“Se as nossas autoridades não se preocuparem
com a Amazônia, mais cedo ou mais tarde,
ela se destacará do Brasil, natural e irresistivelmente,
como se desprega uma nebulosa de seu núcleo,
pela expansão centrífuga de seu próprio movimento.”
(Euclides da Cunha, Um Paraíso Perdido)
Um ano depois de deixar Belém e navegar mais de 2 mil quilômetros subindo os Rios Amazonas e Napo, o capitão Pedro Teixeira, com parte de sua tropa, abandonou suas canoas em Payamino e seguiu a pé rumo a Quito. Numa região de vales e quebradas, ele saiu de uma altitude de algumas centenas de metros para “calcar com suas plantas os alcantilados cerros”, a quase 3 mil metros. Enfrentou o frio e os rios encachoeirados em pinguelas de corda. Foram mais de 50 dias para vencer 80 léguas até descer a quase centenária vila castelhana de Baeza, a 2 mil metros de altitude. Foi o pior trecho de sua jornada de Belém a Quito.
Informada por Bento Rodrigues, a Real Audiência de Quito já havia enviado a Baeza mensagens e meios para ajudar a expedição a concluir sua marcha. Aguardado e acolhido pelas autoridades, recebeu mantimentos, cartas e informações sobre a passagem de Bento Rodrigues. Permaneceu oito dias em Baeza se recuperando, e logo prosseguiu a Quito, uma centena de quilômetros, de montaria, por caminho bem traçado e frequentado.
O vice-rei do Peru em Lima, Jerônimo Fernandez de Cabrera Bobadilla y Mendoza, conde de Chinchón, também foi informado da chegada da vanguarda portuguesa a Quito. O intrépido coronel Bento Rodrigues e alguns de seus homens foram até Lima dar-lhe pessoalmente a notícia, além de informações sobre a expedição. Eles viram o Oceano Pacífico e retornaram a tempo de aguardar a chegada tão esperada de Pedro Teixeira.

Pedro Teixeira encontrou Bento Rodrigues, dez meses depois de terem se separado, aguardando-o com sua guarnição no povoado de Pupas, hoje Pifo, “sentinela do Oriente, porta de entrada da Amazônia”. Sabendo de sua chegada, povo, clero e Câmara de Quito saíram ao seu encontro em procissão. Foram muitos eventos coreografados, vários dias de festejos organizados pelas autoridades, de Te Deum a corrida de touros. Uma inscrição na fachada da Catedral de Quito evoca esse feito.
Em 10 de novembro de 1638, Pedro Teixeira e Bento Rodrigues entraram juntos em Quito, triunfalmente acolhidos por D. Alonso de Salazar, presidente da Real Audiência. Os espanhóis custavam a acreditar: aqueles portugueses haviam subido o Amazonas de barco e a Cordilheira a pé. A correspondência entre D. Salazar em Quito e o vice-rei do Peru, o conde de Chinchón em Lima, indica a clara preocupação com o feito dos lusos. Depois, em Madri, o Conselho das Índias sugeriu ao rei punir Jácome de Noronha por ordenar a expedição à revelia das autoridades espanholas.
A 2 de janeiro de 1639, Pedro Teixeira terminou de redigir em Quito sua “Relação do Rio das Amazonas”, um relato da sua senda naval e terrestre, hoje preservada no Museu da Ajuda, em Portugal. Ela termina com esta declaração: “E todo o contido nessa relação o certifico e juro pelos Santos Evangelhos ser tudo verdade por ter andado nele e visto com meus olhos e me ter certificado de muitas coisas para não parecer fabuloso”.
Por razões políticas, as autoridades de Lima determinaram, e as de Quito providenciaram, o rápido regresso ao Brasil dos lusitanos, acompanhados (e vigiados) por castelhanos. Ao final da viagem, esses súditos fiéis levariam a documentação a Madri. Recorreram ao provincial dos jesuítas, para tristeza dos Franciscanos, e esse nomeou o padre Cristóbal de Acuña, irmão do corregedor de Quito, e o padre Andrés de Artieda, professor de teologia: “Partam imediatamente da cidade São Francisco de Quito, em companhia do Capitão Mor Pedro Teixeira, e chegando à do Pará, passem à Espanha, a dar conta ao rei, nosso Senhor, em sua real pessoa, de tudo o que cuidadosamente tiverem notado no decurso da viagem”.
Além dos jesuítas, acompanharam a expedição de retorno quatro religiosos da Ordem Calçada de Nossa Senhora das Mercês, os mercedários: Pedro de la Rua Cirne, João da Mercê, Diogo da Conceição e o superior dos três, Affonso de Armejo. Os dois últimos não chegaram a Belém, “a morte lhes tirou em caminho”. Os outros não seguiram à Espanha. Preferiram “fazer assistência perdurável no Pará” e construíram “Igreja e Convento de sua ordem junto ao mar entre o Convento dos Capuchos e o cotovelo da fronte de terra”, segundo o Compêndio das Eras da Província do Pará, de 1838.
O general D. Juan Vásques de Acuña, tenente capitão general do vice-rei do Peru, corregedor de Quito, ofereceu-se a participar, apoiar com seu pessoal, pagar soldados e mantimentos, dispor apetrechos, munições e arcar com os gastos para estar na jornada de regresso. Não surtiram efeito suas boas intenções, segundo o padre Acuña, seu irmão. Alguns homens de Pedro Teixeira ficaram em Quito e mudaram completamente de vida.
Pedro Teixeira saiu em 16 de fevereiro de 1937 e alterou o caminho da volta, por causa das dificuldades encontradas por Payamino. De Baeza seguiu para Archidona e desceu o Rio Misahuallí até o Napo. A partir da atual Puerto Napo, desceu com seus homens pelo rio até a foz do Aguarico, por mais de 300 quilômetros. Foi grande a alegria dos portugueses em sua chegada, quase um ano depois de os deixar. Muita comemoração.
Havia ocorrido uma verdadeira guerra com os Encabelados. Índios foram mortos e feitos prisioneiros. Exemplo de disciplina, esses militares e seus homens haviam resistido “a pé quedo”, com poucos alimentos e muitas enfermidades. Nunca pensaram abandonar o local ou não cumprir a missão designada. Pedro Teixeira ficou alguns meses, refazendo barcos perdidos, destruídos e organizando o retorno da expedição a Belém.
Em 16 de agosto de 1639, Pedro Teixeira fez celebrar uma missa solene, fixou um marco-padrão com as quinas lusitanas e tomou posse do local, entendido como o extremo ocidental da conquista portuguesa: Pródromo da Restauração. Ali, em uma das margens do Rio Napo, na confluência com o Aguarico, Pedro Teixeira fundou o povoado da Franciscana, seguindo instruções sigilosas de seu Regimento, para servir “de baliza aos domínios das duas Coroas”: a leste Espanha, a oeste Portugal.
Uma ata foi lavrada e assinada por uma dezena de testemunhas. Diz um trecho: “Tomo posse destas terras, se houver entre os presentes alguém que a contradiga ou a embargue, que o escrivão da expedição o registre”. Pedro Teixeira pronunciou essas palavras com as mãos cheias da terra do local. No final da declaração, atirou a terra para o ar. Como ninguém o contestou nem contradisse, o escrivão apanhou terra, colocou de novo nas mãos de Pedro Teixeira e fez assim a apreensão territorial “em nome de el Rey Felippe IV, Nosso Senhor pela Coroa de Portugal”. A ata foi sabiamente registrada na Câmara de Belém e homologada nas duas capitais ibéricas. Quando da negociação do Tratado de Madri, em 1750, essa ata tornou inquestionável a posse portuguesa do alto Amazonas.
O padre Alonso Rojas redigiu a “Relación del descubrimento del río e las Amazonas”, em 1639, usada no livro Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas, do padre Cristóbal de Acuña, em 1641 (Madri). Ele refere-se ao caudillo Pedro Teixeira, com quem conversara ao longo da viagem, como alguém prudente e diligente, gastara de seus próprios bens “sino también com mucho dispendio de su salud, si bien nada de esto es cosa nueva, en quien por tantos años que há que sirve a su Majestad, nunca se há granjeado otros intereses que dar honrada cuenta de todo lo que se le há encargado, que há sido mucho”. Curiuá-Catu, “ou homem branco bom“, e amigo, assim os indígenas da expedição chamavam a Pedro Teixeira.

No final da expedição, Pedro Teixeira redigiu um “certificado” elogioso ao comportamento dos jesuítas, colocado integralmente no livro do padre Acuña:
“E no tocante às obrigações do seu Hábito e serviço de Deus, acudiram sempre como costumam fazer os da sua Religião: pregando, confessando e doutrinando a todos os do exército, esclarecendo-os em suas dúvidas, reconciliando-os em suas renzilhas, animando-os em seus trabalhos e pacificando-os em suas discussões, como verdadeiros pais de todos; passando os mesmos incômodos e trabalhos que qualquer dos soldados particulares, tanto na comida, como em tudo o mais.”
O relato do padre Acuña é detalhado e adverte o rei espanhol, em Memorial apresentado ao Real Conselho das Índias, sobre o risco e os danos de uma aliança imaginária de portugueses com holandeses para conquistarem o Peru pelo leste, pela via do Rio das Amazonas: “Pues si unidos com el holandes como lo estan muchos del Brasil, intentasen semejante atrevimiento, ya se ve el cuidado que pudiera dar”. O governo espanhol mandou recolher e destruir a publicação, preocupado com a divulgação dessa rota às minas peruanas e possíveis pretensões territoriais portuguesas, numa futura Restauração do Trono Lusitano.
Juridicamente, para os critérios daqueles tempos, estava comprovado o princípio do direito privado romano do uti possidetis, ita possideatis (“quem possui de fato possui de direito”), delineando os contornos aproximados do Brasil de hoje. Era o direito de um país sobre um território ocupado de forma efetiva e prolongada, independentemente de título. Legitimou-se cartograficamente a posse portuguesa da protuberância amazônica em direção ao Pacífico, e isso tornou o Brasil geopoliticamente coerente.
No Tratado de Madri de 1750, mais de um século depois da saga de Pedro Teixeira, o Brasil incorporou metade de seu território atual, grande parte da Bacia Amazônica, um imenso tesouro hídrico, geológico, biológico e cultural. O santista Alexandre de Gusmão foi o redator do Tratado e o idealizador da aplicação do uti possidetis.

Em 12 de dezembro de 1639, no advento do Natal, Pedro Teixeira, como uma espécie de Rei Mago equatorial, chegou a Belém (do Pará), depois de dois anos de viagem, com um presente territorial inigualável para ofertar às gerações futuras do Brasil: a Amazônia. Foram mais de 4 mil quilômetros a remo e vela. Realizaram mapas valiosos. Não eram invenções cartográficas, ideológicas ou mentais. Foi Bento da Costa o autor do primeiro mapa do Rio Amazonas, editado em 1638, orientado leste-oeste, e conservado no Itamaraty. Ele reposicionou a cartografia da Amazônia, lusitana e castelhana. O mapa dos leigos franciscanos, de maio de 1637, é conservado no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
Pelos serviços prestados na conquista da Amazônia, Pedro Teixeira foi agraciado com o título de Marquês de Aquella Branca e nomeado, pelo rei Felipe IV, capitão-mor e governador da Capitania do Grão-Pará. Assumiu em fevereiro de 1640 e exerceu até maio de 1641. A Restauração, o fim da União Ibérica, ocorreu em 1º de dezembro de 1640. Eram novos tempos.
A cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará prosperou com a chegada de novos migrantes. Uma carta holandesa de 1640 reproduz com muita fidelidade a vila de Belém e seus arredores. Uma erupção do vulcão Faial, nos Açores, trouxe a Belém mais de 50 famílias de agricultores, em 1676. Outras cartas e plantas portuguesas posteriores de 1751, 1753, 1761, 1773, 1780 e 1800 permitem constatar a evolução urbana de Belém.
Pedro Teixeira desejava retornar a Portugal para cuidar de sua saúde, por tantas lutas e uma vida dedicada à defesa da Amazônia e dos interesses da Coroa Portuguesa. Deixou o governo do Pará a Francisco Cordovil Camacho. Quando preparava sua viagem para Lisboa, uma doença tirou-lhe a vida. Morreu em 4 de julho de 1641, com idade entre 60 e 70 anos, dada a imprecisão na data de seu nascimento, situada entre 1570 e 1585. Foi sepultado na modesta Igreja de Nossa Senhora da Graça, face à ponte levadiça do Forte do Presépio. No século 18, seus restos mortais foram transferidos para a Catedral da Sé de Belém, sob o altar-mor.
Ele ainda é um personagem pouco conhecido na história do Brasil e de Portugal. Em Belém há um monumento com a estátua de Pedro Teixeira, erigido em 1966, por ocasião dos 350 anos da fundação de Belém, diante do prédio da antiga aduana. Em Cantanhede, onde nasceu, há uma escultura em bronze, executada em 1993 por Celestino Alves André. Em Cametá, de onde saiu sua expedição (Vila Viçosa), há uma estátua e um obelisco. A Rodovia BR-316, de Belém a Maceió, leva o nome de Pedro Teixeira.
Ninguém excedeu Pedro Teixeira em serviços à Coroa portuguesa na Amazônia. Graças ao seu valor e à façanha de sua esquadra, Portugal expandiu sua fronteira amazônica até os contrafortes dos Andes. Sua vida é passagem incontornável a quem se interessa pela Amazônia. Hoje, o Estado é incapaz de promover o desenvolvimento regional. Promove o atraso, o “subdesenvolvimento sustentável” e a insegurança jurídica no mundo rural.
Várias dimensões da soberania nacional sobre a Amazônia já foram perdidas, entregues a ONGs, organizações e fundos estrangeiros, além do narcotráfico. Pior, a retórica de governantes, elites bancárias e certos “faria limers” indica uma possível capitulação na futura COP30 de Belém, ao aceitar a soberania compartilhada da Amazônia com potências estrangeiras.

O general Rodrigo Otávio Jordão Ramos deixou uma frase lapidar, dístico presente na fachada dos quartéis na Amazônia: “Árdua é a missão de desenvolver e defender a Amazônia. Muito mais difícil, porém, foi a de nossos antepassados em conquistá-la e mantê-la”. Missão perdida? Como defendê-la? Haverá capitulação e crime de lesa-pátria em Belém na COP30? A Amazônia brasileira será, ainda mais, derridamente desconstruída?
Dar vida digna a quase 30 milhões de habitantes da Amazônia! As 750 cidades da Amazônia possuem os piores índices de desenvolvimento social e saneamento. Avançar em regularização fundiária e assistência a 1 milhão de produtores rurais. Só em assentamentos do Incra há meio milhão de famílias, em mais de 2,3 mil projetos agrários, sem título de propriedade. A principal garantia da soberania nacional sobre a Amazônia é a presença humana. Uti possidetis.
Leia também “A saga amazônica de Pedro Teixeira — Parte 1”
Parabéns pelo excelente texto. Infelizmente, hoje a população brasileira é vítima de uma campanha informacional de relativização da soberania brasileira sobre a Amazônia , por meio do terrorismo ecológico. Mais grave é não termos lideranças políticas dispostas, para não falar outra coisa, a fazer frente a essa ameaça.
Chegando aos 70, fico feliz que alguns brasileiros tem a gentileza de nos premiar com a história perdida de nossa pátria, em especial, da região amazônica; cuja soberania esta ameaçada por governantes ignorantes e traidores.
Ao mesmo tempo que nos demonstra os desafios enfrentados para a conquista territorial da Amazônia, árduos e corajosos conforme o rico relato, o Professor Evaristo, alerta sobre a imperiosa necessidade de garantirmos nossa soberania sobre esse mundo de riquezas ainda praticamente inexplorado.
A oportunidade é agora, durante a COP 30, de demonstrarmos firmemente, que quaisquer proposiçöes que tentem esbarrar em nossa soberania, será inegociável.
Parabéns pelo belo texto, Mestre Evaristo.
Precisamos honrar esses intrepidos conquistadores
Como deve ter sido dificil e penosa essa conquista
A Amazonia é nossa e deve permanecer assim
Um primoroso tratado o conjunto dos dois artigos do professor Evaristo de Miranda sobre esse personagem pouco conhecido de nossa história. Uma injustiça que o Pedro Teixeira não ocupe o lugar de destaque merecido.
Voz altiva nessa COP 30 se faz necessária!
Aula de história e cidadania. Parabéns pelo primoroso artigo.
Este segundo artigo sobre Pedro Teixeira e a conquista da Amazônia do Dr. Evaristo de Miranda publicado pela Revista Oeste reúne um tesouro de informações históricas, geopolíticas e humanas ainda desconhecidas de grande parte da população. A tarefa de conquistar a Amazônia e incorporá-la ao Brasil por nossos antepassados foi muito mais árdua do que a nossa de manter uma soberania brasileira tão contestada sobre a região. Que o governo na COP 30 não capitule frente aos interesses e à cobiça estrangeira.