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Ilustração: Real CG Animation Studio/Shutterstock
Edição 254

Planos de saúde na UTI

Mesmo com lucro bilionário, operadoras acumulam reclamações dos clientes

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Anderson Scardoelli
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Os resultados do primeiro semestre de 2024 foram de comemoração para o grupo Seguros Unimed, que, entre outros serviços, oferece planos de saúde. A empresa faturou R$ 3,6 bilhões de janeiro a junho, o que representou crescimento de 22% em relação ao mesmo período do ano anterior. O aumento do lucro líquido consolidado — ou seja, o dinheiro que sobra depois da dedução de impostos, tributos e custos operacionais — foi ainda maior em termos proporcionais. A companhia terminou os seis primeiros meses do ano passado com R$ 166,8 milhões no positivo, avanço de 48% na comparação com o primeiro semestre de 2023.

O caso da Unimed não foi o único. Ao todo, as empresas de plano de saúde fecharam os três primeiros trimestres de 2024 com receita superior a R$ 261 bilhões e lucro líquido de R$ 8,7 bilhões, informou, em dezembro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) — ainda não há dados referentes ao último trimestre do ano passado, o que só deverá ocorrer em março. Conforme a entidade responsável pela regulação da área no país, trata-se do melhor resultado para o período desde 2020, quando o Brasil teve de lidar com a pandemia de covid-19.

Balanço das empresas de plano de saúde nos três primeiros trimestres de 2024 | Ilustração: Reprodução

Mas o lucro exorbitante não se converteu na melhoria dos serviços prestados. Ao menos no caso de Fabiane Simão, que não tem o que comemorar quando o assunto é plano de saúde. Fisioterapeuta no Rio de Janeiro, ela é cliente da Unimed Ferj, uma das divisões que compõem o grupo Seguros Unimed, e se viu obrigada a enfrentar a operadora a partir de outubro de 2023. Primeiramente, acompanhou o fato de a empresa — de forma unilateral — cancelar o contrato de seu filho Daniel, de 10 anos. O menino é autista e tem paralisia cerebral.

‘Uma guerra sem fim’

Depois de contratar advogado, judicializar o problema e levar à imprensa a história de Danielzinho, Fabiane venceu uma batalha, mas não a guerra. A Unimed reativou o plano em julho do ano passado. Mas, desde setembro, ela sofre com a decisão da operadora — mais uma vez unilateral — de ignorar o próprio lucro milionário e, para reduzir custos, diminuir o volume dos serviços prestados à criança. A situação leva a Fabiane o temor de ver o desempenho do filho ser prejudicado.

“Colocaram a fisioterapia motora uma vez na semana, assim como a fisioterapia respiratória e a psicomotricidade”, conta Fabiane. “Como se uma vez por semana surtisse efeito positivo para o meu filho. É uma guerra sem fim.”

Fabiane Simão e Danielzinho | Foto: Arquivo Pessoal

Antes da redução, em setembro do ano passado, da prestação dos serviços, Daniel realizava semanalmente três sessões de fisioterapia motora, três de fisioterapia respiratória e duas de psicomotricidade, técnica que consiste em estimular o emocional, a cognição e a coordenação motora dos pacientes. Além disso, ele conta com acompanhamento com fonoaudióloga e psicóloga.

Unindo forças

Na linha de frente na luta para que o filho tenha um tratamento digno, sua mãe constatou que não era a única a lidar com essa situação. Outras pessoas encaravam problemas similares. Fabiane resolveu liderar um movimento para unir forças contra operadoras de plano de saúde. Fundou, em março de 2024, a Associação Nenhum Direito a Menos (Anedim), que tem o objetivo de defender os interesses de “toda e qualquer pessoa que esteja passando por esses apuros com os planos de saúde”. Atualmente, o grupo conta com mais de 400 pessoas.

Até o momento, a Anedim conquistou o que Fabiane classifica como “pequenas vitórias”. A começar por Daniel. De acordo com ela, a Unimed só reativou o plano por causa de uma reportagem do jornal O Globo que expôs a história — e espera que algo similar ocorra agora, para que o filho volte a contar com todas as terapias que realizava até agosto do ano passado.

“Nosso coração fica apertado pelos pais e mães atípicos e pelas crianças que têm seus tratamentos interrompidos por essas ações imorais.”

Reunião com magistrados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), espaço em veículos de comunicação e participação em sessão do Conselho Nacional de Justiça são outras conquistas da Anedim. Assim como a instauração, em maio do ano passado, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) para apurar falhas de operadoras de plano de saúde, sobretudo em casos referentes a pessoas com deficiência.

Briga política

O avanço da comissão, no entanto, foi barrado fora do Legislativo. No dia 19 de setembro, o TJRJ, por meio da desembargadora Cintia Santarém Cardinali, resolveu suspender a CPI. A magistrada acatou o pedido da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Para a entidade, a CPI, que permanece inativa, representa “risco de constrangimento ilegal de seus integrantes”.

Para o presidente da CPI dos Planos de Saúde na Alerj, deputado Fred Pacheco (Mobiliza), a decisão judicial é revoltante, mas, no que depender dele, não significará o fim da comissão. “Isso não vai nos fazer esmorecer, vamos continuar firmes na luta, porque cabe recurso”, avisou. “Nosso coração fica apertado pelos pais e mães atípicos e pelas crianças que têm seus tratamentos interrompidos por essas ações imorais.”

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O deputado estadual Fred Pacheco (Mobiliza-RJ), presidente da CPI dos Planos de Saúde na Alerj, usa nariz de palhaço em protesto ao comportamento das empresas do setor (12/9/2024) | Foto: Reprodução/YouTube/TV Alerj

Antes da suspensão via TJRJ, a Anedim acreditava que a CPI na Alerj pudesse servir de exemplo para a discussão do problema em nível nacional. A associação havia entrado com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) com a intenção de pressionar o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a instaurar uma comissão contra práticas consideradas abusivas impostas por operadoras de plano de saúde. Relator do caso no STF, o ministro Flávio Dino cobrou explicações de Lira, que, no fim de agosto do ano passado, limitou-se a dizer que qualquer medida “atropelaria” ao menos outros oito pedidos de abertura de CPI nesse sentido. Por ora, nenhuma avançou na Casa.

Evitando a regressão

O mandado de segurança da Anedim no STF é só mais um exemplo de judicialização de situações que têm planos de saúde como alvo. É o que explica o advogado José Neto, do escritório Heckmann Advogados Associados. Segundo ele, a “conduta abusiva” por parte das operadoras é comum, o que faz com que clientes acionem cada vez mais a Justiça. As ações, conforme explica, vão desde o descredenciamento de hospitais durante tratamentos até cancelamentos unilaterais de contratos, além de processos depois de os planos se negarem a cobrir determinados medicamentos devidamente receitados.

O que Neto diz tem sido cada vez mais comum. Somente quanto a cancelamentos unilaterais, as reclamações cresceram cerca de 30% nos sete primeiros meses de 2024, no comparativo com o mesmo período do ano anterior. O volume saltou de 8,2 mil para 10,6 mil, conforme a ANS.

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Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, durante sessão plenária | Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Apesar do caso da CPI na Alerj, que está suspensa a mando do TJRJ, o advogado afirma que, em geral, a Justiça acata os pedidos dos pacientes contra os planos de saúde. “Entrando com a ação bem subsidiada e fundamentada, com todos os documentos necessários para a análise do juiz, costumamos ter parecer imediato.”

O problema é que, por vezes, operadoras de plano de saúde deixam de cumprir decisões judiciais. Tatiane Veronezzi sabe bem o que é isso. Mãe de Laura, de 9 anos, que tem paralisia cerebral, Tatiane lida há mais de um ano com a decisão da Santa Casa Saúde, de Maringá (PR), que deixou de oferecer boa parte do tratamento. 

Em agosto de 2023, a Santa Casa Saúde deixou de pagar a clínica em que, por orientação médica, Laura fazia sessões do modelo Therasuit. É um método pelo qual pacientes colocam roupas especiais e realizam atividades em aparelhos específicos, em um local chamado informalmente de “gaiola”, para estimular grupos musculares e neurológicos. No caso de Laura, eram três horas diárias de sessão — que se repetiam todos os dias. O Judiciário mandou a operadora voltar a arcar com o tratamento, o que ainda não aconteceu.

Mais do que lutar pela retomada do tratamento intensivo, Tatiane lamenta ter de ver, mesmo com a Justiça ao seu lado, o desempenho da filha regredir. “Minha filha estava evoluindo”, conta. “A Laura tinha deixado a cadeira de rodas e começado a ir à escola somente com a ajuda do andador. Ela poderia estar melhor, mas não. Agora, sem o Therasuit, há o risco de o quadro dela regredir.”

Segundo Tatiane, a situação só não é pior porque Laura conta com o apoio da CliniFisio. Sem receber da operadora do plano de saúde, a clínica responsável por atender Laura mantém, gratuitamente, sessões de alongamento, por cerca de 1h30, geralmente quatro vezes por semana. É a tentativa de evitar uma regressão. 

As redes sociais como aliadas

Desamparada pelo plano de saúde que custa R$ 1,5 mil mensais e já a fez gastar mais de R$ 10 mil com advogados, Tatiane percebeu que as redes sociais poderiam ser aliadas em sua luta. Pelo Instagram, comemora cada passo que, literalmente, Laura consegue dar. Agora, há mais de um ano sem o devido tratamento à sua filha, usa a plataforma como meio de divulgação para campanha de arrecadação. O objetivo é conseguir pagar pelos procedimentos negados pelo plano de saúde. “Estamos falando da vida e do futuro de uma criança.”

Fabiane tem atitude similar à de Tatiane. Além de movimentar os perfis da associação que preside – inclusive para convocar manifestação contra a decisão judicial que suspendeu a CPI dos Planos de Saúde – ela usa o ambiente virtual para destacar a luta de Daniel. Já promoveu rifa on-line e mantém no ar um vídeo em que explica a condição clínica de seu filho.

YouTube video

Enquanto as mães de Daniel e de Laura se manifestam e tentam amplificar cada vez mais a sua luta e a sua voz, os planos de saúde se calam. E comemorando lucros bilionários.

Leia também “Opioides: quando o alívio da dor é fatal”

10 comentários
  1. Felipe Polido Fernandes
    Felipe Polido Fernandes

    A legislação brasileira sufoca o crescimento nossos próprios empreendimentos – não por acaso 90% das empresas brasileiras são de médio, pequeno e micro porte. Outros países possuem maiores quantidades de empresas grandes, pois entenderam que elas são fundamentais para o desenvolvimento e enriquecimento da sociedade como um todo. Querem resolver mesmo o problema dos planos de saúde? Então baixem os impostos, ou zerem, de preferência, e desregulamentem o serviço, deixando as empresas respirarem ares de liberdade, e novas serem abertas para gerar mais competitividade. Verão, então, o serviço melhorar e os preços caírem. Enquanto continuamos vilanizando os donos de empresas neste país, vamos continuar sendo eternamente o país do futuro que nunca chega

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Não é pra gastar um tostão com plano de saúde é só ir pro SUS

  3. Lucas Scatulin Bocca
    Lucas Scatulin Bocca

    Parabéns à Revista Oeste! Uma publicação, cuja linha editorial é voltada à defesa do capitalismo e do livre mercado, publica um artigo eivado de analfabetismo financeiro. Contribui, assim, para desenvolver a ignorância financeira nacional (que já é alarmante), reforça o discurso do “capitalismo malvadão” e das empresas que só “visam o lucro e recorrem a expedientes cruéis” e, por fim, alimenta a tara nacional de pedir mais Estado para controlar o empresário “ganancioso e sem escrúpulos”. Vamos longe assim: até à esquina… e com muita sorte!

    1. Juliana saad de carvalho
      Juliana saad de carvalho

      Exatamente

  4. Lucas Scatulin Bocca
    Lucas Scatulin Bocca

    Bom, vamos lá: 261 bi em faturamento e 8,7 bi em lucro. Ou seja, o lucro representa 3,33% da receita. Assim, se as operadores abaixassem linearmente apenas 3,4% os preços dos planos, o resultado seria prejuízo. Da mesma forma, se os custos e despesas subirem 3,45%, mesmo mantendo os preços dos planos, o resultado seria prejuízo. Daí se observa a relutância das operadoras em aprovar os tratamentos. E há dois agravantes: nas receitas totais entram as receitas financeiras (reservas técnicas que as operadores precisam legalmente manter); como o custo é quase zero para auferir receitas financeiras, a margem de lucro dessas receitas é quase 100%. Ou seja, se desconsiderarmos as receitas financeiras e olharmos só o resultado operacional (receitas operacionais e custos/despesas operacionais), a coisa complica mais ainda. A margem de lucro é menor ainda (e, talvez, até próxima de zero ou mesmo prejuízo. Precisaria-se ver qual é o montante de receitas financeiras). Enfim, a situação das operadoras não é fácil. Outro ponto, pelos números apresentados, a Unimed está em situação um pouco melhor que a média (4,5% de margem), ou seja, há as que estão piores que a média.

    1. Juliana saad de carvalho
      Juliana saad de carvalho

      Como a nossa, aqui. Devendo muito e os cooperados pagando.

  5. Isa Maria Borba
    Isa Maria Borba

    Desanimador manter um plano de saúde neste país. Cansei de brigar com o meu a Prevent Sênior, e nesta semana, cancelei, após pensar e repensar. Justiça??? É é perda de tempo. Vc paga e não recebe a mínima consideração.

    1. Elizabeth Mira Piola
      Elizabeth Mira Piola

      Estou na m

      1. Elizabeth Mira Piola
        Elizabeth Mira Piola

        Estou na mesma situação. A Amil descredenciou dois hospitais, desde 6 de janeiro e sem nenhuma prévia comunicação. Só fiquei sabendo ontem, quando levei meu marido ao PS do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e não fomos atendidos. Tive que sair de lá e procurar outro hospital. Pagamos $ 6.000 por mês. Porém, a mensalidade não foi reduzida. Vou acionar a justiça, que também não quer dizer nada, pois já tivemos descumprimento de sentença, em outra ocasião por parte da operadora. Desanimador e revoltante.

  6. Bibliófilo

    O objetivo dos planos de saúde não é atender a seus conveniados, mas auferir lucros estratosféricos com pouco gasto.

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