Muito se fala hoje em dia no wokeísmo como um movimento religioso, uma espécie de religião civil secular e pós-cristã. Mas, a julgar pelo que tenho acompanhado da literatura pertinente, a associação entre wokeísmo e religião (feita majoritariamente por críticos do primeiro) não tem ido muito além de um uso descuidado da noção de religião, quase sempre tratada, à moda iluminista, como sinônimo de irracionalidade. Assim, ao descrever o movimento woke como uma religião, boa parte de seus críticos (secularistas) não pretende muito mais que o tachar de irracional, o que é deveras decepcionante. Daí que, segundo penso, um tratamento adequado do wokeísmo como religião deveria necessariamente aprofundar-se na antropologia filosófica e na concepção de história subjacentes ao fenômeno, o qual tem raízes profundas na história do movimento revolucionário no Ocidente, esse, sim, abordado por muitos autores, de forma competente, sob a ótica da fenomenologia religiosa.
O que pretendo no artigo de hoje é fazer uma breve recapitulação de alguns temas e símbolos que, tendo surgido no seio dos movimentos milenaristas medievais, atravessado a modernidade revolucionária e os movimentos ideológicos de massa do século 20, culminaram nas diversas seitas do wokeísmo contemporâneo. Em particular, nossa arqueologia das ideias revolucionárias começa no século 12, com o aparecimento da consciência histórica moderna.
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O pioneiro das modernas filosofias da história foi o monge calabrês Joaquim de Fiore (1132-1202), um teólogo e místico, fundador da Ordem de São Giovanni, que desafiou a tradicional concepção agostiniana até então dominante e historicizou (ou imanentizou) a escatologia cristã. Como mostra Eric Voegelin em A Nova Ciência da Política, a ideia de redivinização da ordem política ganhou clara expressão com Fiore, quando o monge aplicou o simbolismo da Santíssima Trindade a uma especulação sobre o curso dos acontecimentos temporais, fazendo do trinitarismo cristão uma verdadeira filosofia da história.
Na interpretação de Joaquim de Fiore, a história da humanidade dividia-se em três períodos sucessivos, correspondentes às três pessoas da Trindade. O primeiro período foi a Idade do Pai. Com o aparecimento de Jesus Cristo, teve início o segundo período, a Idade do Filho, que seria substituído finalmente pelo terceiro período, a Idade do Espírito — um tempo de confraternização universal que duraria até o Juízo Final.
Tratava-se de uma progressão histórica do espírito, sendo que cada fase se fazia representar por um personagem bíblico, com figuras de transição entre elas. A última fase estaria começando precisamente no tempo biográfico de Fiore. O monge calabrês dizia já ser possível visualizar a terceira revelação (além das duas dispensações tradicionais do Antigo e do Novo Testamentos), que consistiria na libertação final do espírito em sua plenitude.
A filosofia joaquina da história sugeria que, na última era histórica — a Idade do Espírito —, a Igreja não seria mais uma hierarquia clerical mundana, mas uma comunidade monástica de santos que, na esteira de São Bento, estavam destinados a realizar um último esforço para curar um mundo em degeneração. Para Joaquim de Fiore, as três fases históricas sobrepunham-se umas às outras, já que a segunda começava a surgir de dentro da primeira, e a terceira, de dentro da segunda. Essa sobreposição ocorria também no nível do desenvolvimento espiritual.
Assim, desde São Bento, a Igreja futura dos monges já teria surgido em germe de dentro da Igreja dos clérigos. A primeira idade teria sido o tempo dos homens leigos, sob a égide do Pai; a segunda, dos clérigos, sob a égide de Cristo; finalmente, a terceira seria a era da plenitude espiritual dos monges, iluminados pelo Espírito Santo.
Joaquim de Fiore não extraiu qualquer implicação revolucionária de suas ideias. Pode-se dizer que suas intenções eram até conservadoras, isto é, fiéis ao espírito do cristianismo primitivo. Seu propósito era o de dessecularizar a Igreja e restaurar o seu vigor espiritual. No entanto, após a sua morte, monges franciscanos e dominicanos passaram a disputar o título de representantes da “verdadeira Igreja”, seguindo de maneira radical o ascetismo e o espiritualismo do mestre. A doutrina de Fiore passara, na época, a ser chamada de “O Evangelho Eterno”, numa alusão ao uso dessa expressão no Apocalipse de João.
No capítulo sobre Joaquim de Fiore em seu O Sentido da História, o filósofo Karl Löwith cita um interessante comentário do teólogo quaker Rufus Jones sobre a efervescência causada pelo aparecimento da filosofia joaquina:
“As descobertas, visões e profecias de Joaquim sobre uma ‘nova era’ foram um rastilho de pólvora, soando como mágica a seus discípulos e seguidores, que produziram em seu nome um grande estoque de livros incendiários, que circularam amplamente e exerceram um efeito propagador na receptiva mentalidade do período. O clímax do movimento foi alcançado em 1254 com o aparecimento em Paris de um livro intitulado Introdução ao Evangelho Eterno, escrito por um jovem leitor de teologia na Universidade de Paris, chamado Gerard de Borgo San Donnino. O livro anunciava ousadamente que a era do Evangelho Eterno, a dispensação do Espírito Santo, começaria dali a exatos seis anos, ou seja, precisamente em 1260. Donnino declarou que Joaquim já introduzira uma nova fase de vida contemplativa e que os ‘espiritualistas’ seguidores de São Francisco, entre os quais se incluía, seriam os órgãos e intérpretes da nova era. A tempestade que estourou no mundo com a descoberta desse livro […] transbordou para os campos da heresia, trazendo uma onda crescente de sonhos, esperanças e expectativas.”
Os espiritualistas franciscanos consideravam-se os representantes da nova era, cujo clímax seria o tal ano de 1260, quando, segundo criam, o Imperador Frederico II revelar-se-ia como o Anticristo. Vendo em Joaquim de Fiore um novo João Batista, e apresentando São Francisco como o Novus Dux (“novo guia”) da Idade do Espírito, senão mesmo como o “novo Cristo”, os franciscanos inspirados por Fiore se lançaram numa tentativa desesperada de viver uma vida cristã em pobreza e humildade incondicionais, ansiando por transformar a Igreja em uma comunidade de “eleitos” — sem papa, sem hierarquia clerical, sem sacramentos, sem Sagradas Escrituras e sem teologia. O objetivo, em suma, era realizar as leis do Reino de Deus no presente saeculum. Com tudo isso, os seguidores do monge calabrês deram início ao processo, que viria a ser duradouro, de sacrificar a eternidade no altar da história, e que atingiria o seu auge nos séculos 19 e 20.
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De fato, a intenção original de Joaquim de Fiore acabou, com o passar do tempo, sendo virada pelo avesso: ao invés de fortalecer a austeridade de uma vida espiritual contra a mundanização da Igreja, suas ideias terminaram por encorajar a busca por novas realizações históricas e, consequentemente, resultaram numa ressacralização do tempo. Como sugere Voegelin, a escatologia trinitária de Joaquim de Fiore forneceu um agregado de símbolos que têm informado a auto-interpretação das sociedades modernas até os dias de hoje.
O primeiro desses símbolos é evidente, consistindo na concepção da história como uma sucessão de três fases. A periodização humanista e enciclopedista da história em Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna, por exemplo, é uma nítida variação sobre o tema joaquino. Outro exemplo é a célebre teoria dos três estados de evolução do espírito humano (teológico, metafísico e científico-positivo), desenvolvida por pensadores como Turgot e, sobretudo, Comte. Considere-se também a dialética hegeliana, a dialética marxista e, obviamente, o símbolo nacional-socialista do “terceiro reino” (Dritte Reich).
Um outro símbolo importante derivado das especulações joaquinas é o do “líder” da nova era. Promovida por monges franciscanos, a consagração de São Francisco como o Novus Dux foi a sua aplicação mais imediata, sendo mais tarde reforçada por Dante Alighieri em sua especulação sobre o líder de uma nova era espiritual, que restauraria a Igreja Católica. De fato, a ideia de “homens espirituais” ou “homens divinizados” atravessa toda a Idade Média, passando pelos profetas heresiarcas protestantes, como João de Leiden e Thomas Müntzer, pela Revolução Puritana na Inglaterra e seus paracletos, e entrando na Idade Moderna com todas as variações sobre o tema do “Super-Homem” ou “Novo-Homem” — de Rousseau e Robespierre a Comte, Marx, Nietzsche, Lenin, Stalin e Hitler. Como resume Voegelin em A Nova Ciência da Política: “O profeta gnóstico ou, nos estágios posteriores da secularização, o intelectual gnóstico torna-se uma parte integrante da civilização moderna”.
Por último, temos o simbolismo da fraternidade dos eleitos. Vimos como a terceira era concebida por Joaquim de Fiore faria dos homens uma comunidade espiritualizada, redimida diretamente, sem a intermediação da Igreja. Os representantes dessa nova humanidade seriam homens dotados de dons carismáticos que dispensariam a administração dos sacramentos. Ganhando força depois da Reforma, e assumindo sua aparência moderna já no movimento puritano na Inglaterra, essas vanguardas atingiram seu ápice nos movimentos revolucionários do século 20, e subsistem nos dias de hoje sob a forma de grupos (real ou imaginariamente) minoritários e politicamente organizados, a exemplo das diversas facções do movimento woke.
O processo de formação de vanguardas revolucionárias talvez seja, da herança intelectual de Joaquim de Fiore, o elemento mais arraigado e duradouro. Ele guarda correspondência com a postura quase sempre negativa do homem moderno em relação ao passado, concebido como uma longa preparação para o futuro, que o homem moderno acredita piamente representar. Mas, como esse futuro é obviamente indefinido, o processo de eclosão de novas vanguardas é virtualmente ilimitado. Pela própria lógica interna das filosofias da história, nada garante que o representante da nova era de hoje não venha a ser superado pelo representante da nova era de amanhã.
Esse processo de imanentização do escathon altera profundamente a concepção ortodoxa do Juízo Final
Como nota Voegelin, não há nenhuma razão intrínseca para considerarmos o período moderno da história como tendo começado com o Humanismo antes que com a Reforma, ou com o Iluminismo mais do que com o Marxismo. A representação da nova era, singular e diferente de tudo o que veio antes, parece ser uma estrutura inexorável da modernidade, uma lei de ferro cujas origens são gnósticas — o “mundo da luz” do gnosticismo original foi convertido no símbolo joaquino do “terceiro reino”, num processo que poderíamos definir como uma historização da gnose. Nas palavras do filósofo alemão:
“A imanentização do eschaton cristão possibilitou dotar a sociedade em sua existência natural de um significado que o cristianismo negava. E o totalitarismo de nosso tempo deve ser entendido como o ponto final da busca gnóstica por uma teologia civil […]. Os movimentos gnósticos não se contentavam em preencher o vácuo da teologia civil; eles tendiam a abolir o cristianismo. Nas fases iniciais do movimento, o ataque ainda estava disfarçado como “espiritualização” ou “reforma” cristã; nas fases posteriores, com a imanentização mais radical do eschaton, tornou-se abertamente anticristão.”
Esse processo de imanentização do escathon — como o chama Voegelin — altera profundamente a concepção ortodoxa do Juízo Final. Porque se, na tradição bíblica, o Juízo Final sinaliza a passagem do tempo à eternidade, o apocalipse gnóstico-revolucionário é descrito como um momento do tempo histórico, momento singular, sem dúvida, pois considerado o ponto culminante de toda a história passada. Se, na escatologia cristã tradicional, os homens são iguais neste mundo e só serão separados no Além, na escatologia gnóstico-revolucionária, os homens são separados aqui e agora, pois os “eleitos” (ou “ungidos”, como os descreve Thomas Sowell) agem de antemão como juízes da história, em razão de terem vislumbrado, por sobre os ombros do restante da humanidade, a luz que vem de Utopia. Penso ser impossível compreender a cultura contemporânea do cancelamento — uma espécie de puritanismo secularizado — sem levar em conta essa antropologia filosófica específica, com todas as consequências decorrentes nas esferas da moral e da política.
Leia também “A Justiça sob os holofotes”
Corrigindo: Enriquecendo minha existência com a leitura de artigos como este.
Excelente texto. Parabéns. Enriquecendo minha existência com leitura de artigos este.
Parabéns! Você acredita que essa influência gnóstica tem relação com a Kabala judáica e os ensinamento de Maimônides e na modernidade com o hassidismo lubavítico? Até porque os “marranos” tiveram um influência importante nos governos imperiais do século XVI e XVII. “Ego vox clamantis”.
Maravilhoso texto! Parabéns e obrigado.
Muito bom, apesar da dificuldade de nós mortais destrinchar a filosofia pura. Pra se refletir