Há produtos culturais capazes de despertar tamanhas paixões que o objeto em si é convertido em questão acessória. A discussão passa a girar em torno daquilo que parece, das intenções do autor, não daquilo que é. O fenômeno internacional mais recente é o filme Mignonnes, disponível na Netflix.
Uso a palavra fenômeno para enfatizar aquilo que no verbete do Dicionário Houaiss é definido como a “apreensão ilusória de um objeto, captado pela sensibilidade ou também reconhecido de maneira irrefletida pela consciência imediata, ambas incapazes de alcançar intelectualmente a sua essência”. Essa apreensão ilusória é ainda mais grave quando se verifica que muitas reações contrárias ao filme foram expostas em redes sociais por pessoas que não o viram.
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Parte da controvérsia, ou da idiotia consciente, foi provocada pela própria Netflix, que divulgou pôster e descrição que não condiziam com o conteúdo do filme. O material sugeria que o filme fazia apologia, e não uma crítica, da sexualização de meninas por meio da música e da dança. Quando a empresa decidiu se desculpar, Inês era morta e a querela já estava estabelecida. Mesmo a correção da descrição é incorreta. O filme não é a história de uma criança que “começa a se rebelar contra as tradições conservadoras da família e encontra o seu lugar em um grupo de dança da escola”.
Quem assistiu ao filme e ali encontrou o resumo da Netflix ou um endosso à sexualização infantil, incentivo à pedofilia et caterva tem sérios problemas psiquiátricos, está completamente dominado por ideologia política ou é desonesto. Padece do mesmo diagnóstico quem viu na história a defesa da liberdade infantil, do direito a ser criança e outras sandices. Não se trata de produto que abre margem a interpretações: conteúdo e mensagem são claramente críticos à vinculação entre criança e sexualização.
Há nas personagens um misto de ingenuidade própria da idade com artimanha característica de criança quando quer algo
Mignonnes está longe de ser um grande filme, mas vale a pena ser visto. Como obra artística, tem o mérito de abordar com cuidado um assunto delicado. Mesmo nas cenas mais perturbadoras, evita o exibicionismo patético ou o panfletarismo tosco. Os personagens não são óbvios nem esquemáticos. E a atriz Fathia Youssouf está ótima no papel da protagonista Amy.
Filha de imigrantes muçulmanos do Senegal, Amy, de 11 anos, sofre o choque cultural ao conviver dentro de casa com os costumes e a religião da mãe e da tia-avó e, na escola, com crianças e adolescentes da periferia de Paris que são influenciados por uma cultura pop degradada. É por meio das redes sociais que crianças como ela têm acesso à música e à dança que celebram a sexualização. É a forma que ela encontra para fazer o que gosta (dançar) e se integrar ao grupo de dança das garotas populares da escola.
Ela, uma vez incorporada ao grupo, e suas colegas têm um entendimento precário a respeito do próprio corpo, de seu comportamento e do que suas atitudes provocam nos outros. Há nas personagens um misto de ingenuidade própria da idade, mas também de artimanha característica de criança quando quer algo ou quando é privada de algo. Numa das cenas, sem titubear e para se livrar da punição, uma delas ameaça denunciar como pedófilo o segurança de um local que invadiram. Nem toda inocência é inocente.
Amy, por exemplo, poderia ter sido retratada como “imigrante negra vítima da sociedade francesa” que se comporta de determinada maneira em razão de sua condição. Suas ações e reações estariam, portanto, justificadas. Não é dessa forma, porém, que a personagem é apresentada. Seu comportamento arredio, oscilante, agressivo, perturbado varia de acordo com as circunstâncias e ambientes, segue num crescente que assusta suas colegas até ela perceber, novamente, que é uma criança.
É um erro sugerir o uso de instituições estatais para censurar o filme
A própria ideia do que é ser criança provoca confusão na menina. Em casa, ela é ensinada que virou mulher porque teve a primeira menstruação. Isso também significa, de acordo com os costumes da família, estar pronta para se casar e constituir família. Na rua, na escola, na França, onde a cultura define a infância em razão da idade, ela “aprende” que, para ser mulher, deve imitar o comportamento de mulher que dança como quem transa. O enredo está longe de ser a história da menina que reage contra a família conservadora porque quer dançar com as colegas.
O caráter em formação de Amy encontra na negligência parcial da mãe, que vive seus dramas individuais e conjugais, o ambiente fertilizado para o desequilíbrio, para o furto, para a ilusão de que pode usar o próprio corpo e assim se tornar uma menina popular. Bem como para convencer o primo a deixar com ela o celular que dele havia furtado.
De todas as integrantes do grupo de dança, Amy se apresenta como a mais impetuosa e ambiciosa, a que está mais disposta a fazer o que for necessário para atingir seus objetivos. Nem que para isso seja preciso furtar o dinheiro da mãe. As agressões contra outras crianças, uma certa amoralidade e apatia no seio familiar, todos esses elementos integrados se expressam na personalidade labiríntica de Amy. Em determinado momento do filme, as parceiras de grupo percebem que ela fora longe demais e decidem se afastar.
Outro aspecto importante: todas as vezes em que as crianças cruzam os limites, são reprovadas por adultos e adolescentes. Caso o filme fosse sexualmente permissivo ou um panfleto político lacrador, os personagens se aproveitariam das meninas como meio de “denunciar a sociedade corrupta”. Em nenhum momento isso acontece.
Pelas entrevistas e artigo que li da diretora Maïmouna Doucouré, seu propósito era estabelecer um debate sobre a sexualização infantil. Mignonnes, de fato, poderia suscitar esse debate necessário. Mas esse debate necessário deveria ser sobre as responsabilidades dos pais, sobre os limites para o que uma criança pode ou não fazer, e o grau de exposição em apresentações públicas e nas redes sociais de alguém que não tem maturidade para tomar decisões. A discussão poderia extrapolar para a sexualização de mulheres crianças, adolescentes e adultas, principalmente, e não exclusivamente, em certo tipo de funk e de rap.
Outro debate necessário deveria ser a respeito da impossibilidade de acusar disso ou daquilo um filme que nem sequer foi visto e do erro de querer usar instituições estatais para institucionalizar a estupidez e a censura. Isso, obviamente, não é conservadorismo. É o casamento entre burrice e moralismo, a doença infantil de certo direitismo.
Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Vai ler o Constantino rapaz!!
Não gostei nada do que li.
Lamentável!
Bruno Garschagen está precisando estudar Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt, para reconhecer suas estratégias sutis porém nefastas.
Você usa de adjetivação altamente agressiva contra pessoas que você nem conhece, que você chama de “certo direitismo” mas quer defender algo que talvez você tenha interpretado de forma errada. Seu texto não me convenceu; ainda mais tendo em mente as cenas que a Netflix escolheu para divulgação do filme e tendo também em mente o comportamento de “certo esquerdismo” quando se trata de sexualização infantil. Contenha-se em seu adjetivos e não agrida seus leitores que são, na verdade, leitores da Revista.
Concordo com você, Nara. Essa ideia “genial” que o Bruno teve de tentar lacrar usando certos tipos de adjetivo demonstra um certo esquerdismo camuflado, mas, certamente, não de todo escondido.
Não assisti o filme e não pretendo assistir. Daí não posso emitir opinião sobre a intenção da autora. Porém a cena de dança das meninas que assisti é degradante e por só já diz muita coisa. Vale o cuidado!!
Perfeito! Não se trata de um grande filme. Não faz apologia da sexualização da infância. Não é relativista. Não é condescendente com o Islã. Não poupa a degradação moral ocidental. E, no último minuto do filme, ainda traz um pouco de esperança.
Bruno, assisti o filme através da crítica, infundada, da Ministra Damares.
O filme é excelente e passa, justamente, a mensagem que você apontou.
Ótimo texto. É importante apontar as falhas dos participantes do governo, que exacerbam nas críticas.
Um grande abraço.
CHAMOU PARA A REFLEXAO…
Mais um burro moralista lendo esse artigo. Discordo do Bruno, respeitando suas observações. A agenda progressista de introduzir a sexualidade infantil entra de forma sutil e silenciosa nas casas das pessoas, as cenas divulgadas mostram claramente a intenção do filme, porém, muito bem embalada em uma história com drama, emoção. A mim e a minha família eles não enganam mais.
Eu também não verei o filme
Concordo com o Bruno e vou assistir o filme para ter minha própria opinião. Acho também que Damares chamou atenção para o filme, que terá maior audiência graças à tentativa de censura.
Putz, me descobri um burro moralista. Vou tentar nascer de novo.
Gostaria de sugerir ao autor deste texto, Bruno Garschagen, que desse uma passada de olhos no artigo de Rodrigo Constantino. Talvez mude de opinião.
Desculpe Bruno, tanto faz ser “Mignonnes” ou “Cuties”.
O absurdo de cultivar cenas de sexualização infantil não merece audiência em lugar algum.
Queremos ver danças sexualmente interessantes e legais? Vamos assistir “Embalos de Sábado a Noite”, “Footloose”, “Grease”, “Flashdance”, só para citar alguns.
Concordo com o Victor, uma leitura no artigo do Rodrigo pode ser esclarecedora.
😉 Abração…
Victor Luiz, faço minhas as tuas palavras.
Bruno Garschagen “pisou na bola”!
O limite da liberdade e da democracia são os pilares que a sustentam. Uma vez que a democracia e a liberdade tendam a minar esses pilares, que sustentam elas próprias, devem ser contidas até este ponto, sob a certeza (e não apenas o risco) da autofagia.
também me descobri burra e moralista, assisti uma parte e usei meu poder de censura, mudei de canal, acrescentando que eu jamais permitiria que uma filha minha fizesse parte desse filme.
Sequer terminei de ler o texto. A obviedde dos fatos é mais eloquente do que muitas palavras. Não enxergar apelo sexual vil nas cenas (alimento dos desviados e pedófilos) é ingenuidade sem tamanho.Liberdade para interpretar (e falar) o que lhe vem à mente é louvável, mas nem sempre essas liberdades nos conduzem para o caminho da verdade, utilidade e crescimento humano. É o caso desse filme. Não assisti e nem vou assistir, pois é despiciendo e deteriorante.
Ótima reflexão, porém me reservo o direito de não assistir ao filme, mesmo assim. As poucas cenas que foram divulgadas mostram menininhas “dançando como quem transa”, e isso só catalisa mais ainda ações pedófilas, imitações dessa postura pelas jovens tolinhas, etc
De sutilezas em sutilezas… Outras aprenderão que acusar alguém de pedofilia, sem que o seja, pode trazer vantagens.