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Ahmed al-Sharaa, presidente interino da Síria, durante entrevista ao podcast britânico The Rest Is Politics | Foto: Reprodução/Redes Sociais
Edição 260

A ingenuidade do Ocidente diante do novo governo sírio

O massacre de civis alauitas expôs a sombria realidade do novo regime

Tim Black, da Spiked
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Três meses atrás, o brutal regime sírio de Bashar al-Assad desmoronou diante de uma insurgência liderada por Ahmed al-Sharaa, líder do grupo islâmico Hayat Tahrir al-Sham (HTS). Desde então, políticos, autoridades e especialistas ocidentais têm se debruçado sobre o novo governante da Síria como se fosse um terno barato.

Apesar de o HTS, uma antiga afiliada da Al-Qaeda, estar na lista de organizações terroristas dos EUA, do Reino Unido, da União Europeia e da ONU, autoridades americanas, britânicas e europeias passaram os últimos meses indo a Damasco para confraternizar alegremente com o novo regime. Houve sessões de fotos com Sharaa e várias delegações da União Europeia, e até mesmo com Karim Khan, promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional. No mês passado, o presidente francês Emmanuel Macron “parabenizou” publicamente Sharaa pela derrubada de Assad e até o convidou para um encontro em Paris.

Poucas cenas capturam melhor o absurdo da adesão do establishment ocidental a esse jihadista do que a aparição de Sharaa no mês passado no The Rest Is Politics, um podcast britânico para pais centristas. Alastair Campbell e Rory Stewart, os dois apresentadores, estavam muito sorridentes, tratando Sharaa mais como um líder dos Liberais Democratas do que como o chefe de uma violenta insurgência islâmica.

Agora os trágicos eventos dos últimos dias expuseram essa adesão a Sharaa e ao HTS como o que ela sempre foi: o fruto de uma esperança iludida e desesperada.

Corte da entrevista do líder da Síria, Ahmed al-Sharaa, ao podcast The Rest Is Politics | Foto: Reprodução/X

Homens, mulheres e crianças

No dia 6 de março, em um vilarejo ao sul de Jableh, uma cidade costeira no noroeste da Síria, homens armados supostamente pró-Assad emboscaram uma patrulha de segurança do governo. Isso logo provocou confrontos violentos e unilaterais em toda a área entre milícias que apoiam o novo regime e membros da minoria alauita da Síria — o grupo muçulmano xiita do qual os Assad descendem e cujos membros vivem nas regiões costeiras da Síria.

No sábado 8, cada vez mais grupos armados reunidos sob a bandeira do governo provisório de Sharaa entraram na briga, e algumas cidades costeiras foram incendiadas. Ao que tudo indica, não se tratava tanto de restaurar a ordem, mas de retaliar. De acordo com testemunhas oculares e diversos vídeos compartilhados por residentes e combatentes, homens alauitas locais e até mesmo mulheres e crianças foram levados para as ruas e humilhados. Alguns foram então baleados à queima-roupa. Outros foram mortos em casa. Embora o número de mortos ainda não tenha sido verificado, as forças do governo provisório teriam matado quase mil civis.

Sharaa condenou esse massacre de alauitas e afirmou que “qualquer um cujas mãos estejam sujas com o sangue de sírios enfrentará a justiça mais cedo ou mais tarde”. No entanto, há um vazio inconfundível em suas palavras, dado o envolvimento de suas próprias forças.

A violência daquele fim de semana, quando antigas queixas étnicas foram executadas com um novo vigor apoiado pelo HTS, deveria ter acabado com qualquer ilusão que os políticos e especialistas ocidentais tivessem sobre a nova Síria de Sharaa.

Ahmed al-Sharaa, durante entrevista ao podcast britânico The Rest Is Politics | Foto: Reprodução/YouTube

Governo teocrático e repressivo

A questão é: por que tantas pessoas alimentaram qualquer ilusão sobre Sharaa e o HTS? Basta olhar para seu histórico. Ele é um produto da reação militante islâmica que varreu partes do Oriente Médio nas últimas décadas. Durante a adolescência, ele foi inspirado pelo primeiro levante do Hamas contra Israel na virada do milênio e, posteriormente, pelo ataque da Al-Qaeda às Torres Gêmeas, em 2001. Em meados do fim da década de 2000, Sharaa lutou com a Al-Qaeda no Iraque contra os EUA e seus aliados, para depois voltar à Síria e pegar em armas contra Assad, assumindo um papel de liderança na Frente Al-Nusra, afiliada da Al-Qaeda, durante a guerra civil síria.

Em 2016, a Frente Al-Nusra, que viria a se tornar o que hoje conhecemos como HTS, rompeu com a Al-Qaeda na Síria. Sharaa e sua milícia islâmica desenvolveram uma reputação formidável como força de combate, especializando-se em atentados suicidas, explosivos improvisados e ataques impiedosos contra os militares sírios. Em 2017, o HTS havia assumido o controle efetivo de uma parte considerável do noroeste do país onde, apoiado em parte pela Turquia, Sharaa estabeleceu o “governo da salvação”, com capital em Idlib.

Sua administração no noroeste da Síria sempre foi um indício sombrio de como poderia ser um governo nacional do HTS — caso alguém se dispusesse a prestar atenção. Seus militantes ameaçaram as comunidades cristãs e drusas, eliminaram as liberdades das minorias e chegaram a executar alguns dos que se recusaram a se converter ao islamismo. Seu governo foi teocrático e repressivo. As mulheres eram obrigadas a se vestir de forma conservadora, e algumas foram forçadas a se afastar de cargos públicos.

Apesar de suas recentes declarações favoráveis ao Ocidente sobre a proteção dos direitos das minorias, a promoção da inclusão das mulheres e o estabelecimento do Estado de Direito, pouca coisa sugere que ele seja sincero. Muitos dos cargos mais altos no novo governo provisório de Sharaa foram ocupados por seus associados do governo de salvação. Já houve tentativas por parte de alguns funcionários de suprimir a liberdade das mulheres e introduzir um sistema educacional islâmico.

Mulher mulçumana vestindo uma burca | Foto: Joao Paulo Racy/Shutterstock

Islamitas cruéis

O mais preocupante é que também há relatos de que as forças de segurança do HTS estão prendendo e executando supostos apoiadores de Assad. O massacre de civis alauitas que começou no dia 6 não foi exatamente a aberração que Sharaa está tentando retratar.

No entanto, apesar dos muitos motivos para manter uma distância crítica em relação aos líderes islâmicos de Assad, políticos ocidentais e especialistas medíocres como Stewart e Campbell correram para abraçá-los. Isso se deve principalmente a uma antiga visão simplista das relações exteriores. Desde o levante de 2011 contra Assad, eles efetivamente passaram os últimos 14 anos pedindo a derrubada de seu regime e o considerando o mal puro. Não é de se admirar, portanto, que estivessem tão dispostos a ungir os líderes de Assad como os mocinhos, os libertadores, os detentores da paz — independentemente de quem fossem. E passaram tanto tempo reduzindo a complexa realidade do conflito sírio a uma batalha entre um tirano perverso e rebeldes virtuosos que acabaram celebrando um grupo de islamistas cruéis.

A guerra civil pode ter acabado. Mas a Síria continua sendo um país cindido e volátil, influenciado por forças externas e internas. O HTS pode estar no controle do centro e do noroeste da Síria, mas os representantes turcos que operam sob a bandeira do Exército Nacional Sírio dominam as regiões da fronteira do norte. E estão em conflito com as Forças Democráticas Sírias, lideradas pelos curdos e apoiadas pelos EUA, que governam o leste de fato.

Neste momento, a Síria é uma colcha de retalhos de forças violentamente antagônicas que controlam territórios que estão longe de ser seguros, com potências regionais e internacionais ainda exercendo influência à distância. Sobram atritos alimentados por questões políticas e enquadrados por questões étnicas. Enxergar Sharaa e o HTS como os salvadores da Síria sempre foi muita ingenuidade.


Tim Black é colunista da Spiked.

Leia também “A brutal repressão do Irã de Ebrahim Raisi”

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