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Colagem: Daniela Giorno/Revista Oeste
Edição 78

Geniais no fracasso

Existem jornalistas que são excelentes guias para o mundo, contanto que você acredite exatamente no contrário do que escrevem

Theodore Dalrymple
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Existem pessoas que são geniais no fracasso. Conheço algumas cuja habilidade de perder dinheiro em um mercado em alta não se equilibra pela habilidade de ganhar dinheiro em um mercado em baixa: elas só perdiam dinheiro em todas as circunstâncias. Essas pessoas não tinham déficit de inteligência nem mesmo de informação; na verdade, pareciam ter uma vontade de fracassar, como se o sucesso fosse um tanto vulgar. Como seres humanos, não eram pessoas não atraentes.

Sugeri que um deles escrevesse uma newsletter financeira, colocando a ressalva de que os leitores deveriam fazer exatamente o oposto do que quer que fosse recomendado. Mas é provável que até mesmo isso tivesse um mau resultado, porque, assim que todo mundo fizesse o oposto dos conselhos dele, que seriam supostamente ruins, essas recomendações se mostrariam boas e, portanto (diante da ressalva), ruins.

Esse homem fazia os Quatro Cavaleiros do Apocalipse parecerem arautos de boas-novas

Existem jornalistas que são excelentes guias para o mundo, contanto que você acredite exatamente no contrário do que escrevem. Entre eles figura um certo tipo de correspondente estrangeiro britânico que está sempre em busca de algum lugar no qual projetar seus sonhos permanentemente utópicos e adolescentes. Com frequência, são figuras de classe alta, talvez envergonhados das próprias origens privilegiadas, pelas quais buscam se redimir apoiando revoluções em outras partes.

Entre eles, por exemplo, estava um homem chamado Basil Davidson, que tinha uma espécie de genialidade para elogiar ditadores que se deleitavam, ou estavam prestes a se deleitar, com o genocídio, a fome em larga escala ou com a fuga de boa parte da população. Ele elogiou Tito enquanto o ditador consolidava seu poder por meio de um massacre. Elogiou a China comunista pouco antes do Grande Salto para a Frente, que causou uma das piores crises de fome da história da humanidade. E, talvez o mais bizarro, viu na revolução da Guiné-Bissau a esperança de um mundo melhor. Esse homem fazia os Quatro Cavaleiros do Apocalipse parecerem arautos de boas-novas.

Outra figura como essa foi Richard Gott, um especialista em América Latina, editor literário do jornal de esquerda-liberal The Guardian, que nunca conheceu um movimento literário latino-americano que ele não aprovasse, incluindo o Sendero Luminoso, que era claramente marxista com tendência a Pol Pot. Ele escreveu que o Sendero Luminoso não ia tomar o poder, ia simplesmente assumir o poder quando o Estado peruano entrasse em colapso, e claramente achava que isso seria uma coisa boa. A essa altura, ele estudava os movimentos de guerrilha latino-americanos fazia 30 anos, provando que a esperança nunca deixa de brotar no peito de um ideólogo.

Um dos livros do senhor Gott me faz sorrir, não porque o autor fosse intencionalmente um humorista (apoiadores de revoluções raramente o são), mas por causa de seu título maravilhosamente absurdo. O livro se chama In the Shadow of the Liberator: Hugo Chávez and the Transformation of Venezuela (Na Sombra do Libertador: Hugo Chávez e a Transformação da Venezuela, em tradução livre). Foi publicado em 2000.

Não se pode negar que Hugo Chávez de fato transformou a Venezuela. Ele instituiu os tipos de política que, se tivessem sido adotadas no Oceano Pacífico, mais cedo ou mais teriam causado uma escassez de água salgada. Não é exatamente um segredo que a antiga elite política da Venezuela era ruim, mas não é preciso ser Nostradamus para prever que Chávez seria muito pior. Na verdade, era preciso ser um especialista como Richard Gott para não prever isso.

O que me traz ao Afeganistão. Minha breve jornada por lá tem mais de 50 anos. Naquela época, eu não passava de um jovem imaturo que sabia pouco ou nada de história. Mas até mesmo eu podia ver que o Afeganistão — um país de paisagens magníficas e selvagens, e homens magníficos e selvagens — não era exatamente um bom candidato para a democracia parlamentar ocidental. Os obstáculos para isso eram óbvios e numerosos; e quando certos representantes americanos demonstraram surpresa que o regime e seu Exército, fartamente munido de tecnologia militar, tivesse entrado em colapso tão rápido diante de um pequeno exército de fanáticos barbudos, só consegui ficar impressionado com sua falta de realismo.

Os Jogos Olímpicos de 1980 foram realizados em Moscou antes que tivesse havido qualquer melhora real nas relações entre Oriente e Ocidente. Na época, a ortodoxia entre os especialistas era que a União Soviética duraria para sempre, o que significa um século ou dois. Apenas um pequeno número de observadores — entre os quais estavam Andrei Amalrik e Olivier Todd — não acreditava nisso. A maior parte dos especialistas achava que a União Soviética estava no auge de seu poder, com muitos Estados-satélite pelo mundo, em vez de estar em vias do declínio.

Um jornalista esportivo britânico que não era conhecido por suas sofisticadas análises dos eventos mundiais, que não sabia nada sobre a União Soviética e nunca soube nada, deu uma olhada no Aeroporto de Moscou e afirmou: “Isso não pode continuar”. Olhar para o Aeroporto de Moscou foi o suficiente para que ele constatasse que toda a estrutura da União Soviética devia estar economicamente podre. O país estava tentando se exibir, mas não conseguia nem erigir um vilarejo de Potemkin. O jornalista esportivo enxergou algo em poucos segundos que departamentos universitários inteiros não entenderam depois de décadas de estudo.

Não estou sugerindo que o conhecimento detalhado de outro país (ou, na verdade, de qualquer outra coisa) não valha nada, que tudo o que alguém precisa fazer para entender o mundo é olhar em volta por alguns minutos e tirar conclusões sobre problemas complexos. O que estou dizendo na verdade é que é possível alguém, ou um grupo de pessoas, estudar algo por muitos anos e continuar sendo totalmente irrealista sobre isso, enxergar os detalhes sem o mais óbvio padrão para os detalhes. Na verdade, grupos de especialistas podem estar tão grosseiramente errados quanto indivíduos mal informados. Eles se confirmam em seus erros e têm medo de fugir à regra em relação aos colegas.

O ingrediente que falta é o bom senso. Descartes nos diz, ironicamente, claro, que o bom senso é tão amplamente distribuído que ninguém acha que precisa ter mais. Como aumentar o bom senso no mundo? Existem especialistas no assunto?

Leia também “A verdade no abstrato”

13 comentários
  1. Waldenir Cardoso
    Waldenir Cardoso

    Texto obrigatório para ler, e reler todo dia após a “imprensa nacional” dar suas manchetes.

  2. MARIA MADALENA
    MARIA MADALENA

    Como estará a bolsa amanhã? O que acontecerá com o valor do dólar? E quanto a previsões econômicas? – Leia qualquer especialista e a chance deste errar no longo prazo é enorme. Muitas vezes, ao estudar os detalhes minúsculos de uma sociedade, se comparam a : “ficar olhando e prestando atenção em uma formiga, enquanto os elefantes passam por trás de você, e você nada vê.”, ou seja, detalhes demais e a visão macro se perde. Texto excelente.

  3. Fernando B. Monte-Serrat
    Fernando B. Monte-Serrat

    Infelizmente, falta de bom senso e de isenção na informação não é exclusividade de jornalistas britânicos. No Brasil a chamada “imprensa tradicional” está totalmente tomada por essa enfermidade cultural e ideológica. Incapazes de avaliar os acontecimentos, não conseguem nem mesmo comunicar os fatos de maneira isenta.

  4. Fabio Augusto Boemer Barile
    Fabio Augusto Boemer Barile

    Apenas uma década depois das olimpiadas de moscou (uma fração de segundo em termos históricos) a URSS colapsou… quem la em 1980 previu isso? Isso é revelador de quanto as coisas podem ser efêmeras e quanto somos, em geral, incapazes de saber o quem vem pela frente daqui a 10 anos.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A falta de bom senso às vezes é trocada por bons capitais monetários

  6. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo.

  7. Alberto Junior
    Alberto Junior

    Perfeito!

  8. JOSE FERNANDO CHAIM
    JOSE FERNANDO CHAIM

    Como dizem os sábios: “Burrice não têm cura”

  9. Adroaldo Araújo De Holanda
    Adroaldo Araújo De Holanda

    Excelente coluna!!!
    “Na verdade, grupos de especialistas podem estar tão grosseiramente errados quanto indivíduos mal informados. Eles se confirmam em seus erros e têm medo de fugir à regra em relação aos colegas.” Essa foi ótima!!!

  10. YOUSSEF NASER ISSA
    YOUSSEF NASER ISSA

    E a historia continua com jornalistas acreditando e propagando ideias com tanta certeza que são corretas enquanto o tempo e historia claramente mostra ao contrario, crenças e religiões fabricando deuses a seus gostos formas e tamanho, e nisso tudo o mais intrigante multidões são seguidores sem questionar. Essa e a humanidade.

  11. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Obra-prima d acuidade, elegância e humor

  12. Érico Ribeiro
    Érico Ribeiro

    O que mais tem nesse ramo é Guga Chacra se achando Paulo Figueiredo.

  13. Rodrigo Kairys
    Rodrigo Kairys

    Theodore, sempre incrível!

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