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Edição 60

O Brasil precisa de M4t3m4t1c4

Um povo que não sabe usar uma planilha está condenado a aceitar os fatos que afetam sua sobrevivência e prosperidade sem saber como reagir

Dagomir Marquezi
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Começou no último dia 10 a 27ª Olimpíada de Matemática de Maio, com estudantes até 15 anos de idade. Os finalistas entrarão no circuito internacional. Poderão seguir o exemplo das três estudantes brasileiras que faturaram medalhas de bronze na 10ª Olimpíada Europeia de Matemática para Garotas, encerrada na República da Geórgia em 15 de abril.

E quem se importa? Vivemos numa época de politização rasa, opiniões abstratas sobre tudo e considerações estéticas. Não ligamos muito para os números. Deixamos a matemática para técnicos e especialistas, encarregados de fazer com que as coisas funcionem. E voltamos para a interminável guerra de opiniões nas redes sociais.

Temos um pequeno grupo muito capacitado de especialistas, alguns já trabalhando em outros países. Mas a matemática não faz parte da nossa cultura. Pior: é tratada a pauladas na educação brasileira, hoje mais preocupada em produzir intoxicação ideológica e política sindicalista do que em conviver com a realidade.

No início deste ano, a revista The Economist divulgou um novo estudo desenvolvido em conjunto pela Universidade Harvard e pelo Centro para o Desenvolvimento Global. Segundo o estudo, a riqueza de um país como um todo interfere no seu desempenho em educação de matemática e ciências tanto quanto a renda da família do estudante. Em outras palavras: quanto mais gente estuda ciências e matemática, mais o país fica rico. E, quanto mais o país fica rico, mais gente estuda ciências e matemática. O círculo é virtuoso.

Pontuação TIMSS estimada equivalente, de 1.000. Em dólares de 2005, em paridade de poder de compra (PPP) – Fonte: The Economist

O Brasil é citado no estudo como um exemplo contrário. Aqui, a desigualdade de renda faz com que a ponta superior da sociedade consiga colocar seus filhos em boas instituições, enquanto a grande maioria tem um ensino precário, incapaz de gerar futuras riquezas. Num país como a Coreia do Sul, as distâncias são pequenas nos dois sentidos. Os mais ricos tiram melhores notas em matemática, e não há tanta diferença entre os padrões de renda nem nas notas obtidas. No Brasil, essa distância é muito maior. Os mais ricos ganham vinte vezes mais que os mais pobres, e a diferença entre notas mais altas e mais baixas é equivalente. Entre os países estudados mais a fundo, o Brasil é o que tem a pior taxa de desequilíbrio entre renda doméstica e notas de matemática.

Um país que despreza a matemática não coloca os pés no chão. Um povo que não sabe usar uma planilha está condenado a aceitar os fatos que afetam sua sobrevivência e prosperidade sem saber como reagir. A matemática não é só para os matemáticos, mas para cada um de nós.

Mesmo quando estão ocultos, os números regem cada detalhe de nossa vida. A residência onde você vive nasceu de cálculos estruturais antes que um único tijolo fosse comprado. Uma rápida passada pelo supermercado é uma sucessão de contas mentais de custo/benefício. Um jogo de futebol é um conjunto de formas geométricas em constante mutação, definidas por 22 jogadores e uma bola. O seu dia está dividido em frações de tempo. A música que você ouve é um conjunto de divisões e subdivisões de compassos de tempo e de frequências de som. Estas linhas que você está lendo nasceram de uma combinação de zeros e 1s num processador digital de texto.

Qual a real importância que o Brasil dá à matemática? Vamos procurar a resposta usando os critérios da Quacquarelli Symonds, a QS, organização internacional com sede em Londres e escritórios em oito países, especializada em avaliações de educação. Todo ano a QS publica seu ranking das melhores escolas do mundo em cada especialidade.

O primeiro lugar do ranking 2021 de escolas de matemática pertence a uma célebre instituição norte-americana: o MIT, ou Massachusetts Institute of Technology, com pontuação de 96,5. Dos dez primeiros colocados, seis estão nos EUA. Outros três têm sede na Europa (Reino Unido e Suíça) e um na Ásia (a Universidade Nacional de Singapura).

Vamos pegar uma amostra mais ampla, a das 100 instituições mais bem avaliadas no ensino da matemática. E temos este resultado de instituições por país:


O Brasil emplaca o único representante de toda a América Latina e África nesse ranking. A Universidade de São Paulo está em 96º lugar, com nota 74,2. É um troféu para se orgulhar. Mas não esconde o fato de que somos os menos ruins do Terceiro Mundo. Precisamos mais do que isso.

O panorama fica ainda mais trágico na avaliação do Pisa (ou Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). O Pisa divide o conhecimento de matemática em sete níveis. O nível mais alto é o 6. O nível 2 é considerado o patamar mínimo para que o aluno possa “aplicar conhecimentos básicos e resolver problemas simples”. No levantamento de 2018, apenas 0,1% dos estudantes brasileiros estavam no nível 6. E 68,1% estavam não só abaixo do nível 2, o mais básico, como também abaixo do nível 1. Estamos no subsolo.

Isso valoriza ainda mais os seis adolescentes que, em setembro do ano passado, colocaram o Brasil em décimo lugar (entre 105 países) na Olimpíada Internacional de Matemática, com uma medalha de ouro e cinco de prata. Mas o país não pode melhorar se continuar dependendo de heróis eventuais como esses seis jovens e alguns matemáticos de primeira linha. Continuamos prisioneiros de uma visão torta que enxerga as ciências exatas como “desumanizadoras”. O lobby por mais faculdades de filosofia é poderoso.

“Um dos mais belos aspectos da matemática é sua relação com a alma e a mente humanas”, escreveu o matemático e economista brasileiro Rodrigo Peñaloza em 2017. “É lamentável que a matemática seja vista com tanta rejeição por tantos. Se você ama as humanas e não gosta de matemática, a razão foi provavelmente a maneira como seus professores ensinaram a matéria na escola. […] Eu não apenas culpo os professores de matemática, eu também responsabilizo os professores de humanas por não saberem como conectar as ciências humanas com o pensamento matemático.”

Existe um senso de beleza em equações, na lógica com a qual elas se estabelecem, na maneira como produzem resultados que se conectam, como as rimas de uma poesia. Obras de arte que nos hipnotizam pela harmonia, como a Monalisa de Leonardo da Vinci, seguem uma equação matemática conhecida como a “proporção de ouro” — ou “(1 + √5) / 2 ≅ 1,618”.

Nem é preciso decifrar essa charada. Basta juntar na nossa cabeça que “humanas” e “exatas” não estão em guerra. Pelo contrário, são (ou deveriam ser) modos complementares de ver o mundo. A australiana Catherine Menon vive na prática essa ligação. Ela é ao mesmo tempo ph.D. em Matemática Pura e mestre em Escrita Criativa.

“A matemática e a escrita vêm do mesmo espaço criativo”, declarou Catherine ao jornal The Guardian. “Eu sinto que a ‘sensação’ de construir uma equação é a mesma sensação de construir uma sentença, parágrafo ou trama dramática. A matemática pura é muito abstrata: é uma linguagem mais de ideias do que de números. O valor de uma equação vai se basear normalmente em quão elegante e interessante seja, exatamente como o valor de uma escrita.”

O Brasil precisa de matemática, como um paciente desidratado precisa de soro — se quiser resolver boa parte dos seus problemas e acordar do berço esplêndido de uma vez. A matemática gera soluções práticas. Sua objetividade é uma grande inimiga da ilusão populista.

Alguns dos maiores problemas do Brasil de hoje são matemáticos. O tamanho do Estado, a distribuição do orçamento, os gastos da burocracia, o controle da inflação, a corrupção, a carga tributária, as vítimas da pandemia — tudo isso são números, gráficos, cálculos e projeções. Quem não entende minimamente esses conceitos não consegue compreender a complexidade da realidade em que vive.

Leia também “O culto à ignorância”


Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direitos dos animais e tecnologia

16 comentários
  1. Wesley Montechiari Figueira
    Wesley Montechiari Figueira

    As críticas à matemática normalmente vem de quem tem pouca familiaridade com ela, e muita com o blábláblá… é a proverbial “prisão de ventre de ideias e diarreia de palavras”, como dois notáveis ex-presidentes nossos, de viés sinistro.

  2. Jane Maria Dos Santos Eberson
    Jane Maria Dos Santos Eberson

    Excelente!

  3. Alberto Junior
    Alberto Junior

    Dagomir Marquezi vem enobrecendo a revista Oeste com seus textos impecáveis: bem escritos, informativos, convidativos à experiência crítica, com uma variedade de temas importantes e interessantes. Qual assunto ele vai abordar na semana que vem? Certamente vai nos brindar com mais um texto certeiro – como este, que complementa aquele da semana passada, que tocou na questão nefasta do esquerdismo entranhado nas universidades e as consequências deletérias dessa ideologia que falseia o conhecimento, pois não aceita o contraditório e nega o método científico.

  4. Marcelly Dias
    Marcelly Dias

    Parabéns!

  5. Alirio Luiz Humel
    Alirio Luiz Humel

    Neste nosso país muitos só conseguem contar até nove, porque seu ídolo só tem nove dedos.

  6. Dtsbhz
    Dtsbhz

    Excelente!

  7. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Muito bom o texto. Gostei.

  8. Antonia Marilda Ribeiro Alborgheti
    Antonia Marilda Ribeiro Alborgheti

    a falta de conhecimento é terrível, exemplo: eu na fila do mercado, uma senhora na minha frente questionava o caixa que determinado produto constante da cobrança estava em desacordo com o anunciado; um auxiliar foi pegar o anuncio; cliente, caixa e auxiliar ficaram olhando para o anuncio sem dizer nada; tive que explicar que o preço questionado pela cliente era para 100 gramas do produto (no caso alho) e ela havia comprado 1kilo, a cobrança, portanto, estava correta

  9. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    A maior dificuldade que os jovens têm com a matemática é não conseguir ler e interpretar a questão formulada em português. Para gostar de matemática tem que conhecer bem o nosso idioma.

  10. FERNANDO A O PRIETO
    FERNANDO A O PRIETO

    Correção: Deve ser “com elogios”, e não “com o elogios” e “ignorante” em vez de “ignororante”Desculpem!

  11. FERNANDO A O PRIETO
    FERNANDO A O PRIETO

    Muito bom! Parabéns. É preciso acabar de vez com o elogios a certa atitude, como a de um ex-presidente, que se orgulhava de sua ignorância. Claro que, se esta for resultado da pobreza, é COMPREENSÍVEL, mas não era o caso dele (teve muitas oportunidades de se aprimorar depois que ficou rico)… Esse mau exemplo não foi comentado com o devido destaque. O ignrorante, especialmente de Matemática e Poretuguês, deve ser apoiado para que estude.

  12. Emerson Rodrigues Da Silva
    Emerson Rodrigues Da Silva

    Gosto muito dos textos do Dagomir. Toda semana é um prazer ler os textos dele (apesar das más noticias).

  13. Claudia Aguiar de Siqueira
    Claudia Aguiar de Siqueira

    Ignorância, aqui em Bananalândia, é algo incensado.

  14. MARCELO GONÇALVES VILLELA
    MARCELO GONÇALVES VILLELA

    Muito bom!

  15. SILVIA C A L SOUZA
    SILVIA C A L SOUZA

    Excelente!

    1. JOAQUIM GOMES JUNIOR
      JOAQUIM GOMES JUNIOR

      Temos que lutar para afastar essa esquerda anarquista do poder, que sempre busca viver da total ignorância, que desvirtua principalmente os jovens. Não se forma bons profissionais em escolas, e faculdades públicas ou psrticulares dominadas por militantes esquerdistas disfarçados de professores.

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