tarde reforçada por Dante Alighieri em sua especulação sobre o líder de uma nova era espiritual, que restauraria a Igreja Católica. De fato, a ideia de “homens espirituais” ou “homens divinizados” atravessa toda a Idade Média, passando pelos profetas heresiarcas protestantes, como João de Leiden e Thomas Müntzer, pela Revolução Puritana na Inglaterra e seus paracletos, e entrando na Idade Moderna com todas as variações sobre o tema do “Super-Homem” ou “Novo-Homem” — de Rousseau e Robespierre a Comte, Marx, Nietzsche, Lenin, Stalin e Hitler. Como resume Voegelin em A Nova Ciência da Política: “O profeta gnóstico ou, nos estágios posteriores da secularização, o intelectual gnóstico torna-se uma parte integrante da civilização moderna”.

Por último, temos o simbolismo da fraternidade dos eleitos. Vimos como a terceira era concebida por Joaquim de Fiore faria dos homens uma comunidade espiritualizada, redimida diretamente, sem a intermediação da Igreja. Os representantes dessa nova humanidade seriam homens dotados de dons carismáticos que dispensariam a administração dos sacramentos. Ganhando força depois da Reforma, e assumindo sua aparência moderna já no movimento puritano na Inglaterra, essas vanguardas atingiram seu ápice nos movimentos revolucionários do século 20, e subsistem nos dias de hoje sob a forma de grupos (real ou imaginariamente) minoritários e politicamente organizados, a exemplo das diversas facções do movimento woke.

O processo de formação de vanguardas revolucionárias talvez seja, da herança intelectual de Joaquim de Fiore, o elemento mais arraigado e duradouro. Ele guarda correspondência com a postura quase sempre negativa do homem moderno em relação ao passado, concebido como uma longa preparação para o futuro, que o homem moderno acredita piamente representar. Mas, como esse futuro é obviamente indefinido, o processo de eclosão de novas vanguardas é virtualmente ilimitado. Pela própria lógica interna das filosofias da história, nada garante que o representante da nova era de hoje não venha a ser superado pelo representante da nova era de amanhã.

Esse processo de imanentização do escathon altera profundamente a concepção ortodoxa do Juízo Final

Como nota Voegelin, não há nenhuma razão intrínseca para considerarmos o período moderno da história como tendo começado com o Humanismo antes que com a Reforma, ou com o Iluminismo mais do que com o Marxismo. A representação da nova era, singular e diferente de tudo o que veio antes, parece ser uma estrutura inexorável da modernidade, uma lei de ferro cujas origens são gnósticas — o “mundo da luz” do gnosticismo original foi convertido no símbolo joaquino do “terceiro reino”, num processo que poderíamos definir como uma historização da gnose. Nas palavras do filósofo alemão:

“A imanentização do eschaton cristão possibilitou dotar a sociedade em sua existência natural de um significado que o cristianismo negava. E o totalitarismo de nosso tempo deve ser entendido como o ponto final da busca gnóstica por uma teologia civil […]. Os movimentos gnósticos não se contentavam em preencher o vácuo da teologia civil; eles tendiam a abolir o cristianismo. Nas fases iniciais do movimento, o ataque ainda estava disfarçado como “espiritualização” ou “reforma” cristã; nas fases posteriores, com a imanentização mais radical do eschaton, tornou-se abertamente anticristão.”

Esse processo de imanentização do escathon — como o chama Voegelin — altera profundamente a concepção ortodoxa do Juízo Final. Porque se, na tradição bíblica, o Juízo Final sinaliza a passagem do tempo à eternidade, o apocalipse gnóstico-revolucionário é descrito como um momento do tempo histórico, momento singular, sem dúvida, pois considerado o ponto culminante de toda a história passada. Se, na escatologia cristã tradicional, os homens são iguais neste mundo e só serão separados no Além, na escatologia gnóstico-revolucionária, os homens são separados aqui e agora, pois os “eleitos” (ou “ungidos”, como os descreve Thomas Sowell) agem de antemão como juízes da história, em razão de terem vislumbrado, por sobre os ombros do restante da humanidade, a luz que vem de Utopia. Penso ser impossível compreender a cultura contemporânea do cancelamento — uma espécie de puritanismo secularizado — sem levar em conta essa antropologia filosófica específica, com todas as consequências decorrentes nas esferas da moral e da política.

Leia também “A Justiça sob os holofotes”

5 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Corrigindo: Enriquecendo minha existência com a leitura de artigos como este.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente texto. Parabéns. Enriquecendo minha existência com leitura de artigos este.

  3. Almondi Fagundes
    Almondi Fagundes

    Parabéns! Você acredita que essa influência gnóstica tem relação com a Kabala judáica e os ensinamento de Maimônides e na modernidade com o hassidismo lubavítico? Até porque os “marranos” tiveram um influência importante nos governos imperiais do século XVI e XVII. “Ego vox clamantis”.

  4. NOS
    NOS

    Maravilhoso texto! Parabéns e obrigado.

  5. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Muito bom, apesar da dificuldade de nós mortais destrinchar a filosofia pura. Pra se refletir

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