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Edição 36

Burocracia: do absurdo ao sinistro

Para nos livrarmos de nossas responsabilidades, permitimos ao governo intromissões cada vez mais sem conexão com a realidade em nossa vida

Theodore Dalrymple
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Quase não é preciso dizer que todas as democracias ocidentais hoje são incomparavelmente mais tirânicas ou intrusivas no cotidiano de seus cidadãos do que o governo contra o qual os colonos norte-americanos se revoltaram no século 18. Em grande parte, isso se deve à maior complexidade técnica e às capacidades das sociedades modernas. No entanto, é também devido às responsabilidades muito maiores que os governos e suas burocracias associadas têm tomado para si, muitas vezes com a cumplicidade dos cidadãos. O fato é que esperamos demais dos governos e lhes damos responsabilidades que deveriam ser nossas. Tanto para o bem quanto para o mal: o bem geralmente é mais tangível, mas nem por isso mais real do que o mal.

As burocracias parecem ter uma tendência ao absurdo, quando não ao sinistro. Eu trabalhava como médico em uma prisão quando o World Trade Center foi atacado em Nova York. Seis meses depois, recebi do governo um formulário que fui obrigado a preencher para continuar no emprego.

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O papel continha várias perguntas, entre as quais se eu já tinha sido, era agora ou sempre havia pretendido ser um terrorista. Acho que não tenho que apontar o ridículo dessa questão (exceto possivelmente para burocratas). Estava trabalhando na prisão fazia 11 anos: qual a probabilidade de me tornar um terrorista, ou, se tivesse a intenção de me tornar um terrorista, de preencher o formulário com sinceridade? Mas suponho que, se eu me tornasse um deles, o governo seria bem capaz de dizer: “Bem, fizemos tudo o que podíamos, perguntamos a ele, e ele nos disse que não era um terrorista”. Em outras palavras, eu não era apenas um terrorista, era algo muito pior, um MENTIROSO!

Agora, a questão é que esse formulário não se desenvolveu, imprimiu nem se distribuiu sozinho; foi o resultado da ação humana e do trabalho, ou seja, dos burocratas. Imagine o imenso trabalho necessário para produzi-lo, os seis meses de esforços concentrados, com reuniões, artigos de discussão, contrapropostas, e assim por diante! Finalmente, depois de muita labuta, o trabalho foi entregue. Milhares de pessoas declararam que nunca foram, não eram nem nunca seriam terroristas. Surpresa, surpresa! Ou melhor, teria sido uma surpresa se alguém tivesse olhado para as respostas — o que, é claro, ninguém fez; os formulários preenchidos foram simplesmente arquivados em algum lugar, para nunca mais ser lembrados. Contudo, os burocratas que levaram todo o projeto a essa conclusão bem-sucedida, sem dúvida, devem ter sido recompensados com uma promoção por suas habilidades organizacionais, até mesmo a cargos com responsabilidades vertiginosamente mais altas. Nem todo mundo, afinal, tem a capacidade de organizar uma pesquisa tão grande e o próprio governo precisa de pessoas talentosas.

“Você é membro do Partido Comunista?” “É ou já foi um genocida?”

Na Grã-Bretanha, houve um médico terrível chamado dr. Shipman. Em dado momento, descobriu-se que ele tinha deliberadamente matado seus pacientes durante 25 anos, num total de aproximadamente 300 pessoas. Obviamente, o governo tinha de fazer algo, mesmo que o algo que fizesse não tivesse nada a ver com o que seria necessário.

As autoridades instituíram um sistema de avaliações anuais de médicos, presumivelmente para verificar se eles não eram serial killers. Consistia em uma entrevista com outro médico que fazia uma série de perguntas obrigatórias, estabelecidas; entre elas, esta: “Você tem alguma preocupação com sua honestidade?”.

Quando me fizeram essa pergunta pela primeira vez, eu disse: “Responderei a essa pergunta se antes você responder a duas outras”. “Quais?”, indagou o médico que deveria me avaliar. “A primeira é: que tipo de pessoa responderia a tal pergunta?”. “E a segunda?”, quis saber o avaliador. “Que tipo de pessoa perguntaria isso?”

O avaliador era um homem inteligente e sabia exatamente o que eu queria dizer. “Sei de tudo isso”, disse ele, “mas apenas responda à pergunta para que possamos terminar o mais rápido possível.”

Isso tudo era absurdo, mas era mais do que meramente absurdo: era sinistro. Todo o procedimento teve o efeito de destruir a própria probidade que deveria investigar. Todas as pessoas que responderam à pergunta sabiam que era absurda, pelo menos do ponto de vista de seu propósito ostensivo. No entanto, todos responderam apenas para acabar com aquilo, como condição de manter o emprego. Não só isso foi humilhante para indivíduos de alta inteligência, mas os transformou no tipo de funcionário que está principalmente preocupado em preservar o próprio trabalho. Transformou-os de profissionais em aparatos. E um grupo de pessoas que perdeu sua probidade é muito mais fácil de controlar do que aquele que mantém sua integridade.

Quando entrei nos Estados Unidos, tive de declarar em um formulário que eu não era, nem nunca tinha sido, um membro do Partido Comunista. Com o fim da Guerra Fria, eu tinha, no lugar disso, de declarar, de forma diferente, que eu não era, nem nunca tinha sido, um genocida.

Não era muito difícil adivinhar as respostas corretas se eu quisesse ser admitido nos Estados Unidos. Não estou totalmente convencido, no entanto, de que, se tivesse realmente me declarado um comunista genocida, alguém teria notado e recusado minha admissão. O objetivo de fazer a pergunta não era coletar informações, mas tão somente demonstrar quem mandava. O indivíduo que preenchia o papel era apenas um único grão entrando em um moinho gigante — ele era, de fato, nada.

No caso da resposta às atividades assassinas do dr. Shipman na Grã-Bretanha, a medida levou — por meio da imposição de procedimentos cada vez mais burocráticos que os médicos tiveram de cumprir — à aposentadoria precoce de cerca de um sexto dos profissionais de medicina, e isso em um momento de aguda escassez de médicos.

O Brexit foi uma demonstração de parte expressiva da sociedade britânica de sua exaustão com os burocratas de Bruxelas. Eles mandam mais nos destinos do país do que líderes democraticamente eleitos. Numerosos “técnicos”, supostos especialistas em áreas diversas, determinam a quantidade de penas que um travesseiro de penas de ganso tem de ter, a forma de medir a acidez do azeite de oliva, a quantidade de trigo que um país deve produzir. São burocratas que há mais de vinte anos não pagam um almoço em restaurante chique com o cartão de crédito pessoal. Utilizam sempre o cartão corporativo. Seu trabalho, bancado pelo cidadão pagador de impostos, consiste basicamente em discutir inutilidades e empilhar regulações.

O problema é o seguinte: todas as tentativas de reduzir a burocracia a aumentam. Uma história conta que um funcionário público indiano perguntou a seu superior se ele poderia jogar fora arquivos muito antigos, para os quais ninguém jamais olharia novamente. Seu chefe pensou por um momento e então disse: “Sim, desde que antes você faça três cópias deles”.


Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.

 

15 comentários
  1. Iury de Salvador e Lima
    Iury de Salvador e Lima

    A verdadeira elite autocrática é a burocracia pública. O resto somos cordeirinhos muito dóceis inclusive no uso de focinheiras.

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Cada vez o Estado está mais inchado e criando inutilidades para ocupar seus desnecessários funcionários públicos.

  3. Sebastiao Márcio Monteiro
    Sebastiao Márcio Monteiro

    É muito curiosa a universalidade da burocracia. A última frase desse belo artigo sempre foi usada como uma piada recorrente na minha “repartição” como forma de crítica velada à burocracia que sempre imperou e impera no serviço público. Pode-se jogar fora qualquer documento, desde que antes sejam feitas pelo menos três cópias.

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Brilhante artigo.

  5. Jorge Luiz Soares Ribeiro
    Jorge Luiz Soares Ribeiro

    Excelente. Morei em Bruxelas por 4 anos e concordo plenamente.

  6. miguel Gym
    miguel Gym

    E voltamos tudo ao início.A Rússia chegou a ter 800.000 mil funcionários só para controlar preços.E voltamos à ditadura.Os pais da pátria fizeram viagem em navios “caixões fúnebres”, de tanto que morriam ao cruzar o atlântico fugindo da fome da batata na Irlanda.Comemoram o “Dia de ações de Graça”como gratidão ao que colheram aqui na América.O “Globalismo”e a “ditadura burocrática nos Estados Unidos, só como farsa.Não prospera.

  7. Jorge Apolonio Martins
    Jorge Apolonio Martins

    Sou agente aposentado da PF. Na ativa durante o governo Dilma, toda vez que nós éramos mandados cumprir missão em outra cidade, tínhamos que pedir autorização a Brasília-DF para fazer a viagem, mesmo estando lotados em qualquer lugar do Brasil. Como sempre a viagem era urgente, não podíamos nos recusar a viajar sem a autorização. Nunca havia negativa e, na maioria das vezes, a autorização só ocorria depois de já termos ido e até termos voltado da viagem. Era uma imbecilidade flagrante.

  8. Jose Carlos De Souza
    Jose Carlos De Souza

    Simplesmente, como dito pelo autor são burocratas que foram eleitos por cidadãos que abdicaram dos seus deveres em prol de uma suposta “sensação” segurança; provida por uma casta progressista (“iluminada”) que vai resolver todos os nossos problemas. Enquanto, as pessoas não entenderem que estão sendo manipulas diuturnamente por governos, mídia, artistas e todo um establishment globalista que, quer destruir os valores que pautaram a sociedade ocidental (judaico-cristã): liberdade, família e fé em prol de um Estado totalitário.

    1. Martha De Gennaro
      Martha De Gennaro

      é exatamente isso: somos manipulados diuturnamente…… digo isto várias vezes, mas minha voz cai em ouvidos moucos.

  9. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    O seu melhor texto aqui na Oeste até agora, Sr. Theodore. Bateu certo, na tecla certa. Para ilustrar ainda mais essa história, transcrevo aqui o que alguém já disse antes: “Ninguém precisa ter medo de o mundo acabar por água ou por fogo – a burocracia acabará com ele”.

  10. Rodrigo Kairys
    Rodrigo Kairys

    Belo artigo! Sei que parece um clichê mas é literalmente rir para não chorar.
    Moro na Inglaterra e já tive que preencher alguns formulários atestando que não sou um terrorista. Onde estaria o formulário do cara no atentado na ponte de Londres ou da igreja em Paris? Ah não, eles não são terroristas… somente mentirosos.

  11. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Não é clichê chamar “burrocracia” essa pilha d normas inúteis. Mais q isso, demonstra poder ostensivo ou não, mas sempre poder, dominação

  12. Osmar Lanz Filho
    Osmar Lanz Filho

    A Oeste a cada,edição se supera!

  13. Nivaldo Foresti
    Nivaldo Foresti

    Sempre pensei que essas perguntas dos formulários de entrada no EUA existiam porque as pessoas que iam viajar para os Estados Unidas eram mais honestas que as outras. Ai, veio o 11 de setembro e fiquei confuso. Agora está tudo esclarecido.

    1. Roberto
      Roberto

      Excelente reportagem, A burocracia enterra os países, os cidadãos não notam em sua maioria.

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