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Ilustração: Revista Oeste/IA
Edição 260

Cegos, surdos e mudos

É fácil comparar o que está escrito na Constituição com as decisões do Supremo e constatar que nossa Lei Maior não está sendo cumprida em questões essenciais que caracterizam uma democracia

Alexandre Garcia
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Quando eu era presidente de Centro Acadêmico, na PUC/RS, eram os anos 1968 e 1969, e eu andava com um exemplar de bolso da Constituição de 1967. Era uma arma segura de defesa. Fizemos campanha por anuidades mais baratas, por um currículo mais técnico; eu fazia abertamente a defesa de Dom Hélder Câmara e das questões agrárias, julgava Guevara um herói contra os opressores, punha isso nos murais da PUC e nunca fui incomodado. Duvido que naquela época escrever algo com batom na estátua da Justiça resultasse em 17 anos de prisão. Os grandes advogados, como Sobral Pinto, brilhavam na defesa dos acusados pelo regime autoritário. Havia uma guerra interna, e os que defendiam o Estado usavam métodos que saíam do devido processo legal para evitar a imposição de uma ditadura comunista. Depois veio uma anistia ampla, geral e irrestrita, e uma nova Constituição foi feita para evitar que o povo brasileiro passasse de novo por algo que não fosse um regime democrático, com liberdade de expressão e devido processo legal. A Constituição nem havia chegado aos 30 anos e já sofria um rasgão, na cara de todos, no julgamento de Dilma pelo Senado. Hoje, a Lei Básica já está rasgada nos seus valores mais essenciais. E os que deveriam restaurá-la fingem que nada veem.

Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979, e manifestação contra a anistia, em São Paulo, em 2023 | Foto: Montagem Revista Oeste/Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo/Shutterstock

“O pior cego é aquele que não quer ver.” A sabedoria popular poderia acrescentar, analogamente, que o pior surdo é aquele que não quer ouvir; e o pior mudo é aquele que não quer falar. No Brasil, praticamente todos têm celular, e quase 200 milhões de brasileiros são capazes de ler. Isso significa que a maioria dos brasileiros tem condições de consultar, no celular, algo como “liberdade de expressão na Constituição”, ou “proibição de censura na Constituição”, ou “inviolabilidade de deputados e senadores na Constituição”. Fica fácil para a maioria comparar o que está escrito na Constituição com as decisões do Supremo e constatar que a Constituição, nossa Lei Maior, não está sendo cumprida em questões essenciais que caracterizam uma democracia.

Além da fiscalização e do julgamento do povo, que é o supremo poder numa democracia, a Constituição exige dos deputados e senadores, e do presidente da República, o juramento de cumprir, guardar e defender a Carta Magna, vale dizer, seguir os princípios lá inscritos. E, em especial, a Lei Maior atribui ao Supremo a guarda da Constituição, e ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. A Constituição também estabelece que as Forças Armadas destinam-se à garantia dos poderes constitucionais. E qualquer jornalista sabe que se esperam do jornalismo o alerta, a crítica, a denúncia, sempre que perceber qualquer arranhão na maior das leis, que é a Constituição, base da ordem, das liberdades, das garantias, e barreira contra o arbítrio e o avanço do poder sobre os direitos individuais. Mas parece que há um apagão geral.

Dogmas do Direito, como o devido processo legal, o amplo direito de defesa, o juiz natural, a inexistência de juízo de exceção, já foram atingidos por heresias. E a direção nacional da Ordem dos Advogados do Brasil não viu, não ouviu e não falou. Congressistas são violados na sua imunidade absoluta por opiniões e palavras, e o Senado, que poderia resgatar o artigo 53 da Constituição, não vê, não ouve, não fala. No julgamento de Dilma, os senadores rasgaram pelo meio o parágrafo único do artigo 52. A partir dali, parece que a porteira foi aberta, porque os que deveriam guardá-la se julgaram seus donos. Ninguém reclamou, e foi o sinal para o ativismo político do Supremo. Não foi nem mesmo ativismo judicial. O atual presidente do Supremo volta e meia se refere a essa mudança no Supremo como se fosse um aperfeiçoamento, e não uma mudança que faria Montesquieu retorcer-se na tumba. Como ninguém age, o poder sem mandato popular vai em frente.

Ao centro, Davi Alcolumbre (União-AP), presidente do Senado Federal | Foto: Pedro França/Agência Senado

Por que tanta cegueira, surdez e mutismo? O Senado, que poderia resolver isso, de 81 senadores, tem apenas 24 dispostos a votar impeachments. Se votasse, esse resultado reforçaria o atual regime de democracia relativa. Além disso, a cegueira, a surdez e o mutismo revelam o pouco-caso que os responsáveis nos três Poderes conferem à Constituição e às instituições democráticas. Por enquanto, o vácuo de liberdade vem sufocando a direita, mais presente nas redes sociais, e suas vozes na política, mas o autoritarismo não vai se saciar a não ser com o total, de totalitário, que pretende tutelar. Os omissos — no jornalismo, nas instituições públicas e privadas — agem como os três macaquinhos: ouvidos tapados, olhos bloqueados, boca fechada. Amanhã, quando os macaquinhos decidirem abrir os olhos e os ouvidos, e quiserem falar, será que conseguirão?

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2 comentários
  1. Joel Luiz Oliveira Rios
    Joel Luiz Oliveira Rios

    Estes surdos, cegos e mudos, deverão ser presos sim, por terem cometido os crimes do mal caratismo na sua mais pura essência, por terem lesado a nação e a Pátria brasileira, a qual deveriam defender na condição de jornalistas, divulgando os fatos tal como aconteceram, e fazendo as críticas e as informações as quais são, ou deveriam ser, a razão de suas existências como jornalistas, fiéis à Pàtria e ao povo brasileiro, mas preferiram se vender e entregarem a si próprios e a nação como um todo, aos abutres de plantão. A história os condenará ao lixo de suas existências, e para sempre.

  2. Marcos Antônio de Carvalho
    Marcos Antônio de Carvalho

    O grito da Revista Oeste vem ecoando no deserto dos interesses escusos do Senado Federal, dos ministrtos do STF, da grande imprensa vendida ao Lula, da OAB e de grande parte do povo brasileiro. Temo pela liberdade e pela vida ds senhores que aí estão, alertas e chamando a atenção para os desatinos dos poderosos que enquistam Brasília. Não tenho noção de quando essa desgraça que se abateu sobre o País vai acabar. A esperança de que “não há mal que sempre dure” ainda permeia nossas mentes. Um dia isso vai acabar. Um dia esses indivíduos pagarão por tudo isso.

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