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Edição 56

A vida com menos intervenção do Estado

Liechtenstein, Hong Kong, Singapura, Prospera Village e Sandy Springs demonstram que gestão governamental descentralizada é o remédio para as burocráticas democracias modernas

Edilson Salgueiro
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Uma das virtudes da espécie humana é a capacidade de organizar-se em grupos, com linguagem e princípios comuns, para resistir à agressão de marginais. Essa união entre indivíduos com valores equivalentes, além de permitir a construção de um ambiente coeso e pacífico, impede as tentativas de opressão de facções tirânicas. Não fosse esse potencial aglutinador, o destino de homens e mulheres autodeterminados estaria fadado à extinção. Grosso modo, esse é o âmago da abordagem do filósofo contratualista Thomas Hobbes em seu Leviatã.

Compreendidos o instinto gregário do homem e a existência de facínoras dispostos a aniquilar seres humanos ordeiros, é razoável admitir a ideia de que a criação de uma entidade centralizada, que de forma exclusiva e coercitiva forneça proteção à vida, à integridade física e à propriedade de todos, possa ser considerada uma alternativa de organização social. Essa entidade, fundada durante o período Mesolítico, caracterizado por ser a transição de uma sociedade nômade para uma sociedade sedentária, permanece ainda hoje estabelecida nas regiões mais desenvolvidas do mundo. Convém chamá-la de Estado.

Não obstante seja válida a ideia de fundar uma instituição que detenha o monopólio da força, sobretudo em nome da autopreservação, a experiência real demonstra que o direito exclusivo do uso da violência pelo Estado é comumente dirigido contra o próprio povo, e este deve tolerar, sem recurso à autodefesa, parte de seus bens e de sua renda sendo espoliada e redistribuída indiscriminadamente. O efeito prático de delegar poderes ilimitados a uma entidade centralizada é, portanto, o exato oposto do que previra Hobbes.

Como observa Titus Gebel em Free Private Cities, o monopólio estatal da força se torna um instrumento de parcialidade politicamente motivada. Então, o conceito original de sua existência — proteção à vida, à integridade física e à propriedade de todos — implode como prédios deteriorados. Por isso, é contraproducente dar ao Estado um poder que vá além de garantir a segurança interna e externa de um território — embora essa lição seja constantemente ignorada, visto que a burocracia governamental se torna cada vez mais complexa em diversos países, mas não em todos.

O exemplo de Liechtenstein

O pequeno principado de Liechtenstein é um exemplo de modelo alternativo de gestão. Em 2003, a Constituição do país foi largamente alterada, a partir da observação do príncipe Hans-Adam II, que constatou a tendência inerente das democracias a caminhar em direção a governos de um único partido, bem como o interesse egoísta da classe política em preservar seus privilégios. Por conseguinte, foram instaladas duas válvulas de segurança que não são sujeitas à influência de burocratas: (1) o príncipe tem o direito de vetar resultados de referendos; e (2) todos os municípios têm direito a secessão. Nesse caso, o abuso do direito ao veto pelo príncipe pode culminar na abolição da monarquia.

Liechtenstein é o único país que permite aos seus municípios se separarem, concedendo-lhes o direito inalienável de autodeterminação. Em sua obra O Estado do Terceiro Milênio, Adam II reconheceu que essa medida melhoraria a qualidade das ações do governo por meio da concorrência, da mesma maneira como ocorre no mercado de produtos e serviços. Segundo ele, os Estados competiriam uns com os outros, a fim de oferecer aos seus “clientes” o melhor serviço possível com o menor preço. O resultado desse novo modelo de gestão estatal reflete-se na realidade: o principado tem um dos maiores PIBs per capita e salários médios do mundo. Ao contrário da crença popular, o setor financeiro contribui com apenas 24% do PIB de Liechtenstein e somente 16% da força de trabalho.

Hong Kong, um oásis no território chinês

Hong Kong é outro exemplo de como uma cidade-Estado pode evoluir de simples ideia libertária para potência de prosperidade. A ex-colônia, localizada no sudeste da China, esteve sob administração britânica de 1843 a 1997, razão por que os pilares das tradições inglesas podem ser observados na construção do hoje território autônomo. Diferentemente dos vizinhos chineses e de parte da Europa Ocidental, que optaram pelo protecionismo e keynesianismo como política econômica, Hong Kong permitiu o livre mercado, estabeleceu a cobrança de impostos baixos e não acumulou dívidas — pelo contrário, fez uma reserva equivalente a um orçamento anual. Essas medidas resultaram em altas taxas de crescimento por décadas.

John Cowperthwaite, ex-secretário de Finanças de Hong Kong, falecido em 2006, atribuiu o eminente progresso da ilha à doutrina do Não Intervencionismo Positivo, segundo a qual o governo só interfere na economia em casos excepcionais e cria a estrutura legal e infraestrutural para facilitar o desenvolvimento baseado na livre-iniciativa. “A longo prazo, o conjunto de decisões de empresários individuais, exercendo julgamento individual em uma economia livre, mesmo que muitas vezes equivocado, tende a causar menos danos do que as decisões centralizadas de um governo; e o dano provavelmente será neutralizado mais rápido.”

Desde sua devolução à China, em 1997, Hong Kong tem sido uma zona administrativa especial liderada por um executivo-chefe, mantendo uma economia de livre mercado, suas próprias leis privadas baseadas na common law inglesa, suas próprias autoridades, sua própria moeda e autonomia interna. Sob o princípio “Um País, Dois Sistemas”, acordado entre China e Reino Unido em 1984, os hong-kongueses manterão sua independência política e econômica por, pelo menos, 50 anos após a aquisição. Teoricamente, apenas política externa e questões de defesa territorial são incumbências de Pequim — mas Xi Jinping quer mais.

Conforme apontou o analista britânico Tim Black, em artigo publicado na Revista Oeste, mais de 10 mil dos envolvidos em protestos contra a crescente usurpação do Partido Comunista Chinês em Hong Kong foram presos. “A Lei de Segurança Nacional, que o PCC diz ter imposto à ilha semiautônoma para restaurar a ‘estabilidade’, estendeu o poder do Estado para reprimir a dissidência, definindo de forma ampla terrorismo, subversão, secessão e conluio com potências estrangeiras”, explicou.

O Conselho Legislativo eleito na cidade-Estado, outrora independente, foi neutralizado após Pequim ter aprovado uma resolução que permite ao governo local afastar do cargo, sem recorrer a tribunais, políticos que se recusem a reconhecer a soberania chinesa. Em novembro do ano passado, quatro de seus 19 legisladores pró-democracia foram desqualificados, o que levou os 15 restantes, por princípio, a renunciar. “Pela primeira vez em sua História, a legislatura carece de qualquer oposição aos ditames do PCC”, assevera Tim Black. Em 29 de março último, a ditadura chinesa reduziu ainda mais o número de representantes de Hong Kong na Assembleia Popular Nacional. Infelizmente, o bom modelo de gestão poderá ruir — mas as lições de autonomia e prosperidade serão perenes.

Singapura, uma potência independente

Um dos países que mais obtiveram êxito após a conquista de sua independência é Singapura. A ilha, conhecida como A Pérola da Ásia, separou-se do Reino Unido em 1963. Inicialmente, o território fez parte da recém-formada Malásia, mas a deixou apenas dois anos depois, devido à preferência do povo de etnia malaia pela cultura chinesa. Em 1965, sob a liderança do primeiro-ministro Lee Kuan Yew, o país começou a estabelecer os princípios que norteariam seu desenvolvimento. Socialista convicto, Lee reconheceu que a cidade-Estado prosperaria melhor ao adotar as bases de uma economia liberal, ou seja, livre-comércio, incentivos para a criação de empresas e pouca regulamentação estatal.

Cinquenta e seis anos depois, a economia de Singapura é considerada uma das mais inovadoras, competitivas, dinâmicas e favoráveis aos negócios no mundo. Mais de 7 mil multinacionais estão em operação no país, fator fundamental na geração de empregos e criação de riquezas. Não há salário mínimo e, portanto, a taxa de desemprego na cidade-Estado é uma das mais baixas do globo. Singapura tem baixos índices de corrupção, possui boa infraestrutura e força de trabalho qualificada. Os serviços financeiros, o refino de petróleo, a produção de componentes eletrônicos e o turismo são os principais ramos da economia do país.

O sistema legal de Singapura, considerado um dos melhores e mais confiáveis do continente asiático, é baseado na common law inglesa com características locais significativas. A pena de morte é obrigatória para assassinato, por exemplo, enquanto pichadores são condenados a castigos corporais. Em From Third World to First: The Singapore Story, Lee Kuan Yew argumentou que sua própria experiência mostrou que a pobreza não leva automaticamente ao crime, ao contrário do que dizem sociólogos ocidentais. Segundo ele, não havia comida suficiente durante a ocupação japonesa, mas a cidade permanecia segura porque as forças de ocupação impunham punições draconianas aos infratores.

Cidades privadas, a evolução do conceito de “Estado mínimo”

As cidades-Estado já consolidadas provam a eficiência de uma gestão governamental descentralizada. Liechtenstein, por exemplo, é um modelo de antifragilidade institucional — não há rupturas traumáticas no sistema político do país. Hong Kong, por sua vez, está no topo do ranking de qualidade e expectativa de vida, renda per capita e facilidade para negócios. Já Singapura é o arquétipo para nações em desenvolvimento, visto que evoluiu de país sem matérias-primas para potência econômica.

Essas experiências positivas contribuíram para o surgimento de uma ideia ousada de organização social: as free private cities, um sistema em que uma empresa privada atua como provedor de serviços e oferece proteção da vida, liberdade e propriedade. O pacote inclui segurança interna e externa, uma estrutura legal e regulamentar e resolução de disputas independente. Os clientes — no caso, os moradores — pagam todo ano uma quantia previamente estabelecida em contrato para receber esses serviços.

A companhia responsável pela gestão da cidade não pode alterar unilateralmente o acordo firmado entre as partes. As disputas entre moradores e o provedor de serviços governamentais serão ouvidas perante tribunais de arbitragem independentes, como é habitual no direito comercial internacional. Se a empresa ignorar as sentenças arbitrais ou abusar de seu poder, os clientes vão embora e ela irá à falência. Dessa maneira, o risco econômico impele o operador de serviços a tratar bem os moradores e respeitar o contrato.

Honduras, país localizado na América Central, é pioneiro nesse novo mercado. Em seu território, na Ilha de Roatán, foi instalado o Prospera Village, uma Zona de Emprego e Desenvolvimento Econômico (Zede) com alto grau de autonomia que tem como objetivo a criação de postos de trabalho, a aceleração do desenvolvimento econômico e a melhoria da qualidade de vida dos hondurenhos. Embora faça parte de Honduras — conhecido por poucas oportunidades de negócios e amplas intervenções do governo na economia —, o Prospera Village está legalmente separado do resto do país.

Os operadores do Roatán Prospera, como o projeto é conhecido, podem estabelecer as próprias leis, tribunais e modelos de segurança, bem como seu código tributário e orçamento. A única condição imposta pelo governo de Honduras para permitir o pleno funcionamento da região autônoma é o pagamento de 15% de suas receitas. Para facilitarem a ação dos investidores na ilha, os gestores construíram um ambiente que minimiza a burocracia. O imposto de renda não excede 10%, mais uma taxa anual de residência no valor de US$ 1.300 para estrangeiros e de US$ 260 para hondurenhos.

Projeto residencial da premiada arquiteta Zara Hadid em Roatán, Honduras

Conforme previsto originalmente no projeto das Zedes, as disputas legais serão tratadas por meio de arbitragem ou tribunais locais aplicando os princípios da common law inglesa, similar ao modelo adotado pelo Dubai International Financial Centre (DIFC). Um profissional técnico proposto pela operadora de serviços, em concordância com os residentes, atuará como a principal autoridade governamental, cabendo à Suprema Corte hondurenha a avaliação dos tribunais e juízes atuantes no Prospera Village.

Estima-se a população de Roatán em mais de 50 mil pessoas. Hoje, apenas 10% da ilha é povoada — os 90% restantes são compostos de florestas e áreas de selva. Os residentes são das mais variadas origens: africana, britânica, indígena. Há dois hospitais principais na região: um público, o outro privado. Foram construídas 68 instituições de ensino na Zede — 35 para a pré-escola, 20 para o ensino primário e 13 para o secundário. Além disso, a ilha possui 18 centros educacionais bilíngues, com inglês e espanhol.

Mais ao norte do continente americano, nos Estados Unidos, também há iniciativas libertárias. Sandy Springs, cidade localizada no Estado da Geórgia, não é uma comunidade autônoma, mas chama atenção por outro motivo: praticamente todos os serviços municipais são prestados por empresas privadas — com exceção da polícia, do corpo de bombeiros e dos tribunais. Em caso de ineficiência, os provedores podem ser substituídos pelo prefeito ou pelo Conselho Municipal. Esse turning point ocorreu em 2005, quando moradores insatisfeitos com a gestão do condado conseguiram, por vias legais, estabelecer a cidade como um município semi-independente. Dez anos após sua fundação, Sandy Springs chegou à conclusão de que a qualidade dos serviços municipais melhorou consistentemente, e com custos de 10% a 40% mais baixos, conforme relata Oliver Porter, um dos idealizadores do projeto. Durante a década, o condado não apenas deixou de acumular dívidas, como também construiu uma reserva de US$ 45 milhões.

O sucesso de Sandy Springs motivou dezenas de cidades norte-americanas a criar modelos de gestão similares. Recentemente, o governador de Nevada, Steve Sisolak, apresentou uma proposta de criação de Zonas de Inovação em todo o Estado. A ideia é atrair empresas de tecnologia e dar a elas o poder de criar o próprio governo. Em troca dessa autonomia, Nevada renunciaria à cobrança de impostos e forneceria pacotes de incentivos fiscais aos empreendedores. As companhias interessadas no projeto precisam comprovar a posse de US$ 250 milhões em capital e ter um plano de investimento de longo prazo, com aportes que devem somar, no mínimo, US$ 1 bilhão nos primeiros dez anos de administração das cidades.

O que todas essas cidades têm em comum

Liechtenstein, Hong Kong, Singapura, Prospera Village e Sandy Springs têm em comum o irrefreável desejo de autodeterminação, virtude sem a qual teria sido impossível atingir seus atuais estágios de riqueza, dadas as notáveis circunstâncias adversas — geográficas, territoriais e políticas. A ordem social estabelecida por esses locais só logrou êxito porque foi calcada em princípios comuns a todos, a saber: (1) interesse econômico no sucesso da sociedade; (2) responsabilização dos criminosos; (3) direito a secessão sem nenhum obstáculo financeiro ou de outra ordem; (4) não concessão de benefícios especiais a nenhum grupo; (5) respeito absoluto às normas estipuladas em contrato; e (6) direito a julgamento em tribunais independentes ou órgãos de arbitragem neutra.

Em resumo, essas cidades prosperam porque indivíduos com interesses compartilhados se unem, voluntariamente, para satisfazer suas aspirações econômicas, sociais e culturais.

Leia também “Chegou a hora de enfrentar a China — e a Rússia”

13 comentários
  1. Luiz Antonio Fraga
    Luiz Antonio Fraga

    Excelente matéria! Abordagem de altíssimo nível.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Muito interessante.

  3. Cássio Marinho Siqueira
    Cássio Marinho Siqueira

    👏👏👏👏👏👏

  4. Carlos Sergio Souza Rose
    Carlos Sergio Souza Rose

    Parabéns pelo artigo. Espetacular e ao mesmo tempo nos deixa um sentimento de inveja das possibilidades de mudanças de uma sociedade.

  5. Júnior
    Júnior

    O artigo não se reporta a opiniões ,mas a fatos. Ocorre que para nós outros esses fatos soam como surreais e até impossíveis ao nosso modelo social e cultural. Infelizmente as narrativas do artigo se apresentam como verdadeira utopia aos nossos olhos. No nosso caso seremos mais capazes de identificar fatos sobre distopia, porque este é o nosso caso.

  6. Adalberto Franco Netto Telles
    Adalberto Franco Netto Telles

    Excelente matéria!

  7. Antonio Rodrigues
    Antonio Rodrigues

    A ideia é boa…na pratica soa um tanto utópica – se aplicada aqui em território nacional , como o socialismo, por exemplo: Na teoria funciona; na pratica…. Um fator relevante e digno de reflexão é a cultura populacional de Liechtenstein, Hong Kong, Singapura, Prospera Village e Sandy Springs diferiem do Brasil.
    Boa matéria!

  8. Romulo Alves Gomes
    Romulo Alves Gomes

    Belo texto. Essas iniciativas devem causar aflição na alma de esquerdopatas.

  9. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Excelente artigo. Pode ser ainda uma ação pontual, no entanto capaz d se expandir à medida q cidades ou estados autônomos prósperos influenciem seus vizinhos

  10. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Discordo. Excelente artigo.
    Precisamos desinchar e desburocratizar
    o estado.

  11. Laudares Capella
    Laudares Capella

    Sr. Edilson vai me perdoar; mais O SEU ARTIGO é para um grupo muito pequeno para tirar proveito

    1. Maria de Fatima Lepri
      Maria de Fatima Lepri

      Não concordo , ótimo artigo. Quem dera todos escrevessem com tamanha clareza e conhecimento!

    2. Marcelo Gurgel
      Marcelo Gurgel

      O conceito é espetacular, mas de difícil aplicação. O establisment voluntariamente não cederá um milímetro.

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