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Edição 07

A indústria da calamidade e a farra sem licitação

Se os larápios do Covidão não forem castigados, voltaremos aos tempos em que aqui se roubava até a Taça Jules Rimet

Augusto Nunes
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Calamidade pública é uma expressão que impõe aos cavalgados um pavor tão intenso quanto o entusiasmo que desperta entre cavalcantis. É sinônimo de pesadelo para governados que a catástrofe reduz a flagelados. Para governantes, as duas palavras são a senha para o ingresso no sonho da gastança sem limites nem restrições, sem contrapartidas nem cobranças, sem vigilâncias nem barreiras que obstruam outro surto de ladroagem impune. Ao saber que um pedaço do município foi castigado por uma desgraça de bom tamanho, o prefeito decreta o estado de calamidade pública, requisita o dinheiro que nunca falta nem demora a chegar quando se trata de urgência urgentíssima e entra na farra dos contratos sem licitação. No Rio de Janeiro, por exemplo, prefeitos da Região Serrana aguardam as chuvas de verão com a mesma ansiedade otimista demonstrada por prefeitos nordestinos à espera do aviso de que a seca não acabará tão cedo. Encostas inundadas ou sertões ferventes são calamidade garantida. E toda calamidade é muito lucrativa.

Se um temporal de cinco horas rende verbas suficientes para que o município espere o próximo verão com dinheiro em caixa, se uma estiagem com alguns meses de prorrogação mantém equilibrado o orçamento da cidade que arde sob o sol, é compreensível a escancarada excitação dos governantes municipais com um desastre sanitário de dimensões planetárias. É tarde para lastimar o que se gastou e é cedo para calcular quanto se gastará no combate à pandemia de coronavírus. Mas não é preciso esperar pelos números finais para prever o espanto do mundo com a pujança da indústria da calamidade pública. Essa indecente brasileirice vem engolindo milhões de reais enquanto os demais setores da economia caçam migalhas para escapar da falência.

As primeiras esquadrilhas de vírus chineses haviam acabado de pousar em solo brasileiro quando começou a funcionar em tempo integral a fábrica de decretos de calamidade pública.

A medida foi encomendada por governadores e prefeitos. A primeira morte decorrente da pandemia precipitou o parto de um “orçamento de guerra” no Congresso, que liberou o governo federal para torrar sem insônia nem remorso o dinheiro que não tem. Foram revogados o bom senso, a lógica, as advertências dos ajuizados — e também a Lei de Responsabilidade Fiscal, o teto de gastos, o controle da dívida fiscal e alguns pilares da política econômica do ministro Paulo Guedes. Nesta semana, o carnaval dos perdulários sem lastro foi anabolizado pelo Congresso com mais um socorro financeiro que vai financiar o combate à pandemia em todos os Estados e municípios. Isso mesmo: todos.

A mais abrangente distribuição de dinheiro concebida desde a chegada das primeiras caravelas exibe marcas de nascença suspeitíssimas. Parte dos R$ 125 bilhões, por exemplo, será usada pelos governadores “para manter a máquina administrativa funcionando”, seja lá o que isso significa, e sem que os governos estaduais ofereçam algo em troca. A fortuna reservada ao duelo com o vírus chinês vai beneficiar tanto municípios assolados pela pandemia quanto os que não contabilizam um só caso confirmado. Resultantes de um confuso cruzamento de estatísticas, as doações feitas a cada município não descartam sequer centavos. Moedas que até mendigos menosprezam não são coisa de gente séria. São truques de vigarista que, fantasiado de diretor de departamento financeiro, tenta conferir respeitabilidade a cifras que não fazem sentido.

Tome-se como exemplo a disparidade das quantias orçadas para o combate à pandemia nos dois menores municípios de São Paulo e Mato Grosso. A paulista Borá tem 837 moradores. A mato-grossense Araguainha tem 935, apenas 98 a mais. Mas Borá receberá R$ 93.619,92 e Araguainha será contemplada com R$ 257.944,36. Esse tratamento desigual decerto prejudicaria o desempenho do município paulista na guerra que não houve porque o inimigo nunca deu as caras nos campos de batalha: até agora, em nenhuma das cidades foi registrado um único e escasso caso de coronavírus. Como o texto do projeto aprovado pelo Congresso não permite a devolução do dinheiro, Borá e Araguainha terão de usar a imaginação para aplicar a verba em problemas reais. A imaginação ou as infinitas saídas de emergência oferecidas pela dispensa de licitação.

Convém ressalvar que a exigência de licitação não evitou o grande assalto à Petrobras, consumado pelo maior esquema corrupto de todos os tempos.

Mas a documentação exigida por lei, repleta de impressões digitais, evidências de superfaturamento e outras evidências criminosas, abreviou a desmontagem da quadrilha do Petrolão — e contribuiu para que a Lava Jato se transformasse na mais bem-sucedida operação anticorrupção da história. A identificação e a captura dos larápios da classe executiva seriam mais complicadas se os bandidos tivessem avançado pelo atalho dos contratos sem licitação. As bandalheiras agrupadas na reportagem de capa desta edição da Oeste informam que o Covidão, ainda uma obra em andamento, tem tudo para garantir no Museu da Corrupção no Brasil uma sala mais espaçosa que as que abrigam a Copa da Roubalheira e a Olimpíada da Ladroagem.

Embora mereça uma Lava Jato customizada, por enquanto o Covidão não tem recebido a devida atenção do Ministério Público, do Judiciário e da Polícia Federal. Os delegados parecem imobilizados pela recente troca de comando. Promotores e juízes andam vestindo jalecos imaginários para bloquearem a ressurreição gradual de atividades econômicas sepultadas pelos sacerdotes do confinamento para todos. O Brasil decente aprendeu com a Lava Jato que todos são iguais perante a lei e que há vagas na cadeia para quem se achava condenado à perpétua impunidade, começando pelo ex-presidente da República que saiu da História para cair na vida.

Se os meliantes envolvidos no Covidão não forem castigados, o Brasil será conhecido como o país em que os ladrões não permanecem em quarentena mesmo durante uma ofensiva de vírus chineses. Nessa hipótese, voltaremos aos tempos em que aqui se roubava até a Taça Jules Rimet.

27 comentários
  1. Natan Carvalho Monteiro Nunes
    Natan Carvalho Monteiro Nunes

    Excelente artigo, meu caro Augusto! Abraço!

  2. Airtom Clerman
    Airtom Clerman

    Augusto
    Em adendo a meu comentário , se vc quiser , mando-lhe um texto politicamente INCORRETISSIMO que escrevi sobre Covid19 e o Brasil.
    Assim você poderá dar risadas em tempos de cólera

  3. Airtom Clerman
    Airtom Clerman

    Caro Augusto
    Não sou jornalista , politico ou advogado . Seu leitor , “ouvidor” e agora telespectador desde sempre. E desde sempre seu admirador. Ocorre que assistindo diariamente o” Pingos nos is”, me parece que a “Santissima Trindade” (expressão que usei em textos somente para amigos ,sobre o momento atual ) tem , aparentemente , “livrando” o PR das barbaridades que comete todos os dias.
    Mas tanto quanto os comentários corretos sobre a atuação do Parlamento e Judiciário , mostre quem eh de verdade o homem que ocupa a Presidência.
    Por outro lado , a entrevista com o Gov. Reinaldo Azambuja deveria ser obrigatória em toda mídia nacional. A ser verdade tudo que ele relatou , eh uma aula magna de como deve ser enfrentada uma pandemia. E desde 31 de janeiro.
    Obrigado pela atenção

  4. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    O Brasil é um país onde a corrupção é protegida por lei. Com um Congresso majoritariamente desonesto não temos salvação.

  5. Tânia
    Tânia

    Augusto, Augusto, como é bom ler uma peça de literatura como essa que você nos brindou! É pena que o assunto é muito cruel para todos. Como, sabendo de toda a roubalheira que está acontecendo e que ainda vai acontecer, ninguém consegue evitar esse mal? Triste!

  6. Fabio R
    Fabio R

    Somente os mais velhos comentam e protestam contra estes abusos e falta de vergonha dos politicos.
    O jovens foram contaminados pelos vermelhos!

  7. Elen Andrade
    Elen Andrade

    Rendo-me ao seu conhecimento, ao trato com o vernáculo, à astúcia de sua narrativa. Parabéns Augusto Nunes, és um “monstro” do jornalismo!

  8. Edmundo Baracat Filho
    Edmundo Baracat Filho

    Pobre nação !! Os primeiros 15 meses de contenção governamental e ausência ( visível ) de corrupção, um presidente, as vêzes, trapalhão, porém decente e honesto, um ministério competente em sua grande maioria, tudo isso destroçado em apenas 01 mês de Covidão !!
    Augusto, não recue ! Revista Oeste, não recue. PQP….nunca conseguiremos sair da lama ???

  9. Ademilson Rodrigues Ribeiro
    Ademilson Rodrigues Ribeiro

    O Brasil não precisa de vírus nenhum, já temos pessoas diabólicas o suficiente por aqui para infernizar nosso dia-a-dia.

  10. José Carlos Pires Monteiro
    José Carlos Pires Monteiro

    Grande Augusto, nem um artista desenhando iria explicar a realidade atual deste país tão bem como você descreveu. Sabe porque isso acontece? Porque todos eles tem a certeza da impunidade já que até os trapaceiros mesmo com a obrigação de licitação já aprontam imagine sem essa obrigatoriedade. Uma grande farra com dinheiro público foi montada com a grande ajuda do Legislativo Federal que não quer mexer no deles mas adoram meter as mãos no do povo. Quando terminar esse vírus é só levantar em quanto aumentou o número de milionários no Brasil.

  11. francisco monteiro sobrinho
    francisco monteiro sobrinho

    QUEM TEM UM JUDICIARIO E LEGISLATIVO COMO O NOSSO AO PRECISA DE INIMIGOS…

  12. Sandro Luis Batista Soares
    Sandro Luis Batista Soares

    Só tem um detalhe, essa operação do COVIDÃO está se antecipando ao fatos. Antes demorava no mínimo 5 anos para aparecer qualquer indício de corrupção e investigação.

  13. Jose Angelo Baracho Pires
    Jose Angelo Baracho Pires

    Somente a PRESTAÇÃO DE CONTAS com o LEGISLATIVO brasileiro, concluindo o PROJETO vencedor, alinhado nas RUAS de todo o BRASIL há 6 anos, acabando com o CONLUIO entre os 3 PODERES, dará fim ao fisiologismo do STF. Trata-se de se retirar de debaixo da bunda do Botafogo, filho legítimo de César, a PRISÃO em SEGUNDA instância e fim do Foro privilegiado. Assim as ORCRIMS ñ terão a proteção do STF, e este terá q se justificar, já q voltarão a ser apenas os escolhidos dos “BANDIDOS”.

  14. Marcelo Hial
    Marcelo Hial

    O Brasil tem dois problemas graves, que são indissociáveis – corrupção e impunidade … enquanto essa equação não for resolvida, nós viveremos eternamente em “calamidade” … a pandemia causada pelo vírus chinês nos mostrou uma das faces dessa equação, que é um sistema de saúde que não vai entrar, mas que já nasceu em colapso … não adianta se indignar com as mortes mostradas à exaustão no noticiário e continuar votando nos responsáveis por essa situação … precisamos acordar para essa triste realidade ….

  15. Ronaldo Paes Barreto
    Ronaldo Paes Barreto

    Os governadores e prefeitos são os únicos brasileiros que se encontram com o sorriso à mostra. Esfregam as mãos e ao deitar sonham com as verbas enviadas pelo governo federal para comprar mercadorias anti Covide 19 sem a obrigação de fazer licitação ou dar qualquer satisfação. Em Pernambuco o governador Paulo Câmara gastou 500 mil reais para comprar sacos para cadáveres. Não se sabe quanto custa cada, porém creio que dará para empacotar todas as pessoas que morrerem durante os próximo 10 anos no estado. Darão com ornamento aos defuntos e com o charme de não ter de fechá-los.

  16. Alberto Garcia Filho
    Alberto Garcia Filho

    Definitivamente o Brasil não é Cingapura. Deveria ser! Pra bom entendedor meia palavra basta.

  17. Paulo Gustavo Pinto Cesar De Carvalho
    Paulo Gustavo Pinto Cesar De Carvalho

    Brilhante Augusto!
    Mas de que adianta? Se ao menos nossos parlamentares estivessem empenhados a PEC da SEGUNDA INSTÂNCIA poderíamos ter realmente um COVIDÃO.

  18. Laudares Capella
    Laudares Capella

    Concordo plenamente com as palavras do senhor Alvaro Luiz. São muito poucos os bons que se aventuram a fazer politica. E não fazem por já conhecerem o ambiente em que irão viver.

  19. regina
    regina

    Muitos e muitos anos atrás um diplomata americano disse que a corrupção era endêmica no Brasil. Foi um escândalo danado mas ninguém ficou vermelho.. De vergonha, porque de Ideologia … Ai meus sais…

    1. Geraldo Foerster
      Geraldo Foerster

      Carnaval dos perdulários sem lastro, brilhante e define com precisão tudo isto.

  20. Alvaro Luiz Devecz
    Alvaro Luiz Devecz

    O Brasil é um país composto por gente de caráter, ética e boa educação, porém a grande maioria é composta por escroques , gente sem caráter, individualistas, sem educação formal e sem conhecimento mínimo do que é uma pátria . Mas o pior que grande parte dessa gente está na política, nos sindicatos, nos partidos políticos e porque não , no judiciário . Haveria um jeito de começar tudo de novo?

    1. Andre mendonça
      Andre mendonça

      A única possibilidade de coibir a ladroagem seria uma reforma completa do código civil e de processo penal, que permitisse a efetiva punição dos bandidos. Alguém acredita que nessa “democracia” isso vai acontecer?
      Se o regime militar com todo o poder que tinha não conseguiu ou não quis, seria ingenuidade esperar mudanças significativas com os políticos e juízes de tribunais superiores que temos.
      A opção brasileira pela mediocridade e pela desonestidade na gestão pública é atávica e irreversível.

    2. Otacílio Cordeiro Da Silva
      Otacílio Cordeiro Da Silva

      Sim, caro Álvaro. Já começamos. A Revista Oeste já está aí, é real. Com essa os corruptos e vigaristas do Brasil não contavam. Seremos um templo da verdade. Só permanecerá na ignorância e nas trevas quem quiser. Não tem jeito. Toda semana. Deus é maior. Um abraço.

  21. Vera Iris Pinheiro
    Vera Iris Pinheiro

    A Lava Jato “pegou”, entre aspas porque muitos estão soltinhos aí zombando da justiça, os colarinhos brancos, E nos municípios? A corrupção continua de vento em popa. Que venha investigações sérias sobre essa farra por causa do Covid-19.

  22. Ricardo A T Lanna
    Ricardo A T Lanna

    É incrível como nós brasileiros convivemos com isso há décadas e não vazemos nada de efetivo para mudar isso. Considerar aceitáveis coisas como a corrupção é a maior prova da fragilidade e ignorância de um povo.

    1. Alexandre Paiva
      Alexandre Paiva

      A crise econômica cobra o povo de várias maneiras.
      Já há relato de dois casos de SUICÍDIO em Belo Horizonte . Dois MÉDICOS ❗ A pressão e a situação com certeza contribuiram. Teremos mais. Mais angústia , depressão, medo. Infartos , cânceres são outras consequências. ☹

    2. Celio Rodrigues da Costa
      Celio Rodrigues da Costa

      Espero que a Polícia Federal esteja agindo em silêncio com a sua inteligência para fiscalizar está farra e punir posteriormente todos governantes corruptos e aproveitadores da desgraça alheia imposta por eles mesmos.

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