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Edição 47

A independência do BC e o dinheiro sólido

Para que a inflação não se torne um recurso populista de governos aventureiros, resta apenas a opção de bancos centrais independentes e relativamente blindados de politicagem

Rodrigo Constantino
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Com a mudança de comando na Câmara, finalmente o projeto de autonomia legal do Banco Central foi votado e aprovado. A medida é desejável e se arrastava havia décadas, pois encontrava resistência nos suspeitos de sempre: os políticos que enxergam na política monetária uma extensão da política fiscal, ou seja, pretendem utilizar as prerrogativas da autoridade central monetária para custear seus projetos políticos, gastando recursos que nem sequer existem e que não querem retirar de forma direta da população por impostos, com receio da impopularidade desse caminho. O “imposto inflacionário”, por ser indireto, é também mais palatável para a classe política.

Foi George Bernard Shaw quem talvez melhor tenha definido o processo inflacionário: “Se os governos desvalorizam a moeda para trair todos os credores, você educadamente chama esse procedimento de inflação”. O risco de falsificar a moeda sempre existiu, e por isso mesmo surgiu a demanda por padrões e selos de governos ou bancos. A falsificação de moeda é uma fraude, que enriquece o fraudador em detrimento do restante dos usuários da moeda. Os primeiros a receber o dinheiro falsificado se beneficiam à custa dos últimos. O governo tem como função justamente evitar tal fraude, punindo com prisão os criminosos. O grande problema é quando o próprio governo adere à prática de “falsificação”, com o respaldo da lei. A invenção do papel-moeda foi um convite tentador para os governos embarcarem nessa nefasta prática inflacionária.

Pelo menos em três vezes na história norte-americana, desde o fim do período colonial, a população sofreu bastante com o sistema de fiat money. Durante a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os continentals. A desvalorização foi abrupta, e antes mesmo do término da guerra aquelas notas não tinham mais valor algum. O segundo período foi durante a guerra de 1812, quando os Estados Unidos saíram do padrão-ouro, mas retornaram dois anos depois. O terceiro período ocorreu durante a Guerra Civil, com a emissão dos greenbacks, notas não resgatáveis para pagar a guerra. No final da guerra, os greenbacks tinham perdido metade de seu valor inicial.

O Banco Central é a instituição que possui o privilégio de controlar a emissão de papel-moeda nas economias modernas e, portanto, é o grande responsável pelo processo inflacionário. O aumento no preço dos bens é uma consequência da inflação, pois a maior oferta de moeda leva a uma queda relativa de seu valor. O público não tem o poder de criar mais moeda. Somente o governo, por meio do banco central, tem esse poder. Os bancos comerciais podem obter o mesmo resultado inflacionário com crédito sem lastro em reservas. Mas cabe ao Banco Central controlar isso por meio de seus instrumentos, como o compulsório.

O padrão-ouro é um concorrente de peso para os governos, justamente porque o ouro quase sempre foi escolhido naturalmente como moeda. Mas os governos não gostam dessa concorrência, pois o padrão-ouro anula sua capacidade de usar o imposto inflacionário como disfarce para mais gastos. Aquilo que os inimigos do padrão-ouro costumam enxergar como seu grande vício pode ser justamente sua grande virtude: ele é incompatível com uma política expansionista de crédito.

O poder da impressão de dinheiro artificial nas mãos do governo sempre foi um enorme risco para a liberdade e a prosperidade dos povos. Esse poder foi utilizado de forma abusiva desde quando o imperador romano Diocleciano resolveu reduzir o teor metálico das moedas, fazendo com que perdessem valor real. Em situações mais emergenciais, essa prerrogativa sempre costuma ser usada pelos governos. Em tempos de uma suposta ameaça de guerra ou crise econômica, os governantes acreditam na necessidade urgente de aumento dos gastos públicos, mas muitas vezes a maioria do povo não concorda. O governo então ignora a saída democrática de propor uma votação sobre os necessários sacrifícios momentâneos, preferindo o caminho do engano, por meio da política inflacionária.

Inflação é uma política, pois é sempre um fenômeno monetário

O recurso inflacionário garante ao governo os fundos que ele não conseguiria captar com impostos diretos ou por emissão de dívida. Eis o verdadeiro motivo para uma política inflacionária. Seus defensores são inimigos do “dinheiro sólido” e, concomitantemente, da liberdade individual. Até mesmo o ex-chairman do Federal Reserve Alan Greenspan compreendia isso. Greenspan escreveu na década de 1960: “O padrão-ouro é incompatível com o déficit crônico nos gastos governamentais”. Ele acrescentou: “Os defensores do welfare state foram rápidos em reconhecer que, se desejassem reter o poder político, a magnitude da taxação teria de ser limitada e optaram por recorrer aos programas de déficit maciço, isto é, tiveram de tomar dinheiro emprestado, emitindo títulos do governo, para financiar despesas em grande escala”. O déficit do governo sob um padrão-ouro é severamente limitado. A lei de oferta e demanda não pode ser cunhada. Greenspan, então, conclui: “Na ausência do padrão-ouro, não há nenhuma maneira de proteger a poupança do confisco por meio da inflação”. Se houvesse, o governo teria de tornar sua posse ilegal. Não por outro motivo o governo norte-americano proibiu a posse de ouro em 1933.

A volta do padrão-ouro parece irrealista na economia moderna, então resta apenas a opção de bancos centrais independentes e relativamente blindados da politicagem. A política monetária é o instrumento que um banco central tem para conter a expansão creditícia que produz inflação. Quando leigos no assunto olham apenas o efeito imediato e criticam decisões de aumento de juros, podemos dar um desconto. Mas quando economistas e empresários caem na mesma falácia da miopia, levantando a falsa dicotomia de mais inflação e mais crescimento, aí temos muito que temer. Afinal, a estabilidade dos preços e a maior previsibilidade advinda dela são fundamentais para o crescimento sustentável da economia. Essa confiança é o pilar que sustenta o crescimento a longo prazo, favorecendo o crédito e, acima de tudo, os investimentos produtivos. Eis os pilares que muitos querem derrubar, pedindo menor controle inflacionário para ter mais crescimento imediato.

Vários países parecem ter aprendido a lição de que o controle da inflação é fundamental. Inflação não é fruto da ganância de empresários ou nem mesmo de choques de oferta, que geram apenas mudanças relativas nos preços. Inflação é uma política, pois é sempre um fenômeno monetário. A Zona do Euro, por exemplo, conta com uma meta implícita de 2% para a inflação, e a independência do banco central é garantida, nas tradições do Bundesbank. Os Estados Unidos possuem o Federal Reserve, banco central independente e que trabalha com meta implícita de 2% também. A Suíça vai na mesma linha, com meta implícita de 2%. O Canadá possui meta oficial de 2%, assim como a Inglaterra e a Suécia. Entre os países menos desenvolvidos, o Chile possui uma meta oficial de 3%, a mesma de Hungria, Coreia e México. A Noruega trabalha com metas oficiais de 2,5% para a inflação, a mesma da Islândia e da Polônia.

“Não há meio mais seguro e mais sutil de subverter a base da sociedade do que corromper sua moeda — processo que empenha todas as forças ocultas da economia em sua destruição, de modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar”, resumiu Keynes. A garantia de independência legal do nosso Banco Central do Brasil deve ser defendida por todos aqueles que temem, com razão, um retrocesso populista nessa área. Basta pensar na Nova Matriz Macroeconômica do PT, ou num cenário sombrio de alguém como Ciro Gomes assumindo a Presidência, para deixar claro como é importante tentar proteger o Banco Central das garras políticas.

Tecnocratas são humanos, sofrem influências de paixões, erram. Mas um presidente de banco central subserviente ao presidente da República é algo bem pior do que um que responda apenas aos padrões objetivos estabelecidos pelo Congresso, tendo de cumprir a meta de inflação determinada e ponto-final.

Leia também o artigo “A independência do Banco Central”

16 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Constantino meu querido gosto do seu carater. Sempre achei que economia não é ciência, eu cá com a minha leiguisse, se as mercadorias e prudutos são fabricados pelos homens, você não acha que teria o mesmo valor no globo terrestre? E porque que é que Japão e China desvalorizam tanto suas moedas e se dão tão bem no sistema de compra e venda ?

  2. Ayr De Almeida Gosch
    Ayr De Almeida Gosch

    Não há BC que dê jeito se não houver responsabilidade fiscal. O Brasil precisa, agora, é de medidas para equilibrar as contas…

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Didático, esclarecedor, brilhante artigo. Parabéns Constantino.

  4. Carlos Benedito Pereira da Silva
    Carlos Benedito Pereira da Silva

    Bravo Constantino. Mas você sabe Brasil é Brasil. O Junior analisou muito bem a situação, vai faltar seriedade e honestidade, com esses políticos que só pensam no próprio umbigo vai ser difícil. Mas ainda há um fio de esperança.

    1. Ney Pereira De Almeida
      Ney Pereira De Almeida

      Mas, meu Santo Benedito, o que he isso: “Mas você sabe Brasil é Brasil” ? Discordo, querido. O Brasil a que vc. se refere, como uma Nação ou um Pais, eh PURA ABSTRAÇAO. – REAL eh apenas o nosso enorme espaço geográfico – o Brasil, no sentido que vc. usou, se refere aa sociedade do Brasil, ao POVO (coletivo de gente, pessoas, habitantes) BRASILEIRO. Sugiro que repense seu comentário, MAS CONSCIENTIZANDO-SE DE QUE VC, EU E TODOS NOS EH QUE DAMOS MATERIALIDADE A ESSE “BRASIL” CITADO POR VC. A “terra brazillis” nada tem a ver com as cagadas que fazemos enquanto vivemos sobre ela. Tampouco, podemos apontar e acusar – como vc. escreveu- ” esses políticos que só pensam no próprio umbigo”. Eh fundamental conscietizarmo-nos de que TAMBEM “esses políticos….” SAO CRIAÇAO NOSSA… Apenas a partir disso eh que sua frase final: Mas ainda há um fio de esperança” NAO PARECERA TAO SOMENTE UM “JOGO DE PALAVRAS”. P. FAVOR, ISSO NADA TEM A VER COM CRITICA PESSOAL A VC., TRATA-SE APENAS DE UM PONTO DE VISTA DIFERENTE DO SEU.

  5. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    A inflação é um câncer para a economia de qualquer país. A turma com mais de 50 anos sabe disso.

  6. Marcelo Marques Da Silva
    Marcelo Marques Da Silva

    Boa noite Constantino!
    Precisamos de você…pense….não responda agora….apenas pense.
    Até o final deste ano mude-se para o Brasil , more em São Paulo. Concorra ao cargo de governador SP. Faça, conspire com o invisível. Salve sua força e a do seu guardião.

  7. Gilvani Bakai
    Gilvani Bakai

    Nunca vi isto, mas é a segunda vez que escrevo, show, vc é super competente.

  8. Gilvani Bakai
    Gilvani Bakai

    Show garoto, não pode ter maior esplanação do tema do que esta q vc escreveu,Parabens, temos orgulho em te seguir.

  9. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante explanação!

  10. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Muito bom, Constantino!

  11. Júnior
    Júnior

    Prezado Rodrigo. Seu artigo é absolutamente correto do ponto de vista teórico e ao analisar “em tese” e com exemplos práticos a importância do BC. Não obstante, em se tratando de democracia tupiniquim não tenho a satisfação de ter tanta certeza como você. No Governo FHC foram criadas as Agência Reguladoras com o mesmo discurso de “independência”, lembra disso? Hoje nessas Agência 42% dos cargos comissionados são ocupados por indicações políticas. Também é público e notório que as Agências passaram a defender os interesses daqueles que deveria fiscalizar. Veja o caso do perdão da dívida da OI em troca de supostos novos investimentos e a indicação de um Diretor da ANTT pelo atual Presidente do Senado. Portanto, não tenho a convicção que gostaria de ter, pois sou favorável à autonomia do BC. Vamos lembrar também de delações aceitas pela justiça, segundo as quais o BC repassava antecipadamente aos grande Bancos as variações futuras da Taxa Selic e até do Dólar, lembra disso? E ainda – prezado Rodrigo- a despeito do falatório geral , o país continua nas mãos de meia dúzia de Bancos e banqueiros enquanto que em outras democracias os Bancos existem às centenas. Todos os semestres assistimos na mídia a publicação de seus lucros semestrais na casa dos cinco ou seis Bilhões. Taxar esse Bancos com impostos ( ou somente o IR) nunca foi pauta. O chamado spread da taxa Selic é um descalabro planetário e os juros oficiais no Brasil ( veja os juros do cheque especial e dos cartões de crédito)fazem inveja a qualquer agiota preso na cadeia. Gostaria sim de comemorar essa autonomia, mas só o fato do Congresso ter aprovado “a toque de caixa” me causa arrepios. O Congresso com esse Centrão não dá nada de graça, você sabe.

    1. Ney Pereira De Almeida
      Ney Pereira De Almeida

      PREZADO JUNIOR, EMBORA SEM PROCURAÇÃO PARA FALAR EM NOME DE CONSTANTINO, ME ATREVO A SUGERIR – PARTINDO DA PREMISSA QUE ESSE ESPAÇO SEJA UMA “TRIBUNA LIVRE” ABERTA AA TROCA DE IDEIAS – GOSTARIA DE PONTUAR QUE – COMO VC. MESMO AFIRMOU LOGO DE SAIDA – “em se tratando de democracia tupiniquim não tenho a satisfação de ter tanta certeza como você” – ME ADIANTO A LEMBRA-LO QUE – TUDO – COMEÇA E ACABA EXATAMENTE NESTE PONTO. QUER DIZER: O TIPO DE DEMOCRACIA QUE FORMOS CAPAZES DE CONSTRUIR E SE ESTAMOS DISPOSTOS A MUDAR O PADRAO “tupiniquim” DE AGIR E PENSAR….O Constantino falou, em tese, sobre as FUNÇOES DE UM BANCO CENTRAL E QUAIS AS UTILIDADES QUE ELAS PODEM TER. Inclusive, ele citou o padrão de atuação de alguns Bancos Centrais de alguns Países. Cabe a “NOSOTROS” definir em que grupo de BANCOS CENTRAIS E PAISES vamos querer nos inserir…Para começar, as eleições serão SEMPRE o melhor “STARTING”. Depois, CABE HAVER perseverança DE CADA UM DE NOS no controle das ações dos POLiTICOS que CADA UM DE NOS ELEGEMOS… Fora disso, qualquer tipo de discurso NAO PASSA DE MAIS, DO MESMO, um vomitório típico de brasileiro que ACREDITA POSSÍVEL QUE AS COISAS MUDEM POR SI. Ora, se tudo estah conveniente para os políticos, as COISAS SOH MUDARÃO SE HOUVER MUDANÇAS NOS POLÍTICOS OU NOS ELEITORES, questão simples de lógica aplicada. CONCORDA ?

  12. Nilson Eduardo Ferreira
    Nilson Eduardo Ferreira

    Pensando no último parágrafo, Constantino, também não seria um risco que um Presidente do BC não sendo subserviente ao Chefe do Executivo Federal do momento mas sendo subserviente a uma ideologia a qual se manteve silente até que fosse nomeado para o banco, também não é um risco? Vamos supor que o atual presidnete do BC se rebelasse contra o governo e resolvesse lacrar usando a economia para prejudicar. Como balancear isso?

    1. Ney Pereira De Almeida
      Ney Pereira De Almeida

      SIMPLES, MEU CARO NILSON. SEMPRE HAVERA O CONGRESSO – REPRESENTANTE DA VONTADE POPULAR SOBERANA – COM PODERES PARA DEFINIR AS METAS QUE – QUALQUER – PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DEVE SEGUIR SEMPRE… E, SOBRE O COGRESSO EXISTIRA SEMPRE O POVO – NOS – QUE PRECISAMOS APRENDER A EXERCITAR NOSSA SOBERANIA… BASTARA – PRIMEIRAMENTE – PENSARMOS ANTES DE VOTAR PARA DEPUTADO FEDERAL E SENADOR – E DEPOIS, EXIGIR DOS CANDIDATOS ELEITOS COM NOSSOS VOTOS, QUE CUMPRAM A NOSSA VONTADE….THAT’S IS IT….

  13. miguel Gym
    miguel Gym

    É sempre muito bom a gente ter um escritor,culto,estudado e que saiba transmitir aos seus leitores, os ensinamentos importantes de forma clara,concisa e didática.Por isso Constantino é hoje um dos maiores pensadores e intelectuais da imprensa.Excelente professor.Obrigado Mestre.

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