Uma das graças da boa literatura é que ela independe de qualquer espécie de elitismo, acaso glamoroso ou tendências de ocasiões. Livros dubitáveis, do nada, acabam cooptando os corações, estéticas improváveis conquistam as almas mais longínquas e desatentas. Foi o que ocorreu comigo, por exemplo, ao ler A Festa de Babette, da dinamarquesa Karen Blixen; obra improvável e nada convidativa, comprada em uma feira literária muito mais por compulsão do que por interesse.
Mas hoje não será essa a obra a ser resenhada — ainda que eu pense em fazê-lo mais adiante. Bom, se A Festa de Babette me encantou por sua descrição sucinta, ao mesmo tempo que profunda — adjetivos que, por obviedade, não costumam andar juntos —, Lasca, de Vladímir Zazúbrin, deixou-me enojado com a sua absurda capacidade de ser visceral e majestoso em uma descrição pragmática e poética dos horrores soviéticos — seguem outros adjetivos costumeiramente incongregáveis.
O ambiente da obra não é nada menos do que o coração dos ainda nascentes horrores do sovietismo, ao que tudo indica, por volta de 1922-1924. O enredo nos apresenta Srúbov, agente dedicado da Tcheká — o que o tradutor da obra, Irineu Franco Perpetuo, traduziu como Comissão Provincial Extraordinária de Combate à Contrarrevolução e Sabotagem, órgão que antecedeu à KGB. O cenário de tensão e escárnio é a constante do livro, não há páginas cômicas nem partes de respiro, nós nos sentimos verdadeiramente em uma espécie de cela mental enquanto lemos as linhas que se seguem. Delações de espiões, pessoas amedrontadas, torturadas e puxa-sacos do Estado haviam levado a Comissão Soviética — a Tcheká — a encontrar novos contrarrevolucionários. Esse seria o tom incessante da URSS nos anos que viriam, por isso muitos críticos enxergam em Zazúbrin, além de seu evidente talento literário, um excelente analista político daquele momento nascente da União Soviética. Tais delações, prisões, execuções e paranoias dos primeiros anos de 1920 desembocariam no “Grande Terror” de Stálin (1936-1937), nada menos que o maior expurgo político da história humana moderna.
Dessa forma, já está claro ao leitor que estamos em um verdadeiro matadouro comunista, executores empunhando pistolas, cegos a qualquer ponta de moralidade e consciência individual e que apenas acionam o gatilho e derrubam mais um “maldito porco contrarrevolucionário”.
“O cheiro de sangue, de carne fresca despertava o animal, o mundano em Srúbov” (p. 29). Lasca seria um ótimo conto de terror do estilo dos irmãos Grimm, ou Stephen King, caso não fosse profundamente real; seria uma maravilhosa “estória” se não fosse também “história”. São inúmeras as citações que poderiam ilustrar a obra e esta resenha, mas poucas são tão significativas como a escrita na página 19: “Pare de se lamuriar, flauta de Deus. Moscou não acredita em lágrimas”.
Vladímir Zazúbrin (1895-1937) foi um revolucionário russo que passeou entre as tropas dos brancos e, por fim, em 1919, estabeleceu-se como um bolchevique. Seu talento literário foi facilmente identificado logo cedo, em 1921, com sua novela Dois Mundos, livro que descreve em um romance habilidoso a recente Guerra Civil Russa. Da obra, Lênin afirmou: “Um livro terrível, necessário”; não é muito espantoso, por fim, que após a sua baixa no Exército Vermelho, em 1922, viesse a ser o presidente laureado da revista Luzes da Sibéria. Obviamente, pelo terreno fechado às manifestações individuais dos funcionários do Estado soviético, sabe-se muito pouco sobre o caráter e as opiniões pessoais de Zazúbrin, principalmente porque — ao que parece — ele estava se tornando uma espécie de crítico interno do regime.
Aos 28 anos, em 1923, escreveu a obra que faria dele um escritor não bem-visto pelo partido: Lasca ‒ ou Tchekista, como traduzido em Portugal. A sua própria revista recusou a publicação da obra; e a morte de Lênin, em 1924, até então uma espécie de protetor cultural de Zazúbrin pelos famosos elogios públicos aos textos do escritor, acabou retirando aos poucos a sua redoma de proteção política. O motivo é evidente, a descrição das delações irracionais, cegueira moral e volúpia assassina dos agentes do Estado em Lasca eram as coisas mais assustadoras já escritas sobre o tema. Nas palavras da famosa A History of Russian Literature, da Oxford University Press (Cf. p. 118): “A descrição mais profunda e assustadora da desumanização produzida pelo Terror Vermelho”.
A trama narra a história de um funcionário do alto escalão soviético que é iniciado na arte do horror
Como dizia acima, não sabemos com certeza as inclinações políticas de Vladímir Zazúbrin, publicamente parece ter morrido um socialista, apesar do expurgo de 1937, que o matou, tê-lo acusado de ser “um contrarrevolucionário de direita”. Independentemente dessas ilações, podemos deduzir que havia um esclarecido espírito livre em sua carcaça comunista. As críticas literárias de Zazúbrin aos horrores estatais da URSS não são relativizáveis; é evidente que o horror ali descrito não é mero apreço artístico ou devaneio literário. Há uma filosofia, há uma denúncia. Lasca descreve algo como uma biografia antecipada dos líderes comunistas da URSS, talvez por isso tenha soado tão subversivo aos censores. A trama narra a história de um funcionário do alto escalão soviético que é iniciado na arte do horror, da carnificina, sob justificativas políticas psicopáticas. No segundo capítulo do livro, já entremeado da inquietação da consciência que tarda mas não falha, Srúbov se questiona se aqueles salpicos de sangue em sua face, se os rastros vermelhos deixados no corredor de sua seção realmente seriam por um futuro de igualdade e liberdade, tal como prometera Marx e seus seguidores.
Lasca é o alerta de Zazúbrin aos seus comandantes, uma espécie de bilhete indigesto sobre o caráter dúbio da ditadura comunista, um manual altamente explicativo sobre como o caótico universo das delações e caças às bruxas patrocinadas pela ideologia é, no final, a porta de entrada para o inferno psicológico, político e social dos participantes do pandemônio. Talvez tenha sido Zazúbrin, aliás, quem ilustrou a máxima de que “a revolução devora os próprios filhos”. Srúbov foi devorado, o próprio Zazúbrin foi engolido.
É disso que trata Lasca, a descrição do despedaçar moral e humano de um funcionário soviético encarregado de matar milhares supostamente em nome desses mesmos milhares, de ser o expurgo encarnado, o gatilho vivo do Estado, e como isso corrói a psique e a alma dos homens.
No Brasil, a obra foi lançada em 2019. Até o degelo mais ou menos liberal de Mikhail Gorbatchov, iniciado em 1989, só se sabia da sua existência e de sua perniciosidade; poucos tinham tido a honra de lê-la, e quem o fez a considerou extremamente antissoviética ou extremamente necessária — para usar as palavras de Lênin referentes a outra obra do autor. O seu sumiço de censura quase causou um dano permanente à cultura mundial; já existe uma tradução para o português de Portugal desde 2012, de António Pescada, lançada pela editora Antígona. E foi somente em 2019 que o Brasil ganhou uma tradução, como já dito anteriormente, de Irineu Franco Perpetuo, patrocinada pela excelente e disruptiva editora Carambaia, sob o selo “Edição Numerada”; tenho a exata cópia número 977 de 1.000.
A edição brasileira do livro consegue emular o contexto que será encontrado em seu miolo; com capa e lombadas todas vermelhas, perpassadas por escritos pretos. O trabalho artístico da edição mostra de forma magistral a união inseparável entre o comunismo e o sangue “expurgativo” dos que dele são vítimas.
Eis um livro que deve ser lido como antídoto ético, feito especialmente para pessoas que querem alcançar a maturidade literária e política — e sair da devassidão ilusória dos amores ideológicos. Longe de ser uma obra que usa do horror e do bizarro como trampolim para os amantes da literatura de terror, é antes uma crítica contumaz e figadal ao comunismo soviético e à paranoia ideológica que encerra homens numa cadeia de obcecação política. Lasca se insere naquele montante ocupado por Arquipélogo Gulag, o sucesso literário de Alexander Soljenítsin, e a Coleção Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov. No entanto, poucas obras são tão competentes na arte de descrever cruamente o que foi o ambiente interno do matadouro político soviético, poucos foram tão sucintos e assertivos em descrever psicologicamente os danos da psicopatia comunista do século 20. Talvez nenhum escrito dos séculos 20 e 21 tenha sido tão assustador e angustiante, em tão poucas linhas, quanto a novela de Vladímir Zazúbrin.
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Baixei uma amostra do livro e, confesso, muitas palavras não têm sentido e nem explicação no dicionário da língua portuguesa (e nem no Google). O autor parece sentir-se confortável com os termos que se parecem com algo da cultura russa, mas não sou expert em cultura russa para entender.
Excelente artigo. Parabéns. Vou comprar o livro.
Interessantíssimo, vou tentar compra-lo. Uma visão real desde dentro do comunismo soviético.