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Edição 248

Afundando

Sem espírito público, sem consciência social, sem ativismo cidadão, sem objetivos nacionais, com uma passividade quase masoquista, é impossível prever o dia de amanhã

Alexandre Garcia
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Quando o jornalista se sente dono do fato, cai na tentação de noticiar o fato como ele gostaria que fosse; quando um ministro do Supremo se sente dono da Constituição, pode cair na tentação de apresentar a Lei Maior como ele acha que ela deveria ser. Isso pode ser fatal para a credibilidade do jornalista, ou para o devido processo legal, para as liberdades fundamentais e para a própria estrutura do Estado Democrático de Direito. Gera instabilidade institucional, insegurança jurídica, imprevisibilidade econômica. Pode até gerar um caos. Ou, como me disse, certa vez, o ministro do Supremo e bem-humorado frasista Oscar Dias Correia: “Não apenas um caos, mas o Kaos, com ‘K’ maiúsculo”. Ele queria enfatizar o que aconteceria se o próprio Supremo não cumprisse a Lei Maior. Eu acrescentei: “Ou se jornalistas usassem fatos para reescrevê-los como ficções”. Tudo isso contribui para a imprevisibilidade do dia seguinte.

O ex-governador de Brasília e ex-senador José Roberto Arruda me perguntou que rumo prevejo para o Brasil. Respondi que não tenho bola de cristal e que sem ela nosso rumo é impossível de prever. E citei Pedro Malan, como havia citado, horas antes, em conversa com o ex-presidente Bolsonaro: “No Brasil, até o passado é imprevisível”. Argumentei que estamos à mercê do acaso. Com uma população em maioria indiferente a objetivos nacionais, e com elites que mal conseguem observar a periferia de seus umbigos, é impossível identificar qualquer rumo para um país. Sem espírito público, sem consciência social, sem ativismo cidadão, sem objetivos nacionais, com uma passividade quase masoquista, é impossível prever o dia de amanhã, identificar um rumo, uma meta para o Brasil, a não ser uma caminhada errante, andando cada passo sem saber onde pisa nem para onde vai.

Pedro Malan, ex-presidente do Banco Central e ex-ministro da Fazenda, no seminário Thinking 20, a Global Order for Tomorrow, no Palácio da Cidade, Rio de Janeiro, RJ (29/8/2023) | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Se tivéssemos fidelidade à Constituição, pelo menos teríamos disciplina sobre a estrada e suas margens, mas até disso fomos privados. O guardião da Constituição se tornou mais importante que ela; faz as regras sem perguntar aos que representam o poder originário. O Legislativo, que recebeu a procuração do voto da origem do poder, não parece representar seus mandantes. A omissão dos que juraram defender e manter a Constituição resvala nos desvios do Estado Democrático de Direito. Quem poderia corrigir, o Senado, está congelado por um presidente inerte. O presente e o futuro rumam “qual pluma ao vento”, como a ária da ópera.

Aí, tudo aqui é imprevisível. Ninguém sabe o que pode ser o dia seguinte — na economia, na política, nas liberdades. Podemos amanhecer com um general de quatro estrelas preso; ou com a notícia de um garçom de 32 anos que, em vez do Sírio-Libanês, procurou uma UPA, e morreu esperando. Ou com um manifestante morto no presídio por falta do tratamento implorado. Podemos acordar com o dólar acima dos R$ 6, ou com a picanha ainda mais longe. Os juros, a dívida pública subindo por excesso de gastos do governo, o IVA mais alto do mundo. Todos os que juraram manter e defender a Constituição, a lei e a ordem vivem seu próprio mundo de interesses egoísticos, e lavam suas mãos sobre o futuro de seus filhos, netos e bisnetos. Vivem o suposto conforto de uma fuga que só faz agravar o mal; num sem rumo sem volta, com a enganadora abstração da esperança.

O poder faz, volta e meia, lancetadas para saber se a cidadania ainda sobrevive a tantas amputações de direitos, e se ouvem-se apenas gemidos. A liberdade de expressão vai sendo sufocada; busca-se anular a proibição à censura, para calar onde ainda existe a voz produtiva da crítica; relativiza-se a inviolabilidade do mandato parlamentar, jogam-se pazadas de cal sobre o devido processo legal; inverte-se a relação Estado-nação, para que o Estado seja o senhor da nação, ao invés de existir para servir ao povo. Só se justificam impostos se for para prestar bons serviços à nação — e não para sustentar o Estado ineficiente. E assim, sem norte, sem rumo, sem saber para onde vamos, passamos de um dia para o outro, sem perceber que no caminho vamos afundando em areias movediças.

Foto: Shutterstock

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1 comentário
  1. Celso Ricardo Kfouri Caetano
    Celso Ricardo Kfouri Caetano

    Excelente seu artigo Alexandre Garcia, mostra o descompasso que temos hoje de parte da imprensa vendendo mentiras (quem mente tira o direito do outro saber a verdade), de um judiciário que menospreza a constituição que juraram defender, de um congresso corrompido e movido por interesses pessoais e pior de um governo que não tem projeto nenhum para o desenvolvimento do país mas sim apenas projetos de destruição da economia e da sociedade.

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