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Thomas Sowell | Foto: Divulgação
Edição 70

O legado de Thomas Sowell

Em uma época de censura do politicamente correto e de medo de ofender grupos organizados de minorias com os fatos, ler Sowell faz-se ainda mais necessário

Rodrigo Constantino
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Um dos meus “gurus intelectuais” sem dúvida é Thomas Sowell, que ironicamente escreveu excelentes livros sobre os perigos dos intelectuais. Li vários de seus livros e sempre apreciei seu poder de síntese, sua originalidade, seu apreço pelos fatos e a busca da verdade, doa a quem doer. Sowell é um economista cujos principais professores foram Milton Friedman e George Stigler, da Escola de Chicago, onde obteve seu doutorado em 1968, e deles absorveu o empirismo e o uso das ferramentas econômicas para outras áreas. Um liberal clássico, com algumas visões mais libertárias e outras mais conservadoras, Sowell completou 91 anos recentemente, e segue produzindo.

Terminei esses dias o livro Maverick: A Biography of Thomas Sowell, de Jason Riley, e recomendo muito. Trata-se mais de uma biografia intelectual do que sobre a vida do grande pensador, o que serve para resumir suas principais ideias. Não que sua vida não mereça uma biografia à parte ou mesmo um filme. Merece e seria espetacular mostrar aonde o garoto negro e pobre chegou, sem nenhum amuleto estatal ou vitimização. Para alguém nascido durante a Grande Depressão e as leis Jim Crow no Sul, e depois criado em guetos urbanos, sua trajetória é simplesmente fascinante. “Não volte aqui e me diga que você não conseguiu porque os brancos eram maus”, lembraria Sowell depois como “o melhor conselho que eu poderia ter recebido”.

Foto: Divulgação

Mas é que o pensamento de Sowell talvez seja ainda mais importante e se sustenta por conta própria. Na verdade, o fato de ser negro acaba ofuscando isso, pois muitos o associam automaticamente ao debate racial, do qual ele não teve como fugir e deixou vasta obra, mas acabam deixando de lado suas contribuições para a Economia.

Sowell sempre teve os pés no chão, valorizando o bom senso de pessoas ordinárias, e demonstrando desconfiança em relação a muitos intelectuais. Seus livros possuem linguagem direta e acessível, comunicando-se diretamente com o leitor, sem firulas. Dessa forma, ele ajudou a popularizar conceitos liberais e conservadores, mas nunca foi por falta de capacidade para o debate acadêmico. Ao contrário: em algumas obras iniciais ele deu todas as provas de ser um rigoroso scholar, e foi disputado pelas mais prestigiadas universidades. Mas ele não queria ser professor a vida toda, insatisfeito com o ambiente tóxico pela vaidade e pelo esquerdismo, e encontrou no Hoover Institute um refúgio para se dedicar totalmente às pesquisas voluntárias e seus livros.

Ele sofreu ao longo de sua vida uma constante tentativa de assassinato de reputação

Enquanto alguns intelectuais deliberadamente escreviam com linguagem confusa e pedante, a marca registrada de Sowell sempre foi sua clareza. Nunca lhe faltou coragem também para fazer as perguntas que ninguém mais queria fazer, especialmente sobre as questões raciais. Em vez de explicar as causas da pobreza, Sowell estava mais interessado em entender como povos saíram dela, o estado natural da humanidade. Em vez de demonstrar obsessão por desigualdades e automaticamente fazer um elo causal delas com o suposto preconceito racial, Sowell sabia que grupos étnicos não necessariamente teriam resultados iguais (como quaisquer dois grupos) e queria entender como os negros poderiam de fato ascender.

Suas pesquisas nessas áreas levaram a conclusões que incomodaram muitos ativistas, pois delegavam mais responsabilidade aos próprios indivíduos e famílias e demonstravam os fracassos de medidas governamentais que beneficiavam somente uma elite. “Para onde quer que os negros estivessem indo e  para onde quer que quiséssemos ir, tínhamos de chegar lá de onde estávamos — o que significava que tínhamos de saber onde estávamos, não onde gostaríamos de estar ou onde gostaríamos que os outros pensassem que estávamos”, chegou a escrever. Sowell não estava preocupado com sentimentalismo ou com imagem, e sim com a verdade e o progresso concreto dos indivíduos de carne e osso.

Em carta de 1964 a um estudante negro de graduação, por exemplo, ele disse: “Para mim, a psicologia do negro é o maior obstáculo ao progresso racial. Não está na moda dizer isso, e certamente não é agradável, mas a verdade não depende dessas considerações. Com todo o respeito devido à coragem e dedicação dos vários grupos de direitos civis, acho que, quando todas as leis forem aprovadas e todos os portões abertos, o resultado líquido será um tremendo anticlímax, a menos que haja uma mudança drástica de atitude entre os negros”. Ele apoiou a Lei dos Direitos Civis (Civil Rights Act) de 1964 e o direito ao voto no ano seguinte, mas era pessimista quanto a seu real impacto social caso não houvesse mudança cultural também.

Por conta de suas conclusões que não agradaram às elites dos movimentos raciais, Sowell sofreu ao longo de sua vida uma constante tentativa de assassinato de reputação. Suas intenções eram postas em dúvida, ele era acusado de fazer o jogo dos brancos por desejar ser aceito por eles e outras bobagens do tipo. Além disso, atacavam espantalhos, pondo palavras em sua boca. Ele jamais negou a existência da discriminação racial, por exemplo, como chegaram a afirmar. Ele simplesmente apresentou argumentos econômicos para sua ineficácia, assim como condenou empurrões estatais para resolver o problema, advertindo que poderiam inclusive agravá-los — o que de fato aconteceu.

No início da década de 1980, as principais cidades dos Estados Unidos com grande população negra — Cleveland, Detroit, Chicago, Washington — elegeram prefeitos negros. Entre 1970 e 2010, o número de autoridades negras eleitas cresceu de menos de 1.500 para mais de 10.000 e incluiu Barack Obama, o primeiro presidente negro. No entanto, mesmo enquanto os negros aumentavam sua influência política nas décadas de 1970, 1980 e 1990, a dependência ao estado de bem-estar dos negros estava aumentando, assim como o crime, o desemprego de adolescentes negros e o nascimento de bebês gerados por mulheres negras solteiras. Sob os dois mandatos de Barack Obama como presidente, as diferenças entre brancos e negros na renda e na casa própria aumentaram e, quando ele deixou o cargo, as pesquisas mostraram que as relações raciais caíram ao ponto mais baixo em quase um quarto de século.

Não obstante, muitos ativistas se recusam a enxergar a realidade ou buscar em fatores culturais as explicações. Preferem demonizar gente como Sowell, que previu as consequências. Apesar desses ataques pérfidos e da firmeza com a qual Sowell respondia, ele sempre demonstrou tolerância com as divergências. Primeiro, por ter sido professor. Depois, por ter sido de esquerda. E, por fim, por ter escrito sua obra-prima, Conflito de Visões, que define como pessoas honestas e inteligentes podem chegar a pontos de vista distintos por conta de suas premissas e background. Ele chamou de “visão limitada” e “visão ilimitada” cada lado, o que pode ser entendido como a visão trágica e a utópica também. Numa delas, o ser humano é visto como imperfeito e suscetível às paixões humanas, enquanto na outra ele é tido como quase infinitamente elástico em seu potencial para o bem.

Foto: Divulgação

O livro não indica simplesmente diferenças semânticas entre intelectuais notáveis ​​através dos tempos. Ele explica por que as pessoas que participam de comícios contra a polícia também tendem a apoiar impostos mais altos sobre os ricos e o sistema de saúde universal, e como essas posições podem ser atribuídas a uma visão utópica da condição humana delineada por homens que nasceram antes mesmo da existência dos Estados Unidos. Alguns querem “soluções” para tudo, enquanto outros, mais realistas talvez, aceitam que dilemas sociais oferecem no máximo trade-offs, alternativas imperfeitas.

“Eu mesmo, é claro, comecei pela esquerda e acreditei muito nessas coisas. A única coisa que me salvou foi que sempre pensei que os fatos importavam. E uma vez que você pensa que os fatos importam, então é claro que é um jogo muito diferente”, chegou a comentar. Se você demonstra forte apreço pela realidade e vai atrás da verdade com o máximo de imparcialidade, então os próprios fatos podem mudar suas visões preconcebidas. Foi o que levou Sowell da esquerda para a direita. Mas seus pares intelectuais de universidades como Harvard preferiam muitas vezes pôr suas premissas acima das evidências e da lógica, e isso sempre decepcionou Sowell. Ele nunca teve muita paciência com o elitismo arrogante. “Os lugares mais intolerantes em que você pode estar atualmente são os câmpus universitários”, afirmou.

Em uma época de censura do politicamente correto, de excessivo sentimentalismo e de medo de ofender grupos organizados de minorias com os fatos, ler Sowell faz-se ainda mais necessário. “Sempre acreditei que os fatos eram tão fundamentais que aonde quer que você queira ir, literal ou figurativamente, você só pode chegar lá de onde estiver. Se você quiser fazer o melhor que pode por alguém, precisará saber onde eles estão na realidade”, escreveu. Sowell era realista e jamais deixou seus desejos cegarem sua razão. O que importava mais para Sowell era se os argumentos de um indivíduo poderiam resistir ao escrutínio, não como o indivíduo se identificava politicamente ou ideologicamente.

Quão melhor seria o nível dos debates com mais gente assim! Sowell é um pensador que precisa ser mais lido. Para quem quiser começar por um ótimo resumo de suas principais ideias, essa biografia é altamente recomendável.

Leia também “A histeria passa. Philip Roth fica”

21 comentários
  1. LUIZ ALBERTO BORGES
    LUIZ ALBERTO BORGES

    Muito bom o teu livro Pensadores da Liberdade. No momento, estou lendo Conflito de Visões e já li alguns que fazem parte da bibliografia dos Pensadores da Liberdade, como Popper em “Um mundo melhor”, “Guerra Cultural” (excelente) do Stephen Hicks, “O Sondar do Abismo”, de Gertrude Himmelfarb, “A Pretensão do Conhecimento”, de Hayek.

  2. Alex
    Alex

    Parabéns Constantino por homenageá-lo em vida. Eu li Conflito de Visões. Muito bom, mas pelo tempo, preciso reler.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente texto. Parabéns Constantino.

  4. Alexandre Chamma
    Alexandre Chamma

    Às vezes penso que ser esquerda ou ser direita, são apenas e tão somente nomenclaturas que nos mantém em constante debate e completa letargia. Os dias passam, as semanas, meses, anos, e décadas passam e empobrecemos. Isso é tão somente isso deveria ser objeto de discussões – O EMPOBRECIMENTO DO POVO- o resto.. bem.. o resto os intelectuais conceituam e nos distraem para que soframos menos..

  5. Aparecida marildes de azevedo
    Aparecida marildes de azevedo

    Obrigada pela indicação. Já comprei.

  6. Marco Polo Gerard Bondim
    Marco Polo Gerard Bondim

    Excelente, Constantino!

  7. Claudio Haddad
    Claudio Haddad

    Resumindo: não basta criar mecanismos de defesa das minorias, sem que as mesmas minorias queiram realmente progredir .

  8. Leandro Moreira
    Leandro Moreira

    Concordo Constantino, Sowell é indispensável para uma mudança na forma de pensar dos Brasileiros. Um bom livro escrito sobre a biografia de Sowell é o da coleção Breves Licōes do Prof. Dennys Xavier: Thomas Sowell e a Aniquilação de Falácias Ideológicas, que também vale a leitura.
    Abraço

  9. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Ótimo artigo! No que já li, mutatis mutandi, Olavo de Carvalho traduz na realidade brasileira o que Sowell fala sobre a sociedade norte americana.

  10. Décio João Gallego Gimenes
    Décio João Gallego Gimenes

    Realidade e verdade, esses deveriam ser os objetivos de uma disputa inteligente. A cegueira, contudo, impera nas lutas sociais.

  11. FABIO GIOCONDO
    FABIO GIOCONDO

    Sowell me sugere ser realista e honesto.
    Encara os fatos, sem distorcê-los forçando o ponto de chegada.
    Negro sim, sem se submeter ao crivo de inferior, sem vitimização, sem idiotização.
    Essa visão de mundo não interessa à esquerda…..

    1. marise neves
      marise neves

      Exemplo da desgraça que a esquerda está fazendo no mundo .
      Uma sobrinha acabou de prestar um concurso para defensoria pública aqui no Rio.
      1200 vagas foram oferecidas, sendo 800 para cotistas e apenas 400 para os “normais”.
      Para entrar bastaria fazer 57 pontos, ela só fez 55, portanto não entrou, mas os cotistas bastariam acertar 27 pontos e pimba se tornarão defensores públicos.
      Isso é fazer justiça social?
      Não seria melhor todos terem acesso a educação de primeira sendo negro,branco ou índio?
      Estamos naufragando e morrendo com tamanha imbecilidade

  12. Adalberto Manoel Vieira
    Adalberto Manoel Vieira

    De fato, precisamos ler mais para refletir e seguramente chegar a uma simples conclusão, que estamos a muito tempo sendo manipulados pela elite da direita e esquerda que estão encasteladas até hoje. Existe uma casta de servidores público nos três âmbitos de poder e que “negociam” tudo com grandes empresários. É um sistema com subsistemas. Basta pegar os últimos 35 anos e fazer uma análise REAL, sem paixões ou afagos. Observem o caudilho das Forças Armadas – vida de imperialistas, não lhes falta nada. Vivem na luta diária por estrelas no uniforme que os levará aos altos escalões para desfrutar dos altos salários e vida em “abundância”. Façam um estudo profundo nesse aerópago e verão a realidade. Outro grupo de servidores imperialistas e encastelados? STF, STJ, MPF, CGU, TCU, dentre outros, somente em âmbito federal. Para resumir é o seguinte, ou o POVO acorda, pois, seja esquerda ou direita, não irão acordá-lo ou seguimos assim, meio Cuba, Venezuela, Argentina e outros, ou meio Grécia e outros vizinhos pobres da zona do Euro todos endividados, mas metidos a rico com moeda forte e muitas vezes faltando o básico para a sociedade. Seguimos firmes e na luta, mostrando como funciona esta demagogia, hipocrisia e mal caratismo de políticos hipócritas e abusados.

    1. ALEXANDER SILVERIO CAINZOS
      ALEXANDER SILVERIO CAINZOS

      Concordo Adalberto, creio que a questão se divide em quem vive grudado nas tetas do Estado contra quem o sustenta. Essa questão de direita e esquerda serve como uma forma de dividir para se apoderar do discurso do momento (vide Doria em 2018). Quanto ao povo acordar, só com educação. Por isso está cada vez mais difícil. Como convencer uma geração que mal sabe ler, idiotizada e doutrinada a buscar conhecimento, especialmente de forma autônoma, pela leitura? Abs.

  13. Francisco de Assis Bonfati
    Francisco de Assis Bonfati

    Certamente acabo esta leitura com uma gama de informações muito úteis.
    Parabéns!

  14. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Valeu, Constantino!

  15. SILVIO TADEU DE AVILA
    SILVIO TADEU DE AVILA

    Também admiro Thomas Sowell, exemplo de competência e coragem, desnudando a esquerdalha rasa e manipuladora.

    1. Richard Kiefer
      Richard Kiefer

      Gosto de seus artigos e da maneira com você os escreve, de forma direta e simples, e sempre aprendo algo com eles. Fico atento à suas recomendações de leitura, depois de ler Da Democracia na América, que você mencionou em um de seus textos, com o qual aprendi outro tanto de coisas, e pretendo ler os dois livros que você assinalou neste artigo.
      Nos vemos ma próxima semana, espero. Quem sabe venham mais indicações.

  16. Roberto Fakir
    Roberto Fakir

    Muitos “jornalistas” e “intelectuais” se aproveitam das minorias porque é mais fácil induzir grupos fragilizados. O Estado Islâmico e a Al Qaeda tem o chamado “celulas” que funcionam de forma independente, mas com o mesmo objetivo. Os sindicatos e conselhos demonstram isso nitidamente. A esquerda sempre se aproveitou dessa fraqueza da direita. A direita não consegue e nunca vai conseguir se separar em grupos porque a maioria não se sente fragilizada.

    1. Marco Polo Gerard Bondim
      Marco Polo Gerard Bondim

      Mais ou menos por aí, quando você não se sente prejudicado, por que lutar?
      Quando você não se sente incapaz, porque o assistencialismo?
      Nesse limiar se encontra a separação dos adultos das crianças, onde para as crianças, a figura do pai protetor é essencial, assim como um estado forte o é para os indivíduos mais frágeis, para os esquerdistas.
      Nos encontramos num eterno movimento evolucionário ativo; seu fim é absolutamente imprevisível.
      Por aqui, é lutar para a reformulação do MEC e do STF, principais fontes da atuação dos utópicos e alienados contra o desenvolvimento do País!

  17. Marco Aurélio Minafra
    Marco Aurélio Minafra

    Rodrigo…não tenho acesso a esse livro!
    Mas trata-se de uma lição de coragem, honestidade, trabalho e luta!
    Será que teremos um político desse naipe, em futuro próximo????

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