Um ecossistema vital para o planeta está sob ameaça, assim como suas populações indígenas. Não é a Amazônia. É o Ártico, que aparentemente não tem tanto prestígio entre ONGs e astros de Hollywood.
Mudanças climáticas (seja lá qual for a razão para elas) estão transformando radical e rapidamente a região ártica. E provocando uma inédita movimentação econômica e militar no topo do mundo. A região hoje ainda congelada pode virar em pouco tempo uma das mais explosivas zonas de conflito.
O que define o Ártico? Tecnicamente é a região ao norte da latitude 66º30’N (o Círculo Polar Ártico), a partir da qual pelo menos uma vez por ano o dia dura 24 horas (no solstício de verão) e a noite idem (no solstício de inverno). Abrange 21 milhões de quilômetros quadrados, quase duas e meia vezes a área do Brasil. Engloba o território de oito países: a Dinamarca (por sua possessão da Groenlândia), a Noruega, a Suécia, a Finlândia, a Islândia, o Canadá, os EUA (pelo Alasca) e a Rússia.
No total, a população ártica é de 4 milhões de habitantes, dos quais meio milhão são indígenas (como os inuítes e os esquimós). Metade dessa população está na costa norte da Rússia, que se estende por quase metade do círculo polar. Seus habitantes suportam temperaturas que podem chegar a 70 graus Celsius negativos.
Embarcações têm hoje acesso limitado no verão a duas rotas marítimas: a do Mar do Norte (na costa da Rússia) e a Passagem do Noroeste, um labirinto de ilhas no Alasca e Canadá. O gelo quase permanente do Ártico preservou alguns de seus recursos naturais, especialmente petróleo, gás e minerais. E limitou a presença militar de todos os países envolvidos.
O Ártico pode conter 13% das reservas de petróleo do mundo
Até agora. O gelo está se derretendo em alta velocidade. No ano passado, a cidade de Verkhoyansky, em pleno Ártico russo, atingiu temperatura de verão carioca: 38 graus Celsius. A floresta siberiana ardeu em larga escala. Por razões naturais, quando a temperatura sobe no resto do mundo, sobe ainda mais no Ártico. A causa é um efeito climático conhecido como amplificação polar, que afeta muito mais a região do Polo norte e muito pouco a do Polo Sul.
Esse aquecimento está propiciando a criação de rotas de transporte marítimo. Cientistas calculam que a partir de 2030 os verões do Ártico serão livres de gelo. Para a Rússia, o fato é especialmente importante por três razões. Por um lado, possibilita um atalho para qualquer parte do Hemisfério Norte através do Pacífico e do Atlântico. Em segundo lugar, abre amplas perspectivas de exploração de produtos naturais, sobretudo gás, petróleo e metais raros. (Fora o crescente turismo.) De acordo com o governo norte-americano, o Ártico pode conter 13% das reservas mundiais de petróleo e 30% das reservas de gás natural. E tudo isso está quase intocado. Cresce a preocupação com desastres ecológicos numa região tão frágil.
A terceira razão incomoda os tradicionalmente paranoicos russos. Com o rápido degelo, eles ganharam “de presente” cerca de 5.600 quilômetros de costa a ser protegidos. E a região foi praticamente abandonada pelos militares desde o fim da União Soviética, há 30 anos.
A Federação Rússia agora está militarizando sua costa ártica rapidamente. A quem reclama, Vladimir Putin responde com o óbvio: o território é deles. Segundo um estudo recente do Congresso dos EUA, os russos estão ocupando todos os espaços possíveis: novas brigadas, reformas de campos de aviação, bases militares, portos de águas profundas, radares e mísseis. Bases que estavam desativadas desde o tempo da Guerra Fria estão sendo reequipadas e modernizadas. Vladimir Putin fez do Ártico uma vitrine para o crescente poderio militar russo.
Até agora as relações formais entre a Rússia por um lado e os países ocidentais por outro (EUA, Canadá e países nórdicos) se desenvolveram num ambiente pacífico e de cooperação no Ártico. Todos colaboram em setores como serviços de salvamento e tráfego marítimo e ações conjuntas a ser tomadas em caso de desastre ambiental.
A abertura do Ártico para a navegação e a exploração vai, é claro, mexer com esse equilíbrio. Novas possibilidades vão surgir, acompanhadas de velhas rivalidades. Claro que nessa nova situação não poderia faltar a insaciável China. O regime comunista declarou-se um Estado “quase ártico”. Em maio de 2019, o então secretário de Estado do governo Trump, Mike Pompeo, deu a resposta aos chineses: “Só existem Estados árticos e não Estados árticos. Não existe uma terceira categoria”.
A ambição dos chineses aparentemente não é militar. Eles pretendem explorar recursos naturais e navegar os mares árticos descongelados. E também criar um equivalente polar da sua Belt and Road Initiative, o megaprojeto de transportes e infraestrutura lançado em 2013, que liga a China à Europa, cruzando o sul da Ásia.
A China ganhou o status de observadora permanente do Conselho do Ártico. Está montando frota própria de quebra-gelos movidos a energia nuclear. (Só a Rússia possuía navios desse tipo.) A ditadura chinesa está realizando intensa ofensiva diplomática e econômica junto aos governos da Islândia e da Groenlândia.
A China está instalando bases de “pesquisa” no Ártico, visando a uma rota opcional de navegação caso as coisas se compliquem na costa da Ásia. E existe o interesse de abrir os mares árticos à sua frota de pesqueiros, a maior e mais predadora de todo o mundo.
O apetite com que a China está avançando na região ártica fez com que o ex-presidente Donald Trump levantasse, em agosto de 2019, a possibilidade de os EUA comprarem a Groenlândia dos dinamarqueses. Ninguém levou a proposta muito a sério. Mas os norte-americanos só possuem o Alasca hoje porque adquiriram o território do império russo, em 1867, por US$ 7,2 milhões — valor que equivale a US$ 131 milhões de hoje. Uma pechincha.
Mas o conflito em potencial está centrado mesmo na Rússia. E desta vez os russos não estão nem mantendo a escalada militar em segredo. Jornalistas ocidentais foram convidados a conhecer por dentro a base russa chamada Trefoil, na Terra de Franz Josef. Exibiram-se as velhas instalações de defesa que estão sendo reformadas e pintadas com as cores da bandeira nacional, azul, branco e vermelho. O recado passado aos jornalistas foi que essa militarização é apenas uma reação à “crescente ameaça” dos países ocidentais. Onde essa ameaça acontece, não ficou claro.
A Frota do Norte russa vai estrear neste ano 13 navios militares, que se somarão aos cerca de 50 já em operação. Segundo o repórter do New York Times Andrew E. Kramer, que estava na visita, os russos possuem inclusive um programa secreto de treinamento de focas e baleias belugas para uso militar. (Dois anos atrás uma beluga usando uma misteriosa forma de arreio aparentemente escapou de seus captores e apareceu na Noruega. Ganhou o apelido de Hvaldimir.)
A BBC, também convidada, produziu esta matéria sobre a visita à base militar de Trefoil:
O novo cenário de guerra em potencial cria desafios bélicos. Em março, a Marinha russa divulgou com orgulho a cena de três submarinos balísticos aflorando ao mesmo tempo no gelo em algum ponto do Ártico, teoricamente prontos a disparar seus mísseis:
“A Rússia está trabalhando no Ártico para recuperar seu status de grande potência e ao fazer isso está se tornando uma ameaça em potencial pela primeira vez em muitas décadas”, declarou Rebecca Pincus, expert em segurança, ao Wall Street Journal.
Biden e Putin iniciaram sua primeira reunião na última quarta-feira em Genebra. O objetivo é melhorar as más relações entre os dois países. E manter a “estabilidade estratégica”, por meio do tratado de controle mútuo de armas conhecido como Start.
Por enquanto, os Estados Unidos permanecem indecisos e divididos, e essa situação parece ter se agravado com a administração Joe Biden. Percebendo o grau da escalada russa no Ártico, os EUA enviaram um “recado” ao Kremlin, ao instalar quatro bombardeiros B1 numa base da aliada Noruega. A BBC produziu esta matéria sobre o evento:
É um recado tímido demais. A Marinha russa está acelerando a produção de seus novos submarinos nucleares da classe Yasen-M para ajudar a transformar sua Frota do Norte numa máquina de guerra de primeira grandeza. Mas a “cereja do bolo” que os russos estão preparando para tirar o sono de seus eventuais inimigos é o Poseidon.
O Poseidon é o maior torpedo já construído, com 24 metros de comprimento e propulsão e armamento nucleares. Ele faz a alegria de Vladimir Putin, que tem como uma de suas principais atividades aterrorizar os países ocidentais com armas de pesadelo. Segundo o site do US Naval Institute, o gigantesco submarino Belgorod será equipado com seis torpedos Poseidon, cada um com capacidade destrutiva de 2 megatons (ou 2 milhões de toneladas de TNT).
O objetivo do megatorpedo, segundo a USNI (sigla em inglês para Instituto Naval dos Estados Unidos), é “destruir instalações econômicas importantes em áreas costeiras do inimigo e causar dano suficiente ao território do país, criando grandes áreas de contaminação radiativa e tornando-as inúteis para uso militar, econômico ou qualquer outra atividade por longo tempo”.
Daqui a alguns anos os russos poderão mandar o Belgorod para a frente de algum grande centro urbano dos EUA, por exemplo. O megassubmarino poderá então disparar um Poseidon em direção ao alvo. O supertorpedo viaja a 130 quilômetros por hora a 1.000 metros de profundidade, indetectável pelas redes de satélites de defesa. Quando chega ao alvo, mata instantaneamente, digamos, 5 milhões ou 10 milhões de pessoas. E torna a região imprestável por décadas.
Existem versões que garantem que o Poseidon nem precisa de um submarino para ser lançado. Ele poderia ser enterrado no fundo do mar e apontado para seu alvo, esperando o momento de ser acionado a distância. É terror em estado puro.
Os países democráticos têm toda a razão de se preocupar com a agressiva expansão da China. Mas não devem subestimar a Rússia de Vladimir Putin. Putin colocou na cadeia seu maior adversário político, Alexei Navalny, e jogou na clandestinidade seus seguidores. Pretende mandar na Rússia por décadas. Disfarça as fragilidades do país com armas apocalípticas, ataques de hackers e ameaças aos países vizinhos.
Ninguém contesta que a Rússia tem direitos na sua costa ártica. A abertura das águas na região pode ser uma chance para novos acordos internacionais de mútuo interesse econômico e turístico. Mas, antes mesmo que o gelo se derreta, a Rússia de Putin está transformando o Ártico de paraíso natural em foco de perigosa instabilidade para o resto do mundo.
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Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de Se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direitos dos animais e tecnologia.
Enquanto isso no Ocidente: “defund the police”
E pensar que nossa “guerra” é contra a cloroquina…
Excelente! E assustador!
Excelente artigo. Parabéns.
Novos desenhos do planeta e novos desafios a enfrentar.
Nossa latitude é outra mas as preocupações são mundiais.
Uma belíssima reportagem. Parabéns!
Aqui a guerra é contra a Cloroquina e não contra a doença.
A terceira guerra já aconteceu. Naquilo que se chamava planeta existem macacos que têm como bode expiatório a raça humana. Não se trata da realidade, mas de uma série chamada de “O planeta dos macacos”. O grande final é a explosão da bomba total que aniquila tudo que mais restasse. É, os russos e chineses ainda vão conseguir…
Os povos se agigantando.
E nos ?
Seguimos com destino à “assimilação”,
em razão das nossas intermináveis tolices.