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O serviços de TV a cabo estão se tornando cada vez mais dispensáveis graças à internet | Foto: Shutterstock
Edição 237

TV sem cabo

A televisão está passando por sua mais radical transformação

Dagomir Marquezi
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Conhecemos muito bem o ritual: assinamos o serviço, um técnico aparece em casa com um aparelho que conecta a um cabo branco plugado na parede.

Você agora tem algo parecido com uma centena de canais de televisão — e nunca vai assistir à grande maioria deles. Não importa. Todo mês vai chegar o boleto cobrando pelo pacote. Normal.

Não é mais normal. Esse modelo está ficando rapidamente para trás. Vamos fazer um flashback.

***

A primeira transmissão de televisão do Brasil (e da América Latina) aconteceu em 18 de setembro de 1950, na inauguração da TV Tupi. Você precisava ter um aparelho receptor que funcionava à base de válvulas. Pouquíssimos tinham.

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Essa inauguração foi captada pelas câmeras, enviadas a um transmissor e espalhadas pelo ar, em ondas eletromagnéticas. Essas ondas chegavam até a casa do telespectador, captadas por uma antena. O receptor transformava as ondas eletromagnéticas em imagens e sons.

Logo a TV se transformou na mídia mais importante do mundo. Era tão poderosa que passou a ser tratada como uma espécie de monopólio estatal. Os canais eram concedidos a empresários que se aventurassem nesse novo business

O serviço era grátis para o telespectador. Para se sustentar, a TV virou uma mídia movida a publicidade. Programas tinham patrocinadores. Os intervalos eram lotados de propagandas. 

O serviço permitia que no máximo apenas cinco canais fossem disponíveis em cada cidade. O telespectador via no jornal o que estava passando na TV e escolhia o que ia assistir. Havia sempre uma emissora na liderança da audiência. A primeira foi a TV Tupi, depois a Excelsior. Até que a Rede Globo assumiu essa liderança na década de 1970 — e não largou mais.

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Esse panorama começou a mudar em 1989 com a criação da TVA, da Editora Abril. Agora as pessoas podiam pagar uma assinatura que traria até sua TV canais específicos de esportes, de música, de notícias. O espectador podia acompanhar as notícias da CNN, a RAI italiana, a NHK japonesa, a TV5Monde francesa, e assim por diante.

Esse movimento foi revolucionário em vários sentidos. Abriu os olhos do Brasil para o resto do mundo. E o espectador não era mais obrigado a engolir canais genéricos. Crianças não precisavam mais assistir TV só no horário “infantil” — o Cartoon Network funcionava 24 horas. Quem gostava de esportes não precisava esperar o fim de semana, quando tinha a ESPN o dia inteiro. E havia os canais de filmes, dezenas deles passando um atrás do outro. Os tempos da Sessão da Tarde da Globo tinham ficado para trás.

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A próxima grande revolução aconteceu no dia 23 de abril de 2005. Um vídeo de 19 segundos mostrava o jovem Jawed Karim na frente do recinto dos elefantes no Zoológico de San Diego, na Califórnia. Karim era um dos criadores de uma nova plataforma na internet chamada YouTube. Que não transmitia por antenas nem por cabos, mas pela internet.

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O YouTube inaugurou a era do streaming. E, num ato de profunda libertação, permitiu que cada usuário tivesse o seu próprio canal. Todo ser humano poderia gravar o que quisesse e ser assistido no mundo inteiro. Cada espectador podia pausar o vídeo, voltar para o início, adiantar se achasse um trecho chato. 

Dois anos depois do YouTube viria a próxima revolução. Em 2007, uma locadora americana de DVDs chamada Netflix decidiu apostar em outro conceito de distribuição chamado streaming. Em vez de mandar os DVDs pelo correio ou esperar que os clientes viessem até a locadora, a Netflix decidiu transmitir seu acervo pela internet. Esta é uma matéria da Associated Press noticiando essa mudança:

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Agora não havia mais a necessidade de ter uma caixinha da operadora ligada a um cabo. Onde houvesse sinal da internet, haveria disponibilidade. 

A Netflix mostrou na prática que o streaming podia ser um excelente negócio. Em 2013, lançou sua primeira produção, a série House of Cards. Alcançou o mercado global a partir de 2016, atingindo 130 novos países. Seu faturamento cresceu de US$ 1,2 bilhão em 2007 para US$ 33 bilhões em 2023.

Em 2019, a Netflix passou a encontrar concorrência — Disney+, Apple TV, Amazon Prime Video eram os novos gigantes do streaming. Em seguida vieram empresas menores, várias delas gratuitas, ou de baixo custo — Plex, Tubi, RunTime, Looke, Pluto TV. 

Esse mercado começou a se segmentar cada vez mais. Agora existe um streaming para o público nostálgico (Tubi, Oldflix), outro para quem gosta de produções israelenses (IZZY), ou filmes de arte (À La Carte), filmes trash (Cultpix), filmes de terror (Darkflix).

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Com tantas opções, ainda existem milhões de brasileiros que agem como se estivessem em 1975: ligam na Rede Globo e permanecem nela até desligar a TV para dormir. Esse hábito é reforçado por donos de bares, clínicas e hospitais que insistem em manter um monitor ligado na emissora como se ela ainda fosse indispensável. Calcula-se que quase 76 milhões de pessoas continuem assistindo à Globo, nem que seja um minuto por dia.

A Globo percebeu que esse modelo está condenado a longo prazo e se adaptou ao modelo de streaming com a criação do Globoplay, em 2015. O prejuízo acumulado do Globoplay até agora é calculado em cerca de US$ 14 bilhões. Segundo o site Metrópoles, “especialistas acreditam que as perdas possam ser ainda maiores, embora a Globo não tenha divulgado detalhadamente esses números em seus balanços financeiros”. Novas tecnologias não fazem milagres com um modelo ultrapassado de empresa, com a credibilidade no fundo do poço.

Surfando no streaming

Há dois anos o streaming ultrapassou o cabo como o mais popular método para assistir televisão nos EUA. E essa vantagem só aumentou nesse período, segundo a agência Nielsen, com dados de maio. 

O streaming lidera o mercado americano de TV com uma fatia de 38,8%. O cabo está com 28,2%, e a transmissão aberta está caindo para pouco mais de um quinto do mercado (22,3%). Praticamente 10% da audiência está no YouTube, com a Netflix em segundo lugar (7,6%). Mesmo empresas menores (Tubi, The Roku Channel, Pluto TV) já tomaram uma fatia de 4,1%. 

 Imagem: Divulgação/Nielsen

Essa tendência não se limita à televisão. No mercado de música o streaming ocupa uma faixa ainda maior — 63%. Apenas 9% dos ouvintes continuam comprando mídias físicas, como CDs e discos de vinil.

Essa expansão do streaming também pode ser creditada a um fator tecnológico. Emissoras abertas e a cabo precisam ser vistas em aparelhos de TV. O streaming pode ser visto em qualquer lugar — computadores, laptops, celulares, tablets, consoles de games. E até em monitores de TV, que estão cada vez mais parecidos com computadores. 

A caixa de Pandora

É tudo uma questão de mercado. Quanto mais acesso à internet, mais cresce o streaming. No ano passado, segundo a última pesquisa do IBGE, 92,5% dos domicílios brasileiros tinham acesso à internet. Nas áreas urbanas esse porcentual é de 94,1%. Nas áreas rurais, 81%, e está crescendo mais rapidamente que a rede urbana. Deve subir ainda mais com sistemas por satélite, como a Starlink. 

E então entramos no túnel do tempo e voltamos à sexta-feira, dia 6 de janeiro de 1989, quando a Rede Globo exibiu o final da novela Vale Tudo. Foi um recorde: mais de 80% dos espectadores brasileiros estavam ligados na telinha da Globo. 

Hoje, a caixa de Pandora digital foi aberta, para desespero dos ditadores. Não temos mais cinco canais. Temos milhares de canais à disposição graças à internet. Controlar tudo isso é impossível fora da Coreia do Norte.


@dagomir
dagomirmarquezi.com

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