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Alexandre de Moraes e os livros O Príncipe, O Pequeno Príncipe e Grande Sertão: Veredas | Foto: Montagem Revista Oeste/Marcelo Camargo/Agência Brasil/Divulgação
Edição 259

Moraes: ‘patético e medíocre’

Moraes, o próprio Estado a punir até os mais humildes dissidentes, insurge-se demasiada e desproporcionalmente contra homens muito mais fracos

Tiago Pavinatto
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Do céu, calhou de cair o cuspe covarde na corajosa careca. O fato aconteceu na última quinta-feira do mês de fevereiro do ano da desgraça de 2025 quando, debaixo do Cristo na cruz, reuniam-se os 12 — contando com o procurador-geral da República e apesar da presença virtual do ministro Alexandre de Moraes (tão remoto do seu lugar à mesa quanto Judas Iscariotes ao sair mais cedo da ceia Naquele Tempo) — para, celebrando a nova aliança que rompera com os mandamentos da velha lei brasileira, defenderem-se a si mesmos em vez de julgarem defesas alheias.

Sessão plenária do STF, em Brasília, DF (27/2/2025) | Foto: Rosinei Coutinho/STF

On-line, Moraes estava na mesma nuvem onde o jazido cuspe perdera-se faz quase ano e meio; parado ali desde o dia 14 de setembro de 2023, isto é, desde o momento em que foi lançado às alturas pelo próprio Moraes junto da humilhante reprimenda que dirigira a um advogado:

“É patético e medíocre que um advogado suba à Tribuna do STF com um discurso de ódio com um discurso para postar depois nas redes sociais, porque veio aqui para agredir o STF, talvez pretendendo ser vereador no ano que vem. […]. Hoje, [os estudantes de Direito presentes na sessão] tiveram uma aula do que o advogado constituído não deve fazer pra prejudicar o seu constituinte. Ou seja, esquecer o processo e querer fazer uma média com os ‘patriotas’. Realmente, é muito triste. E só não seria mais triste — ou é mais triste —, porque, ainda, confundiu O Príncipe, de Maquiavel, com O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, que são obras que não têm absolutamente nada a ver. Mas, obviamente, quem não leu nem uma nem outra vai no Google e, às vezes, dá algum problema.”

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Em que pesem as violações legais na descortesia do magistrado, bem como o estranhamento acerca da “aula do que o advogado constituído não deve fazer para prejudicar o seu constituinte” (isto é, o fato de Moraes ter querido ensinar ao advogado como prejudicar o seu cliente a partir do que ele “não deve fazer”), e, por fim, a despeito da sua orgulhosa e imperiosamente sacrossanta ignorância em francês — pronuncia-se /antoan/ para Antoine ou, para lusófonos como Aldo Rebelo, /antoíne/, pronúncia muito distante de seu junino /antoniê/ —, o cuspe em análise representa os predicados “patético e medíocre”.

Se, para o Peritus Peritorum tupiniquim, “é patético e medíocre” todo profissional do Direito que menciona, via Google e sem que as tenha lido diretamente, obras literárias, ou Moraes carece de razão e está equivocado nessa sentença ou, caso esteja completamente certo, ele é, segundo ele mesmo, “patético e medíocre”. Eis o próprio cuspe a colidir com a sua testa sem fronteiras no último dia 27 de fevereiro:

“Deixamos de ser colônia em 7 de setembro de 1822. E, com coragem, estamos construindo uma República independente e cada vez melhor. Uma República independente e democrática com a Constituição de 1988. E construindo com coragem, pois, como sempre lembrado pela nossa eminente ministra Cármen Lúcia, citando Guimarães Rosa, ‘o que a vida quer da gente é coragem’.”

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Foram as palavras da sua danação. Ao se esquecer do processo que julgava para fazer uma média com os colegas ministros e vituperar-se em elogios de boca própria, o que já seria muito triste, Moraes confundiu não apenas paráfrase com citação, mas também trocou eu lírico por autor e recorreu a um trecho de Grande Sertão: Veredas para fundamentar um posicionamento pessoal diametralmente contrário ao sentido da obra de Guimarães Rosa. Obviamente, na esteira do que dissera em 14 de setembro de 2023, ele nunca leu o livro, foi ao Google e, agora, lascou-se.

Cumpre destacar que Moraes é, conforme sua própria afirmação, muito, mas muito, muito mais “patético e medíocre” que o advogado repreendido, pois, se o advogado tão somente confundira-se, uma única vez, com os títulos semelhantes de duas obras mundialmente famosas, Moraes, por seu turno, sequer confunde: ele erra; erra feio.

Em primeiro lugar, tomando como base as 604 páginas do único romance de Guimarães Rosa na 19ª edição de Grande Sertão: Veredas, reimpresso pela editora Nova Fronteira em 2001, não se encontra, ipsis litteris, em lugar nenhum do texto, a frase “o que a vida quer da gente é coragem”. A citação de Moraes é fake news, é pura e daninha desinformação, pois uma citação consiste na reprodução literal e fiel das palavras do autor mencionado. Logo, não poderia estar “citando”.

Capa do livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicado pela editora Nova Fronteira | Foto: Divulgação

Segundo erro, mesmo que citação houvesse, é inadmissível que um professor tão titulado não saiba distinguir o eu lírico, personagem fictício que narra o romance em primeira pessoa, do autor da obra literária, que pode em nada comungar das suas convicções. Ora, a falsa citação de Moraes que ele falsamente atribui a Guimarães Rosa (autor) se insere no seguinte trecho da narrativa do ex-jagunço Riobaldo (personagem eu lírico) à página 334 da mencionada edição:

“A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso — o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Nesse sentido, teria feito o ministro uma paráfrase em vez de uma citação? Não. Moraes nem sequer poderia estar “parafraseando”, já que a paráfrase implica não apenas a reescrita, sem copiar a linguagem exata do autor, de um conteúdo com palavras próprias, mas também a preservação do sentido original, uma vez que deve demonstrar a compreensão da essência da obra.

Guimarães Rosa durante suas viagens pelo sertão, em 1952 | Foto: Wikimedia Commons

O terceiro erro de Moraes, portanto, está no desconhecimento, incompreensão ou desvirtuamento do real sentido da palavra “coragem” no contexto literário dentro do qual ela é inserida. O real sentido exsurge na mesma página 334, quando Riobaldo revela compartilhar convicções com Zé Bebelo: “Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente”.

Tudo o que se pode saber sobre Zé Bebelo encontra-se resumido nas páginas 294 e 295 do romance nas palavras do próprio personagem:

“Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra… Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. […] Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados… Coisa que eu queria era proclamar outro governo […]. Não obedeço ordens de chefes políticos. […] … Agora perdi. Estou preso. […]. Julgamento — isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para que? Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem que não tenho medo… Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte.”

Trocando em miúdos, a ideia de “coragem” — deturpada como a Constituição de 1988 na falsa e insidiosa citação de Moraes —, em Grande Sertão, está na confissão de fé daquele que se insurge contra homens fortes e nunca contra mais fracos (covardia), que briga de igual para igual e sem trapaças, que não gosta do governo e das autoridades que somente tiram do povo e, por isso, as desobedece mesmo estando em desvantagem. Coragem é não ter medo de ser julgado.

Ministro Alexandre de Moraes, durante sessão da Primeira Turma do STF (25/2/2025) | Foto: Rosinei Coutinho/STF

Por óbvio, Moraes, o julgador universal, jamais julgado, nunca poderia parafrasear tal “coragem”. Moraes, o paladino das instituições, é, na verdade, inimigo da coragem como virtude nos sertões. Moraes, o excepcional, trapaceia. Moraes, o próprio Estado a punir até os mais humildes dissidentes, insurge-se demasiada e desproporcionalmente contra homens muito mais fracos. Quanto mais detém o monopólio da violência estatal, mais severo é Moraes, de maneira que é possível citar (apropriadamente) o velho refrão de Bezerra da Silva: “Você, com revólver na mão, é um bicho feroz; feroz. Sem ele, anda rebolando e até muda de voz”.

Disso se extrai o erro de número quatro: chamar de coragem a sua patente covardia. Poderíamos recorrer ao Górgias ou Protágoras, ambos de Platão, para demonstrar que coragem (virtude) e covardia (vício) são inconfundíveis, mas dissuadir um covarde do seu delírio de coragem é tarefa tão inglória quanto ensinar etiqueta a uma tarambola.

De duas, uma: ou Moraes é, em seus próprios termos, patético e medíocre ou pretende esvaziar a palavra “coragem” para rotular a sua covardia da mesma forma que esvaziou “democracia” para travestir o seu fascismo — o que também é, a qualquer plateia alfabetizada, patético e medíocre. Ou ambas?

Leia também “Ele está de volta… e, ainda, está aqui”

25 comentários
  1. Magda Almeida Silva de Assis
    Magda Almeida Silva de Assis

    Pavinatto consegue tocar a alma do leitor de uma forma muito mágica e verdadeira! É genial!

  2. Marcos Kiugiro Ferreira Koyama
    Marcos Kiugiro Ferreira Koyama

    Fabulosa dissecação da personalidade do nefasto Alexandre de Morais prezado Tiago Pavinatto.

  3. João Marcos Cavalcanti Filho
    João Marcos Cavalcanti Filho

    👏👏👏👏👏👏

  4. Isa Maria Borba
    Isa Maria Borba

    Pavinatto, Excelente artigo . Coragem faz parte de muito poucos cidadãos neste país, e vocês aí da Revista Oeste são o exemplo. Me encaixo nela.

  5. Carlos Gomes Monteiro
    Carlos Gomes Monteiro

    Grande Pavinato, erudito e mordaz contra o fascismo e a orgulhosa ignorância.

  6. Jorge Fernandes
    Jorge Fernandes

    Bravo! 👏🏻👏🏻

  7. Urbano Medeiros
    Urbano Medeiros

    Pavinato é um dos grandes, receba meu mais sincero respeito!!

  8. Marcos Venicio Zanetti David
    Marcos Venicio Zanetti David

    Bravo Pavinatto!!! Com certeza ambas as insinuações se encaixam para o malfeitor… Desvio de caráter e psicopatia idem… Parabéns pela publicação!

  9. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    O Grande Sertão não é para idiotas.
    Tem muitas trilhas, encruzilhadas, muitos labirintos e etcs, você sabe.
    Encantada estou eu com seu texto.

  10. Antonio Gonçalves Da Silva Filho
    Antonio Gonçalves Da Silva Filho

    A toga, por si só, não é sinônimo de discernimento ou capacidade cognitiva. Constantemente brotam néscios dos tribunais, inclusive, dos tribunais superiores.
    A aura de vestal, infelizmente, não lhe cabe, mesmo ostentando, aparentemente, uma fachada de catedral. É puramente bordel, com o máximo respeito às profissionais do ramo.

  11. Elias José de Souza
    Elias José de Souza

    Bem vindo Pavinatto, parabéns pelo belo artigo.

  12. João Alves Soares
    João Alves Soares

    O texto está magnífico. Parabéns!

  13. JORGE LUIS
    JORGE LUIS

    Ana Paula, não se cansa de dizer que existem dois mestres, eu já incluo um terceiro em minha lista. O teu corpo e tua juventude, não condiz com a tua experiência, não só desta vida. Você, além de ser iluminado, sábio, caminha na direção certa, pelo direito. Tenha certeza que você foi a maior aquisição da Revista Oeste! Obrigado.

  14. Marcio Puga
    Marcio Puga

    Excelente. Parabéns.

  15. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    Não me canso de repetir: Pavinatto, você é genial, além de muito corajoso! Obrigada por nos presentear com este texto sensacional.

  16. José Luiz Fernandes de Castro Lima
    José Luiz Fernandes de Castro Lima

    Formidável e corajoso artigo!

  17. Nair Apparecida Ribeiro de Castro
    Nair Apparecida Ribeiro de Castro

    Como sempre, GENIAL. Lavou minha alma

  18. Francisco José Coelho de Morais
    Francisco José Coelho de Morais

    Jamais senti tanta vontade de ser José de Abreu como agora!

  19. Carlos Antônio de Carvalho
    Carlos Antônio de Carvalho

    Muito bom! Com sabedoria e perspicácia desnudou O palhaço e covarde Moraes 👍

  20. João Carlos Félix Souza
    João Carlos Félix Souza

    Como sempre BRILHANTE

  21. João Choucair Gomes
    João Choucair Gomes

    Nota 10

  22. Andrea Vidal
    Andrea Vidal

    Que coisa maravilhosa, Pavinatto. Que delícia ver aquele ser patético e medíocre sendo humilhado de forma tão inteligente e divertida.

  23. Hélio de Amorim Garcia
    Hélio de Amorim Garcia

    Excelente texto.

  24. Geikie Correa Almeida Zucco
    Geikie Correa Almeida Zucco

    Seus textos são surpreendentes.

  25. Fabio Reiff Biraghi
    Fabio Reiff Biraghi

    Muito bom!
    Julgamento é o que se tem que pedir, para não ter medo!

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