“A competição faz um trabalho muito mais eficiente que o governo
em proteger consumidores.”
Thomas Sowell
O imperador decide vender uma de suas propriedades e nomeia para negociar com os compradores o nobre Tarquinius Regulus, que faz publicar um edito estipulando que abrirá concurso público para preencher cem vagas para capataz, com as atribuições de zelar pelas terras, garantir o seu bom uso, fazer pessoalmente inspeções periódicas, determinar os preços da produção, aprovar ou proibir todas e quaisquer eventuais obras e modificações, selecionar as visitas que o novo proprietário poderá ou não receber, decidir sobre eventuais revendas e incorporações, obrigá-lo a ser politicamente correto e a cuidar do meio ambiente, fazer um seguro contra incêndio e outros requisitos semelhantes. A principal candidata a comprador é uma abastada viúva, chamada Lucretia — nome que sugere riqueza —, mulher laboriosa, arguta e que sempre soube fazer bons negócios.
Para surpresa geral, mesmo com essas características pessoais, ela aceita todas as condições propostas por Regulus e fecha o negócio, passando a ser a nova proprietária da gleba. Como assim? Por que sendo sabidamente esperta e com faro de gestora ela aceitou exigências tão absurdas? Pois é, parece estranho mesmo. Mas, se dissermos que Lucretia é uma grande empresa operadora de algum serviço dito “público”, o imperador é o Estado, e seu preposto, Tarquinius Regulus, uma agência reguladora, é menos difícil entender por que os termos estapafúrdios da operação foram ótimos para todos. Menos, entretanto, para todos os demais súditos, também conhecidos como “consumidores” ou “contribuintes”.
A conversa de cerca-lourenço dos defensores da regulação, baseada em uma teoria econômica tendenciosa segundo a qual mercados só têm defeitos e governos só possuem qualidades, é que as agências reguladoras e fiscalizadoras existem — e dedicam todos os seus esforços, com a maior pureza de intenções — para proteger os consumidores, uma vez que, pretensamente, são capazes de harmonizar e solucionar a contraposição entre os interesses “privados” dos entes regulados, os objetivos “sociais” dos consumidores e os objetivos “públicos”, estes sempre selecionados com odores de santidade, do Estado, que pautariam a atuação dos seus agentes. Acreditam ainda que, de acordo com a chamada Teoria da Captura, é possível atingir a almejada independência dessas agências.
Sinceramente, não sei o que é pior: se o viés intervencionista desses argumentos ou sua ingenuidade, que é a de pensar que no Estado todos são anjos, a totalidade das empresas é gerida por capetas e qualquer consumidor é uma criança que precisa da tutela do papai. Acontece que a verdade, desnuda e ríspida, consagrada pelos fatos e respaldada na Teoria da Escolha Pública associada a James Buchanan (Nobel de Economia em 1986), é que todos os atores são seres humanos e, como tais, têm defeitos e qualidades e buscam sempre objetivos próprios. Homens e mulheres não agem como insetos gregários, como formigas, abelhas, cupins e gafanhotos…
O viés intervencionista se expressa pelo que, infelizmente, parece ter se tornado um senso comum, que é a crença cega em que monopólios, oligopólios e cartéis são defeitos exclusivos da economia de mercado e que apenas o Estado — vale dizer, políticos, tecnocratas e burocratas — pode consertá-los. Entretanto, a realidade fulmina essa crendice, porque todos — sim, todos! — os monopólios e os cartéis existentes estão em mercados regulados pelo Estado. Afinal, se é verdade que os mercados, por serem guiados por ações humanas, têm falhas, por que não seria verdade que o Estado, igualmente dirigido por homens, também tem defeitos?
Sejamos francos: no fundo, essas agências são meras engenhocas burocráticas, montadas para manter o controle político e ao mesmo tempo alimentar os oligopólios dos setores regulados, ora ditando os preços a ser praticados, ora determinando quem pode e quem não pode entrar e sair do mercado e muitas vezes fazendo o oposto do que deveria, por definição, fazer, que seria garantir um jogo limpo para os consumidores e as empresas de menor porte. O fato é que sobejam evidências de que a atuação desses órgãos sempre foi voltada para proteger as empresas dos consumidores, esses seres egoístas que só querem saber de pagar menos e exigir o melhor.
Competição menor, serviços piores e preços maiores. Será tão difícil render-se a essa verdade?
As agências já nascem abrigando no organismo um germe perigoso, que facilita a proliferação de corrupção, tramoias, favorecimentos e subornos. As lucretias da vida, em vez de se esforçarem para ofertar serviços de qualidade, bons preços e, assim, suplantar os competidores por servirem mais satisfatoriamente aos consumidores, percebem que é mais vantajoso fazer “acertos” permanentes com os régulos e seus capatazes, oferecendo vantagens e ganhando favores, como, por exemplo, a intensificação das restrições aos concorrentes, tanto os já existentes como os potenciais.
Privatizar e ao mesmo tempo criar um órgão para “regular” aquilo que se privatizou — uma prática adotada sem modéstia pela social-democracia que infestou o Brasil durante décadas — não passa de um artifício simulatório de mudança, porque mantém a ingerência do Estado, suas influências políticas e favorecimentos. Observando o histórico das agências reguladoras, a impressão que se tem é que foram criadas intencionalmente para destruir qualquer ensaio insolente de prosperidade que tenha ousado surgir nos mercados, sem a sua autorização. Em linguagem kantiana, elas são coisas em si, existem para isso.
Vamos a um exemplo. Imaginemos que Regulus envia seus capatazes concursados para inspecionar e credenciar granjas de todos os tamanhos. É claro que suas regras minuciosas implicam custos para todos os granjeiros, mas é evidente que os menores terão muito mais dificuldades, o que, de saída, já contribui para diminuir sua capacidade de competir com os grandes. Mas não é só isso. Os grandes possuem capacidade de entrar em mancomunações e fazer acordos espúrios com os funcionários de Regulus, livrando-se assim total ou parcialmente dos custos de cumprir as regras, enquanto os pequenos não têm dinheiro para isso.
O resumo da ópera é que esses órgãos, supostamente criados para proteger os consumidores, terminam contribuindo para a formação ou a manutenção do tipo mais prejudicial de oligopólio que pode existir. Trata-se do oligopólio legal, com suas conhecidas e inevitáveis consequências. A saber: preços mais altos e serviços de qualidade inferior aos que ocorreriam em regime de competição potencial, entendido não como um mercado com pequeno número de empresas, mas com ausência de barreiras de qualquer tipo à entrada e saída de quaisquer firmas.
Há agências reguladoras de todos os tipos e gostos, a grande maioria na esfera federal, mas também no âmbito estadual e até municipal. Enumerá-las e escrever suas siglas seria exigir do alfabeto um esforço acima do que suas forças podem suportar, mesmo tendo sido reforçado com mais algumas letras pela última — e desnecessária — reforma ortográfica. Sua presença está em cada botequim e esquina, nos setores de energia elétrica, telecomunicações, petróleo, transporte aéreo e terrestre, atividades audiovisuais, recursos hídricos, saúde suplementar, fármacos, vigilância sanitária e — com licença do exagero — em qualquer atividade que “ameace” beneficiar os consumidores.
O próprio Banco Central não deixa de ser uma dessas agências, com suas regulamentações que impedem o surgimento de pequenos bancos e a vinda de bancos estrangeiros, garantindo a reserva de mercado para os cinco grandes, que concentram 80,7% das operações de crédito no país; o mesmo sucede nas telecomunicações, em que a Anatel protege quatro empresas telefônicas e impede a vinda para o país de outras já consagradas no mundo; no setor aéreo, a Anac faz todo o possível para que os passageiros brasileiros disponham de apenas três opções de empresa e paguem cerca de 200% a mais por quilômetro voado do que os norte-americanos; no setor de transportes rodoviários, a ANTT bloqueia bastante a competição, seja proibindo novas empresas, seja vedando que as já existentes compitam entre si, ao estabelecer monopólios de trajetos; no setor elétrico, quem se esforça valentemente para atrapalhar é a Aneel, com o resultado de prejudicar o aumento da oferta de energia; a história se repete nos setores de petróleo, com a ANP; de saúde e saúde suplementar, com a Anvisa e a ANS. Competição menor, serviços piores e preços maiores. Será tão difícil render-se a essa verdade?
O furor regulatório não tem limites. Atravanca ou mesmo destrói o que encontra pela frente: estações de rádio e de televisão, padarias, hotéis, restaurantes, provedoras de internet, motéis, oficinas mecânicas, hospitais, açougues, escolas, cinemas, teatros etc. só podem funcionar se cumprirem um ritual despótico, com inumeráveis processos burocráticos, registros cartoriais, licenciamentos, taxas, inspeções, propinas e alvarás.
O melhor destino que se pode dar às agências reguladoras — inclusive ao Banco Central — é fechá-las. Com a abolição de todas as barreiras, para que exista competição de verdade, o consumidor poderá ser bem atendido e quem é obrigado a pagar impostos, respeitado. O problema não é como fazer o governo proteger os consumidores, mas como proteger os consumidores do governo.
Leia também “O monstro Estado e a economia informal”
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio
Perfeita análise. As agências sustentam-se na ilusão de que bons indivíduos, escolhidos por bons políticos, são capazes de compensar os pretensos vícios do “ganancioso” mercado.
Excelente!
Texto muito interessante e como já dito acima merece uma reflexão.
Concordo que há muitas agências que estão mais para sindicatos e cabide de empregos do que outra coisa. Penso que a maneira delas agirem está errada, mas abrir mão da ANVISA, por exemplo? A ANAC que foi criada com base no DAC da Aeronáutica. O autor quer extinguir por si só? Qual a solução? Não ter nada mesmo?
Excelente artigo. Com clareza e analogia ímpares. Lá nos idos dos anos 80, o ovo da serpente, o Ministério da Desburocratização, já sinalizava essas agências estupradoras do livre mercado.
Muito interessante, merece uma reflexão.
Pode-se abolir as agências, mas corre-se das barbas do capeta para os chifres do diabo. O problema não sãos os meios, eles não são bons nem ruins em si mesmos, mas os cérebros, as mentes, os corações, as almas dos seres humanos é que são o problema.
Genial e verdadeiro este artigo. As agências reguladoras no Brasil são um fracasso.É triste e até cômico
Certo, certo, vamos abolir todas as agências reguladoras e dar um chute no bumbum do Banco Central. Posso até concordar com isso. Mas, o que fazer depois? Eu não sei e, aparentemente, o Iorio também não sabe. Pelo menos, não se deu ao trabalho de escrever.
Também pensei nisto Wagner. Hoje parece ser um mal necessário. Concordo que há muitas agências que estão mais para sindicatos e cabide de empregos do que outra coisa. Penso que a maneira delas agirem está errada, mas abrir mão da ANVISA, por exemplo? A ANAC que foi criada com base no DAC da Aeronáutica. O autor quer extinguir por si só?
Quem regula as agências reguladoras?
👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
Parabéns, super parabéns. Aguardo esse texto desde a era FHC, a que estuprou o povo com “carinho”, estilo e “superioridade”.