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Apoiadores Houthis seguram armas durante um protesto em Sanaa, no Iêmen | Foto: Reuters/Khaled Abdullah
Edição 235

­­O Hamas quer guerra

Yahya Sinwar, líder do grupo terrorista, está colhendo os resultados que esperava: fazer com que Israel sofra pressões internas e internacionais, e enfrente simultaneamente sete frentes de batalha

Miriam Sanger
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Depois de quase um ano da guerra mais longa e sangrenta entre Israel e o Hamas, tornou-se difícil contar o número de propostas de cessar-fogo que não chegaram a nenhum resultado. Isso não surpreende os que conhecem a história moderna do Oriente Médio e entendem que o objetivo desta e de outras guerras contra Israel não é a criação de um Estado Palestino, e sim a eliminação da nação judaica.

Isso é o que prega o slogan associado à luta pela criação do Estado Palestino: “Palestina livre do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]”.

É importante voltar no tempo e lembrar que a criação do Estado judeu em um continente predominantemente muçulmano foi sempre descrita pelas nações árabes como “uma aberração”. Para muitas delas, como é o caso da Síria, do Iraque e do Irã — que criou uma rede de proxies que inclui os personagens da atual guerra, ou seja, Hamas, Hezbollah (Líbano) e Houthis (Iêmen) —, a destruição de Israel tornou-se um objetivo nacional.

A história do rejeicionismo palestino

Durante séculos, vastos territórios do Oriente Médio estiveram sob controle do Império Otomano. Com sua derrota na Primeira Guerra Mundial, eles foram divididos entre os vencedores — e logo em seguida iniciaram-se debates sobre a divisão da área que era conhecida como Mandato da Palestina entre os dois povos (aliás, ambos denominados “palestinos”) que ali habitavam: judeus e muçulmanos.

Em 1937, uma comissão comandada pela Inglaterra — então a mandatária da região — apresentou o Plano Peel, que previa a criação de “dois Estados para dois povos”. A proposta foi rechaçada pelos árabes. Em 1947, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Partilha da Palestina, esta foi igualmente recusada por eles.

Desde então, houve várias tentativas de negociação de paz entre israelenses e palestinos coordenadas por diferentes países. Entre elas os Acordos de Oslo, conduzidos pelo então presidente norte-americano Bill Clinton em 1993, e que foram interrompidos pelo então líder palestino Yasser Arafat.

Acordos de Oslo, mediados em 1993 pelo presidente dos EUA, Bill Clinton, foram interrompidos pelo líder palestino da época, Yasser Arafat | Foto: Reuters/Gary Hershorn

Entre as iniciativas mais decepcionantes que se seguiram a Oslo estão os Acordos de Camp David, em 2000, elaborados no segundo mandato de Bill Clinton. O plano atendia a praticamente todas as demandas árabes: a entrega de 95% dos territórios ocupados por Israel desde a Guerra dos Seis Dias (1967), a divisão de Jerusalém em dois — para que ela se tornasse, além da capital de Israel, a da Palestina — e o direito limitado de retorno aos refugiados palestinos. O então embaixador da Arábia Saudita, Bandar bin Sultan, que participou das negociações, informou o líder Yasser Arafat sobre a aprovação da proposta pelos países árabes e frisou: “Se você disser não, não será uma tragédia: será um crime”.

Yasser Arafat recusou a oferta.

As alegações para a recusa palestina variaram a cada proposta de paz, mas uma foi mantida em todas elas: a dita “repatriação” de, atualmente, 5 milhões de palestinos considerados, até hoje, refugiados em consequência da Guerra pela Independência de Israel, em 1948-1949. Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina desde 2004, sempre repete que “nós nunca abriremos mão do direito de retorno”.

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Mahmoud Zeidan Abbas, também conhecido por seu nome de guerra Abu Mazen, é um político palestino que ocupa o cargo de presidente da Autoridade Nacional Palestina desde 2004 | Foto: Wikimedia Commons/U.S. Department of State

Não apenas as lideranças palestinas mas também as nações árabes contrárias à existência de Israel não escondem a motivação para essa aparente “teimosia”: a demografia é uma das ferramentas políticas para a destruição do Estado judaico. É importante lembrar que o número de árabes que deixaram o território israelense após a Guerra da Independência é calculado em cerca de 450 mil a 600 mil. A divergência dos números se deve ao fato de os palestinos serem o único povo do mundo ao qual o status de refugiado é estendido também aos descendentes. Além disso, as autoridades palestinas exigem o assentamento dessa população dentro do Estado judeu, e não em territórios palestinos, o que levaria a um desequilíbrio demográfico insustentável para Israel no que diz respeito ao seu status como nação judaica. 

A negociação pelo fim do atual conflito

As principais demandas do Hamas na atual guerra dizem respeito à libertação de milhares de terroristas julgados e presos em Israel — já aceita pela contraparte — e a retirada total das Forças de Defesa de Israel (IDF) da Faixa de Gaza. Já Israel exige a rendição do Hamas e o fim de seu domínio do território, além da libertação imediata dos 101 reféns israelenses que ainda estão em poder do grupo terrorista.

Os diferentes timings dos oponentes aumentam a complexidade da negociação: enquanto Israel corre contra o tempo em função do risco de morte dos reféns em cativeiro, o Hamas não tem pressa, uma vez que seu único objetivo é enfraquecer Israel por meio da pressão internacional que apenas cresce com o passar do tempo.

O acordo de cessar-fogo atualmente em pauta está dividido em três fases de execução, mas sem prazo de cumprimento. A primeira prevê o fim dos combates e a devolução de 20 a 30 reféns em troca da total retirada do exército de Israel da Faixa de Gaza. Segundo declarou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu na coletiva de imprensa realizada em 3 de setembro, isso permitiria ao Hamas deslocar os reféns para o Egito e, dali, para outros países, como o Irã ou o Catar. Israel exige a devolução imediata de todos eles.

Pôster retratando Alexander Lobanov, cujo corpo foi recuperado em Gaza, exibido junto com os pôsteres de outros reféns sequestrados durante o mortal ataque de 7 de outubro pelo Hamas, em Tel Aviv, Israel | Foto: Reuters/Florion Goga

Além disso, o acordo obrigaria Israel a entregar o controle do Corredor de Netzarim, uma estrada aberta pelo país judaico após o início da guerra que divide Gaza em duas e permite ao exército controlar o fluxo interno de terroristas e de armamentos. O governo israelense se comprometeria a abrir mão do controle da fronteira entre Gaza e Egito, conhecido como Corredor Filadélfia, a única rota de contrabando que permite a entrada de armamentos no território palestino.

Um terceiro item importante diz respeito à libertação de milhares de terroristas palestinos julgados e presos em Israel após ataques terroristas com vítimas fatais em território israelense. Ao unir essas duas pontas — o rearmamento e a volta da criação do contingente de combate —, o Hamas teria condições de cumprir a sua ameaça mais constante: a realização de ataques futuros no modelo do de 7 de outubro, que resultou em 1,2 mil vítimas fatais, 3,7 mil feridos e 254 sequestrados.

Isso é o que o grupo terrorista promete não apenas nas mídias em árabe. Segundo declarou Razi Hamad, oficial sênior do Hamas, logo após a invasão, em entrevista a um canal de televisão: “O 7 de outubro foi apenas nosso primeiro ataque — haverá um segundo, um terceiro e um quarto”.

Bassam Tawil, acadêmico muçulmano baseado no Oriente Médio, descreve: “O Hamas está disposto a lutar até o último palestino, sem se importar se dezenas de milhares de cidadãos perderão a vida como resultado da guerra que ele próprio iniciou. Sua prioridade número 1 é manter-se no poder após seu fim e continuar lutando até alcançar seu objetivo final: a destruição de Israel”.

Enquanto isso, a balança da opinião pública israelense, que pendia para a estratégia de força adotada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, agora inclina-se para a aceitação de qualquer acordo que traga esperança de devolução dos reféns. Essa transição está ligada ao assassinato de seis deles, cujos corpos foram resgatados pelo exército israelense em 1º de setembro, dia chamado em Israel de “o segundo 7 de outubro”.

Embora a opinião pública israelense esteja dividida, um tema é percebido com unanimidade: a aceitação de um cessar-fogo representa a derrota “deste round” para Israel. Essa é a visão do general da reserva Michael Milshtein, analista sênior do Instituto para Políticas e Estratégia da Universidade Reichman e ex-chefe do departamento de Assuntos Palestinos das Forças de Defesa de Israel, que não acredita que a continuação do conflito seja favorável para Israel. “A sociedade israelense está exausta, e o que nos resta agora em Gaza é uma guerra de atrito — ou seja, de pouca intensidade e longa duração. Precisamos enxergar este momento não como o fim da guerra, mas de um primeiro round”.

Já Einat Wilf, analista política e ex-membro do parlamento israelense, defende a pressão bélica até a rendição do Hamas. “O que os palestinos pedem ao propor um cessar-fogo é retornar impunemente ao dia 6 de outubro”, afirma. “Se aceitarmos um acordo, mostraremos para o mundo que é legítimo sequestrar civis sem que isso implique consequências.”

Cultura de martírio e paciência

O Hamas e os demais movimentos fundamentalistas islâmicos — a exemplo do Hezbollah e do ISIS — seguem uma lógica diferente da adotada pelo mundo ocidental. Essa questão dificulta a compreensão do posicionamento do Hamas em diferentes aspectos, a começar pelo aparente desinteresse em relação ao extremo sofrimento de seu próprio povo e à completa destruição da infraestrutura da Faixa de Gaza.

O Hamas e outros movimentos islâmicos fundamentalistas, como Hezbollah e ISIS, seguem uma lógica distinta do Ocidente, o que torna difícil entender sua postura, especialmente em relação ao sofrimento do próprio povo e à destruição de Gaza | Foto: Reuters/Amir Cohen

Eles demonstram ter uma percepção diferente do tempo, o que explica a falta de pressa do Hamas em relação à finalização da guerra. A paciência é considerada uma virtude importante na cultura islâmica e, no livro sagrado do islamismo, o Corão, há várias citações a ela, como “Deus é bom com aquele que tem paciência”. “Do ponto de vista palestino, não há problema em continuar uma guerra por décadas, porque no fim Deus concederá um bom resultado”, explica Milshtein, que é também autor do livro A Revolução Verde: O Perfil Social do Hamas. Outro aspecto proveniente do Corão é relacionado à glorificação dos mártires. Ou seja, a morte como resultado da jihad (guerra santa) é um objetivo nobre e celebrado.

“O preço da liberdade é pago com sacrifícios e mais sacrifícios — e pode-se dizer que a palavra ‘rendição’ inexiste no dicionário do Hamas”, descreve Mohammed Siam, analista político palestino. “Para os membros do Hamas, martírio e vitória são os maiores objetivos. O Hamas nunca se renderá.”

Sem dois, não há acordo

Soa óbvio afirmar que, para selar qualquer acordo, as duas partes precisam estar interessadas. Não é isso que acontece neste momento.

Sinwar, líder único do Hamas e imerso há meses nos túneis de Gaza, é conhecido entre os próprios palestinos pelo apelido “o açougueiro de Khan Younis” (cidade da Faixa de Gaza), pela fama de ser extremamente violento. Ele foi preso, julgado e condenado a quatro prisões perpétuas em Israel pelo assassinato de colaboradores palestinos e também de soldados israelenses. Durante o período de prisão, recebeu o diagnóstico de câncer no cérebro — seu tratamento e cirurgias foram custeados pelo governo israelense. Em 2011, ele estava entre os terroristas libertados em troca de um único soldado israelense, Gilad Shalit, sequestrado cinco anos antes.

Enquanto o elevado número de palestinos mortos pelo exército israelense incendeia a opinião pública internacional contra Israel, os 101 reféns ainda em cativeiro provocam a fortíssima comoção dos israelenses, criando internamente um clima de instabilidade política e social

Yahya Sinwar é o principal líder do Hamas na Faixa de Gaza e o segundo na hierarquia do grupo | Foto: Reprodução/Twitter/X
Yahya Sinwar é o principal líder do Hamas na Faixa de Gaza | Foto: Reprodução/Twitter/X

Segundo a maioria dos analistas geopolíticos da região, Sinwar, que é descrito como um líder religioso e fanático, não tem real interesse em um acordo de paz, uma vez que está colhendo bons frutos dessa guerra. Enquanto o elevado número de palestinos mortos pelo exército israelense incendeia a opinião pública internacional contra Israel, os 101 reféns ainda em cativeiro provocam a fortíssima comoção dos israelenses, criando internamente um clima de instabilidade política e social. Por fim, Israel está enfrentando simultaneamente sete frentes de combate — contra o Irã, Gaza, Cisjordânia, Iraque, Síria, Iêmen e Hezbollah-Líbano —, com a perspectiva de uma ampla guerra contra este último.

Em resumo, as chances reais de um acordo de cessar-fogo parecem ínfimas. Segundo o refrão de Milshtein, “no Oriente Médio, é muito perigoso ser otimista. No entanto, não devemos ser pessimistas — apenas realistas”.

Leia também “O braço terrorista da ONU”

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