Já ficou mais que evidente que o coronavírus não elimina apenas vidas. Tem mandado também para a UTI, ou o para o cemitério, negócios de todos os tipos e tamanhos. E seu efeito mostra-se mais devastador, a exemplo do que ocorre com as pessoas infectadas, para aqueles segmentos da economia já debilitados por comorbidades. Como é o caso, entre outros, da mídia impressa, cuja saúde já inspira cuidados há algum tempo. O agravante é que não está em jogo aqui o futuro de uma indústria qualquer. Mas daquela que tem sido, nos últimos séculos, um pilar fundamental para as democracias no mundo: a imprensa, o chamado Quarto Poder. O que constitui uma cruel ironia na visão de um arguto estudioso da mídia, o inglês Roy Greenslade, professor emérito de jornalismo da City, University of London, no Reino Unido. “A maior história da imprensa em toda uma geração está matando a própria indústria que existe para noticiá-la”, observou.
É certo que a maioria dos jornais tem celebrado um aumento repentino de sua circulação digital graças ao interesse por informações sobre a covid-19. Mas trata-se de um alívio temporário, frente à magnitude da crise que aflige o jornalismo impresso em todo o mundo, devido a perdas cumulativas de audiência, receitas publicitárias, assinantes e prestígio nas últimas décadas — um abalo generalizado que já levou a óbito milhares de publicações nos cinco continentes. Só nos Estados Unidos, mais de 1,8 mil jornais, um em cada cinco, desapareceram desde 2014, conforme pesquisa da University of South Carolina School of Media and Journalism. Com eles, foi-se nada menos do que a metade dos empregos nas redações do país.
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Já no Brasil, depois de fulminar até mesmo conglomerados outrora poderosos como a Editora Abril, a anemia econômica deixou quase todos os grupos de mídia como que entubados, lutando pela sobrevivência. O temor, agora, é que a mortandade se intensifique, em decorrência da esperada contração de investimentos publicitários e cancelamentos de assinatura por parte dos que perderam o emprego — o que poderia representar um golpe de misericórdia para muitos títulos. Nos Estados Unidos, por exemplo, 50% dos jornais membros da American Newspapers Publishers Association projetam quedas de receita acima de 30% para o segundo trimestre, e já admitem que terão de contrair dívidas e reduzir substancialmente seus custos com impressão e folha de pessoal.
Muito se têm denunciado, nos últimos tempos, as ameaças à imprensa por parte de governos autoritários em todo o mundo.
Um perigo real que precisa ser combatido, como tem sido constante ao longo da história. Mas a verdadeira vilã da vez, como se sabe, não é a política. Trata-se da concorrência das mídias digitais, para as quais vêm migrando, progressivamente, tanto os bilhões da publicidade quanto as audiências e receitas de assinaturas. Até agora sorrateiro, esse embate entre mídias novas e tradicionais promete tornar-se mais mortífero após a pandemia, com a aceleração da transição da economia industrial para a digital, apoiada em plataformas de dados e algoritmos. Ainda fará sentido, neste novo mundo, imprimir notícias que ficam velhas em minutos na internet e queimar combustíveis para transportá-las de um lugar para outro?
É desolador assistir à obsolescência de um modelo de imprensa que fez parte da vida de seguidas gerações, cumprindo o nobre papel de informar. Mas, em vez de apenas indignar-se, como se tornou praxe, ou culpar a concorrência supostamente ilegítima das mídias sociais, desqualificadas como meras fábricas de fake news, parece mais produtivo tentar entender o contexto dessas transformações. E indagar como o desaparecimento dos impressos impactará o modelo de negócios e a prática do jornalismo no futuro.
A crise vem se agravando porque a maioria dos jornais tardou a levar a sério a ameaça da internet.
Acomodados em suas posições de poder, quase todos reagiram com descaso ao que lhes parecia apenas mais um canal de mídia. Não se deram conta de que a web representava, na verdade, uma revolução na comunicação, com uma nova lógica que iria implodir tanto seu próprio mercado quanto o da propaganda que o sustentava. No lugar da comunicação de massa, do tipo push, ou “de empurrar”, na qual a mídia detinha o poder de propagar mensagens e textos, como num monólogo, para milhões de “receptores” passivos, o digital vinha inaugurar um modelo inerentemente democratizante: a comunicação de um para muitos e de muitos para muitos, numa rede sem centro nem controle, alimentada pela circulação livre de diálogos e conversas, acessáveis no sistema pull, ou “de puxar”, no qual qualquer um escolhe o conteúdo que lhe interessa, na hora que lhe convém.
Por não enxergar o alcance dessa disrupção, os jornais demoraram a migrar para as plataformas digitais — muitos não conseguiram até hoje fazer, de fato, a transição para o novo paradigma, já que apenas transferiram para seus sites os antigos formatos e conceitos que sempre pautaram a indústria. Em consequência, veem-se agora obrigados a competir, em desvantagem, com uma infinidade de concorrentes que já nasceram na lógica digital e conseguem fazer bom jornalismo sem o ônus dos custos de gráfica, papel, logística e transporte. Como se não bastasse, têm de disputar ainda o share of mind e share of wallet do público com milhões de “jornalistas” amadores, blogueiros, influencers, podcasters, videocasters, produtores de webinars, lives e por aí afora.
Para piorar, a perda de receita tem sido acompanhada por uma acentuada queda de prestígio e credibilidade.
É o que registram seguidas pesquisas. Uma das mais recentes é o estudo global Edelman Trust Barometer 2020, realizado entre outubro e novembro do ano passado em 28 países, incluindo o Brasil, para aferir a confiança dos entrevistados em relação a quatro instituições: governo, empresas, mídia e ONGs. Entre os brasileiros, apenas as empresas foram julgadas confiáveis; a classificação das ONGs foi neutra, enquanto mídia e governo foram considerados não confiáveis.
Infelizmente, quase não se debatem, na própria imprensa, as reais causas desse declínio. Até porque quaisquer críticas a eventuais desvios — como a falta de imparcialidade de certos jornais e a omissão ou distorção contumaz de informações que não favorecem suas posições políticas e ideológicas — são invariavelmente desqualificadas como ataques inaceitáveis à própria instituição. Mas não se poderão ignorar, impune e indefinidamente, a fuga dos leitores e o fato de que ela reflete uma avaliação negativa sobre os conteúdos e opiniões oferecidos. Agora que tem a possibilidade de conferir a informação da mídia tradicional com outras fontes disponíveis na web, o público elege seus canais preferidos com um clique.
Outra crítica recorrente, no Brasil, se refere ao distanciamento da cobertura jornalística dos reais problemas da população.
Como a escassez de verbas inviabiliza a apuração aprofundada de reportagens, o foco tem sido os bastidores da pequena política, com repórteres e colunistas alimentando-se sempre das mesmas “fontes”, a ponto de acabar se confundindo com seus porta-vozes. Em vez de relatar acontecimentos políticos, passam, desse modo, a fazer política. Mas o desafio vem de múltiplas frentes, e a ameaça do coronavírus poderia ser a oportunidade para repensar com urgência o ofício. A começar por uma pergunta básica: qual seria o papel do jornalismo profissional e da imprensa nesse novo cenário da comunicação instantânea, no qual qualquer pessoa munida de um celular pode propagar notícias ou opinar sobre elas?
Uma referência interessante nessa reflexão é a revista inglesa The Economist, que consegue se manter relevante, prestigiada e conquistando leitores apesar de seus 177 anos. Parte desse sucesso está na qualificação de seus jornalistas e na credibilidade conquistada, que a tornou uma espécie de curadora do que merece atenção para mais de 1 milhão de assinantes em todo o mundo. Mas ela se destaca acima de tudo por ir além dos fatos para focar na análise dos temas por trás das notícias, a fim de ajudar seus leitores a entender o mundo. E embora tenha um posicionamento transparente, a favor do liberalismo na economia e na política, todos os seus artigos trazem os diferentes lados de cada questão, deixando ao leitor a prerrogativa de formar a própria opinião. Pois os autores não subestimam a inteligência do público nem se arvoram em donos absolutos da verdade.
Resta torcer para que, diante do risco iminente a seu futuro, o jornalismo brasileiro encontre também novos caminhos. Afinal, nunca precisamos tanto de uma imprensa isenta, competente e confiável do que neste mundo cada vez mais complexo e incerto.
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Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Veja, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.
Pois é Selma, é bem por ai mesmo. Só faltou citar o “novo” caso de jornalismo, envolvendo até hacker. Hoje em dia, vale tudo para dar o furo jornalístico, até que seja ilegal – a credibilidade e ética ficam a ver navios.
Jornalistas são ANALFABETOS, INCULTOS e com uma presunção afetada com viés esquerdista (99%), sendo o maior exemplo VELHA BAGULHÕES. Maior exemplo da MENDACIDADE dessa classe foi a pseudo-agressão ao jornalista do Estadão que caiu sozinho e disse que foi agredido violentamente. Os black-blocks MATARAM criminosamente um cinegrafista durante uma manifestação e os jornalistas nada disseram. Essa é o jornalismo feito no Brasil. A imprensa detém o monopólio da DESFAÇATEZ.
@VeraMagalhães tinha que ler este artigo. Como outras centenas de jornalistas militantes e corporativistas, ela simplesmente não aceita a capacidade do leitor/espectador em tirar suas próprias conclusões. A Revista Oeste vem preencher este vácuo de informação com credibilidade.
Excelente!! Esta edição mostra que acertei no alvo assinando a Oeste.
Obrigada pela boa informação! Hoje nós faz muita falta isto
Muito bom. Bela reflexão.
Como dizia Cláudio Abramo: liberdade de imprensa é a liberdade do dono do jornal. Por falar nisto, uma pergunta importante: quem financia a Revista Oeste? Sei que tem como objetivo fortalecer a idéia do liberalismo. Mas… E o governo Bolsonaro? Há algum relacionamento financeiro?
Eu ajudo a financiar a revista Oeste. Assinei.
Gratidão a autora da reportagem e a todos os integrantes da revista Oeste!
Nilton, caro,
em primeiro lugar, obrigado por ser assinante da Revista Oeste.
Respondendo à sua pergunta, esclarecemos que o site e a Revista Oeste são totalmente financiados pelos sócios-fundadores: Jairo Leal, J. R. Guzzo, Augusto Nunes e Kaíke Nanne, todos egressos da área editorial. Acreditamos que há espaço para um jornalismo baseado em fatos, feito por gente séria, buscando o que é realmente relevante e respeitando o tempo do leitor. Esse tipo de empreendedorismo não era possível décadas atrás. Graças à internet, propostas como a nossa podem ser viabilizadas sem investimentos vultosos. Em nome da transparência, nós temos no site o compromisso editorial com nossos leitores — veja no link Nosso pacto ( https://bit.ly/nossopacto ).
Não contamos com nenhum tipo de financiamento público (de qualquer esfera, mesmo por meio de publicidade), nem de grupos privados.
Nossa linha de receita majoritária tem base nas assinaturas da Revista, com uma mínima parte oriunda de publicidade programática via ferramentas do Google.
Confiamos que os leitores tenham as melhores razões para acreditar em Oeste.
Cordialmente,
Revista Oeste
parabéns! Excelente reflexão sobre o papel da imprensa nesse novo mundo!
Esperamos contar com este foco da Oeste de manter os seus assinantes bem informados e com uma postura imparcial diante dos fatos. Gratos.
Muito bom! As midias tradicionais são mais caras para se produzirem, e, antes, por serem em número bem menor do que se vê hj, com as midias digitais, era relativamente fácil manipular as informações. A grande midia ainda faz isto, mas com grande perda de terreno – justamente pq a concorrência abala a gostosa sensação de ‘monopólio’ que antes pairava livre e solta – as midias digitais são extremamente mais baratas, chegam em tempo record aos seus consumidores, que, adicionalmente, podem escolher entre uma ampla oferta de títulos. Não deixa de ser democrático.
Só discordo sobre a revista ” The Economist”. Nos ultimos anos, tem se tornado porta voz da China, e contra EUA, Brasil e o mundo ocidental. Ela deu uma guinada à esquerda.
“O último a sair apague a luz”! Esta é uma frase bem conhecida. Às vezes soa triste, mas é fato. É universal. Tão universal quanto este Covid que tem desgraçado a vida de tanta gente mundo afora, enquanto faz a alegria de outros tantos, além daqueles que ficam só de longe olhando o circo pegar fogo. Algo que encerra aquela velha dicotomia humana do bem e do mal, como traduz bem esta frase, cujo autor desconheço: “Tudo é uma questão de ponto de vista: para a minhoca, cavar em terra dura pode ser mais relaxante que sair para uma pescaria”.
Tem muito a ver, também, com a qualidade dos jornalistas. Hoje muitos são militantes!
Um dos indicadores que media a maturidade da democracia em um país era exatamente, o quanto a imprensa possuía de liberdade para comunicar e muitas vezes denunciar todas os desvios que ocorriam em outras nstituições presentes em uma democracia.
A imprensa vem perdendo este papel, ou vem tentando doutrinar seus assinantes. Ou seja, perdeu sua essência. Este é o começo do fim para muitos veículos.
Existe uma lacuna no quarto poder! Quem irá assumi-lo?
Selma, você foi muito bem até o penúltimo parágrafo. O último é uma lástima (parece que a Oeste não tem editor, no sentido tradicional do termo). Na verdade, nós não precisamos tanto de uma “imprensa isenta, competente e confiável” porque nós já a temos. Só não é a extrema-imprensa com a qual você está acostumada. E ela não fará a menor falta quando se for. E “neste mundo cada vez mais complexo e incerto” é um clichê bastante boboca. Desde sempre, para todas as gerações, o mundo sempre foi algo complexo e incerto. Sugiro pensar num fechamento mais criativo da próxima vez.
Ainda bem que surgiu a Oeste!
Exatamente, por enquanto a verdadeira ilha de informação!
Excelente reflexão. Infelizmente quase nenhum jornalista ou veículo de imprensa se dado conta desse fenômeno da perda de credibilidade. Não conhecia a Selma até assinar a Oeste, depois q li seu primeiro texto virei fã. Agora não perco sua coluna aqui, é a primeira que leio.
Está valendo a pena a assinatura da revista Oeste.
Também.o jornalismo televisivo já se tornou obsoleto, embora tenha ganhado audiência com o coronavírus. Aqui parece valer a idéia de que o” meio é realmente a mensagem”, o impresso e a TV n§o ttêm a capacidade de competir coma a internet acessada através do celular qdo se trata de buscar informações e análises