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Embalagens do medicamento Ozempic | Foto: Shutterstock
Edição 251

A nova indústria do emagrecimento

Desenvolvidos para o tratamento de diabetes, medicamentos injetáveis viram ‘queridinhos’ da perda de peso

Amanda Sampaio
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“Temos Ozempic” — essa mensagem, que estampa a gôndola de medicamentos de uma farmácia na Avenida Paulista, é um chamariz de clientes que buscam algo em comum, especialmente depois das festas de fim de ano: a perda de peso. Inicialmente destinada a pacientes com diabetes tipo 2, a canetinha da dinamarquesa Novo Nordisk se tornou uma verdadeira febre mundial por se mostrar eficaz também no tratamento da obesidade. Por aqui, o preço salgado (cerca de R$ 1 mil por unidade) não intimidou, e a demanda foi tão grande que a medicação chegou a ficar em falta por vários meses em 2023. Esse sucesso abriu espaço para a criação de mais um fármaco pela empresa, o Wegovy, que chegou ao Brasil em agosto do ano passado.

Apelidado de “primo” do Ozempic, o Wegovy apresenta o mesmo princípio ativo da primeira medicação — a semaglutida, uma forma sintética do hormônio GLP-1, que regula o apetite e reduz o ritmo de esvaziamento do estômago. A diferença entre os dois está, principalmente, na dosagem: enquanto o Ozempic está disponível em doses de 0,25 mg, 0,5 mg e 1 mg, o Wegovy chega a valores mais altos, de até 1,7 mg e 2,4 mg. Além disso, a nova medicação foi liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento de obesidade e sobrepeso. Os preços, no entanto, podem chegar a R$ 2,5 mil.

O fato é que o mercado de emagrecimento se tornou o grande negócio da Novo Nordisk. Desde o começo de 2023, as ações da farmacêutica saltaram mais de 70%, o que lhe rendeu um valor de mercado de aproximadamente US$ 420 bilhões (cerca de R$ 2,5 trilhões, na cotação atual). O número supera o produto interno bruto (PIB) da Dinamarca, estimado em US$ 404 bilhões em 2023. Com isso, a companhia se tornou a mais valiosa da Europa.

Além desses indicadores, o “efeito Ozempic” já tem afetado outros setores da economia mundial. Nos Estados Unidos, por exemplo, a rede de supermercados Walmart, que comercializa alimentos e medicamentos, relatou que clientes que compram remédios antiobesidade estão consumindo menos comida. A declaração foi dada pelo CEO da empresa, John Furner, à agência de notícias Bloomberg. Essa informação é corroborada por um estudo realizado pelo banco de investimentos Morgan Stanley, que revelou que mais de 60% das pessoas que usam medicamentos injetáveis à base de semaglutida reduziram ou interromperam o consumo de doces e sorvetes no país. Também houve queda no uso de cigarro e álcool, o que já preocupa as indústrias desses segmentos.

Foto: Shutterstock

De acordo com Gerson Brilhante, analista da consultoria Levante Inside Corp, essa mudança de comportamento também pode afetar a economia brasileira e, inclusive, impactar o PIB do país de forma indireta. Como exemplo, ele cita uma possível redução no estoque de roupas plus size em lojas de vestuário e até a redução no consumo de fast food

O especialista também diz que a perspectiva para os negócios das farmacêuticas, como a Novo Nordisk, é positiva. Contudo, é por um motivo preocupante: segundo um estudo realizado pela Associação Americana de Obesidade, 60% dos norte-americanos serão obesos até 2030. E, por aqui, o cenário não é diferente. Uma pesquisa do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin), da Fiocruz Brasília, revelou que cerca de 55% dos adultos brasileiros vivem com obesidade ou sobrepeso. A estimativa é que esse número salte para quase 70% nos próximos seis anos.

“Quando a Novo Nordisk começou a vender o Wegovy lá fora, houve grande aceitação”, afirma Brilhante. “A empresa não estava conseguindo lidar com a demanda. Por isso, a companhia está investindo em novas fábricas para suprir esse déficit. Nossa estimativa é de que essa indústria cresça 10% em nível mundial nos próximos anos.”

Embalagem do medicamento Wegovy | Foto: Shutterstock

Atualmente, a Novo Nordisk e a farmacêutica Eli Lilly são as principais concorrentes no segmento. A segunda empresa é a fabricante do Mounjaro, medicamento à base de tirzepatida, que age como um duplo agonista — simula o GLP-1 e outro hormônio semelhante, o GIP. Essa característica faz o fármaco ter uma ação mais rápida na perda de peso do que a semaglutida. Segundo a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão responsável pela definição dos valores de remédios no Brasil, o preço máximo ao consumidor (PMC) do Mounjaro vai variar de R$ 1,7 mil a quase R$ 4 mil, a depender da alíquota de imposto de cada Estado e da dose, quando ele chegar ao país.

Em termos concorrenciais, destaca Brilhante, o monopólio desse tipo de medicamento deve permanecer nas mãos das duas farmacêuticas. Segundo o especialista, apesar de existirem projetos de medicamentos ainda melhores e mais eficazes do que o Ozempic e o Mounjaro, o processo de aprovação das drogas é lento. “A Food and Drug Administration, equivalente à Anvisa nos EUA, demora cerca de três anos para aprovar uma proposta”, disse. “E as fábricas levam mais dois ou três anos para ser construídas. Só nisso, eles já ficariam muito para trás.”

No Brasil, a farmacêutica brasileira Biomm anunciou em abril um acordo com a indiana Biocon para licenciar e distribuir com exclusividade no país o medicamento biológico semaglutida, similar ao Ozempic. A comercialização, no entanto, só será possível a partir do último trimestre de 2026, quando é prevista a queda da patente do medicamento da Novo Nordisk. A dinamarquesa tentou prorrogar esse prazo até 2036, o que manteria a exclusividade do remédio injetável por 32 anos ao todo. No entanto, o pedido foi rejeitado por unanimidade pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) no ano passado. Com a perda da patente, o setor prevê que o preço do remédio caia até pela metade.

Uso indiscriminado preocupa 

Um dos motivos para o excesso de demanda por remédios injetáveis para emagrecer pode estar atrelado à venda sem a retenção da receita pelas farmácias. Isso significa que, apesar de ser obrigatória a apresentação da receita, os estabelecimentos não precisam mantê-la — o que facilita a compra por qualquer pessoa.

Embalagem do medicamento Ozempic | Foto: Shutterstock

O endocrinologista e diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo (SBEM-SP), doutor Ricardo Barroso, explica que o uso indiscriminado desse tipo de medicamento pode aumentar os riscos de efeitos colaterais, além de prejudicar quem realmente precisa do remédio. “Com o uso exagerado dessas medicações, há necessidade de um controle maior, assim como acontece nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde são exigidas as receitas médicas para comprar os medicamentos”, afirma.

Além disso, o médico alerta para as contraindicações. “Pacientes com histórico de pancreatite, dores renais, cálculos na vesícula ou intolerância não devem usar essas medicações”, diz Barroso. Segundo ele, os principais efeitos colaterais tendem a se restringir ao trato gastrointestinal, como náuseas, enjoos, diarreia, constipação, azia e refluxo. Alguns pacientes também podem apresentar sonolência, indisposição e falta de energia. 

O médico também chama a atenção para outro efeito, que ficou conhecido como “cabeça de Ozempic”. O termo viralizou nas redes sociais depois de circularem imagens de celebridades que surgiram mais magras, mas com a cabeça desproporcionalmente maior em relação ao corpo. Essa “deformação” também já foi relatada em seios e nádegas. 

“Isso ocorre pelo uso inadequado e por uma qualidade alimentar ruim”, explica Barroso. “Se você diminuir muito a ingestão de proteína, você vai perder mais massa magra, mais músculo. Com um remédio, dependendo da dose, você pode emagrecer sem nem precisar fazer uma dieta adequada. Só que, sem fazer atividade física, sem ter uma boa ingestão de proteína, você perde musculatura do ombro, do pescoço, das pernas… É por isso que existe essa desproporcionalidade entre o corpo e a cabeça, além de outras partes do corpo.” O especialista reitera que esses efeitos podem ser minimizados significativamente mediante acompanhamento médico e nutricional durante o tratamento.

Foto: Shutterstock

Cegueira súbita

Mais recentemente, uma pesquisa publicada na revista de oftalmologia JAMA Ophthalmology indicou um aumento de casos de um tipo raro de cegueira súbita entre pacientes que utilizam semaglutida. Essa condição é conhecida como neuropatia óptica isquêmica anterior não arterítica (NAION, na sigla em inglês). Ela ocorre quando o fluxo de sangue para o nervo óptico é interrompido, o que prejudica a conexão entre o olho e o cérebro. “Geralmente isso está relacionado a pacientes diabéticos e que já têm um risco maior de alterações visuais”, afirma o médico. “Mas isso ainda está em processo de esclarecimento.”

A nutricionista Thays Peres alerta para outro fator importante: a dependência psicológica que a medicação pode causar quando usada de forma inadequada. “A perda de peso pode ser afetada pela saúde mental”, explica. “Há casos em que o paciente reduz a mudança de hábitos porque vê que o remédio funciona mesmo sem uma reeducação alimentar. Só que, quanto mais a pessoa usa, maior a necessidade de aumento da dose. Isso é bem perigoso.” 

Além disso, ela destaca que o efeito de saciedade provocado por esses remédios pode levar o paciente a esquecer de se alimentar. “Apesar de estar sem fome, é necessário que a pessoa registre uma refeição”, afirma a nutricionista. “Caso contrário, ela fica pouco nutrida e não consegue sustentar novos hábitos. Esse é o nosso maior medo.”

Thays acrescenta que esse tipo de problema é comum em seu consultório, porque há muitos pacientes que compram os medicamentos sem receita e passam a engordar e a emagrecer de forma frequente. “A consequência disso é ter de aumentar a dose”, explica. “Além disso, uma vez que os pacientes não tenham diabetes e usem o remédio para diabetes, eles podem, de repente, desenvolver uma hipoglicemia.”

Se por um lado os profissionais da saúde demonstram reprovação com a venda indiscriminada dos medicamentos, por outro a nova indústria do emagrecimento parece não se importar. Afinal, até que ponto ela está, de fato, comprometida em emagrecer as pessoas? Se o grande plano de perda de peso em massa der certo, a demanda naturalmente tende a cair. Seria esse o objetivo final? A resposta parece ser “não”.

Leia também “A confissão da Pfizer e o acerto de quem errou”

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