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Personagens da série Yelowstone | Foto: Divulgação
Edição 96

Faroeste invertido

O sucesso de Yellowstone/1883 diz muito sobre a época em que vivemos

Dagomir Marquezi
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A fama de Yellowstone (Paramount+) começou há quatro anos, em cidadezinhas rurais americanas. A série era ignorada nos grandes centros, como Nova Iorque e Los Angeles. Era um programa para “caipiras”, criado pelo ex-ator Taylor Sheridan. Também foi ignorada pela constelação da grande mídia e “influenciadores”.

Até hoje não entusiasma os “progressistas” encastelados em Manhattan e Beverly Hills. Mas bastaram quatro anos para que sua audiência mais que dobrasse: de 4,5 milhões, no final da temporada 1, para 10,4 milhões, no final da temporada 4. Hoje, não existe mais a divisão cidade/campo: Yellowstone faz sucesso tanto nas cidades do interior quanto nas metrópoles costeiras.

Kevin Costner na série Yellowstone | Foto: Divulgação

Yellowstone passou de um western obscuro para um fenômeno cultural. E já se desdobrou numa “prequela”, 1883. O contrato de US$ 200 milhões com Taylor Sheridan prevê mais cinco séries para os próximos três anos. 1883 já nasceu com a maior audiência do serviço de streaming desde 2015, segundo o Wall Street Journal. Foi impulsionada pelo casal de protagonistas, os astros da música country Tim McGraw e Faith Hill. Tom Hanks e Billy Bob Thornton já fizeram suas participações especiais.

Um chefe índio que veste ternos caros deseja “comprar de volta as terras que nos foram roubadas pelos brancos”

Com Yellowstone/1883, Sheridan tocou no cansaço latente do público com fragilidades e correções políticas levadas ao extremo do ridículo. Ele criou um universo de gente real preocupada com a própria sobrevivência, e não com miríades de identidades sexuais e acusações gratuitas de racismo.

Yellowstone conta a história da família Dutton, que possui uma imensa fazenda de gado. O patriarca, John Dutton (Kevin Costner), tem filhos problemáticos, no melhor estilo Succession. Seu império está ameaçado. Uma incorporadora quer transformar o Parque Yellowstone num resort com campos de golfe. Um chefe índio que veste ternos caros e anda de SUV deseja “comprar de volta as terras que nos foram roubadas pelos brancos”. Índios e incorporadores se unem para manter a propriedade sob cerco constante.

John Dutton não é nenhum santinho. Ele marca a ferro, como gado, seus homens de confiança, para que não se esqueçam a quem pertencem. “Demite” um funcionário problemático com um tiro na testa. Mas, quando o vemos ensinando os segredos da vida no campo ao seu netinho, nos derretemos. John é um ser humano, não uma categoria sociológica.

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“Só quero preservar o que consegui”

Quem se choca com a brutalidade de Yellowstone vai se arrepiar com sua prequela, 1883. A primeira cena mostra a bela adolescente Elsa Dutton (futura avó de John Dutton) chorando sob uma carruagem em chamas, vendo sua família ser massacrada por índios. Em seguida, temos o velho cowboy Shea Brennan (Sam Elliott) também em lágrimas, ao lado de sua casa. Sua filha e sua mulher morreram cobertas de bolhas causadas pela varíola. Brennan queima sua casa, e, enquanto o fogo consome tudo o que ele tem, Shea coloca um revólver debaixo do queixo para acabar de vez com sua agonia.

Ora, isso era vida dura. Os episódios seguintes de 1883 dão a dimensão de um período histórico em que cada passo era um perigo, cada dia podia ser o último, e ninguém se preocupava em falar “todes” ou se trancar em casa por causa de um vírus. Foi essa perspectiva histórica que ajudou a fazer o sucesso de Yellowstone e 1883.

Para que a azeda filha de John Dutton possa jogar dinheiro fora, e passar seus dias de bar em bar bebendo até cair, sua bisavó teve de enfrentar o inferno na Terra, em 1883. “Não quero ganhar mais nada”, diz John Dutton a um de seus filhos “rebeldes”. “Só quero preservar o que minha família conseguiu para vocês e seus filhos.” Mas seus descendentes mimados provavelmente venderão tudo assim que o velho morrer.

Em Yellowstone, todo mundo tem de trabalhar duro. Brigas são resolvidas com murros, não com acusações nas redes sociais. Dizer que é uma série para “machos” é enganador. As mulheres de Yellowstone sabem se defender. O Estado de Montana, onde a série é ambientada, é governado por uma mulher durona em seus objetivos e métodos. Os índios se defendem com armas, não com abaixo-assinados de cientistas sociais. Mônica, a professora índia nora de John Hutton, já avisou que vai ensinar seus alunos que Cristóvão Colombo foi um “genocida”. É inevitável.

Não é só o panorama cultural que faz o sucesso de Yellowstone/1883, claro. Para quem vive nas grandes cidades, essas séries funcionam como um calmante, mostrando sem pressa as pradarias onde cavalos cavalgam em câmera lenta e peixes saltam em corredeiras, com uma trilha sonora de violões e vozes roucas de cowboys.

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O primeiro fenômeno global entre as séries de TV foi Bonanza (1959-1973), um faroeste não tão diferente de Yellowstone: o patriarca, Ben Cartwright (Lorne Greene), mantinha os filhos brigões na linha para preservar a integridade da vasta Fazenda Ponderosa. Foi considerada a primeira “experiência cultural compartilhada da humanidade”. The Big Valley (1965-1969) seguiu o mesmo caminho. Hoje, uma série sobre um rancho de criadores de cavalos chamada Heartland já está na oitava temporada e é um dos sucessos silenciosos sobre o qual ninguém na mídia chique (que acha Fleabag o máximo) costuma comentar.


“Vocês são os índios agora”

Numa das boas cenas de 1883, um pai leva o filho de 5 anos para sua primeira caçada. Se não abater o cervo, não haverá refeição. O pai ajuda no tiro e depois ensina o filho a agradecer ao animal morto pelo sacrifício de dar sua vida para que sua família possa sobreviver. É uma longa distância até os tempos de hoje, quando as pessoas acham que frangos nascem aos pedaços, empacotados nas geladeiras dos supermercados.

Em 1883, vemos a luta para a expansão do homem branco rumo ao oeste. Temos a brutal guerra com os nativos, que, sabemos, vão perder e sofrer com a derrota por gerações. “Como você pode fazer isso?”, grita Elsa Dutton ao índio que a ataca. “O seu povo fez isso”, responde o nativo. Em seguida, ela acerta um tiro nele e recebe em troca uma flecha no abdome. Se Elsa morresse nessa cena, não haveria família Dutton nem a série Yellowstone.

Cartaz da série 1883, prequela de Yellowstone | Foto: Divulgação

Mas a garota branca sobrevive — e seus descendentes se tornam grandes proprietários de terras na atualidade, sob cerco permanente dos inimigos. “Vocês são os índios agora”, diz o chefe de tribo, Thomas Rainwater, a John Dutton. Os nativos fazem planos pouco honestos para construir um grande cassino com hotel para 400 quartos.

Rainwater quer juntar dinheiro suficiente para comprar Yellowstone e apagar qualquer traço de presença dos brancos. Sabe que está protegido por leis e pela simpatia cheia de culpa da grande mídia “progressista”. Com seu cocar sobre o terno Armani, o grande chefe índio ri da tentativa de John Dutton sobreviver nesse faroeste invertido do século 21. “Sou o oposto do progresso”, diz Rainwater a Dutton. “Sou o passado te perseguindo.”

Leia também “A tirania do cancelamento foi longe demais”

13 comentários
  1. Luciano Carvalho de Medeiros
    Luciano Carvalho de Medeiros

    Ótima série. Não prega o “politicamente correto” como a maioria das séries “nutella” que existem nos dias de hoje.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns. Sempre informação nova e de qualidade.

  3. Fernando De Vilhena Diniz
    Fernando De Vilhena Diniz

    Já coloquei na minha lista!

  4. João Abib Mansur
    João Abib Mansur

    Eu estou me distraindo muito com os seriados,são excelentes

  5. Natan Monteiro
    Natan Monteiro

    Yellowstone é uma baita de uma série! Nos 2 ou 3 primeiros episódios, você fica um pouco desconfiado se aquela série de ranchos/cavalos/vaqueiros vai render mesmo…Mas, quando menos espera, vê que está devorando um episódio atrás do outro, porque ela segue numa escala ascendente de forma impressionante. Tem muita ação/drama/sangue/traição/cobiça/morte etc. Para quem tem Prime Video, basta assinar o canal adicional Paramount+ (R$19,90); já tem 4 temporadas de 10 ep. disponíveis.

  6. João Carlos de Souza Carvalho
    João Carlos de Souza Carvalho

    As séries são maravilhosas mas para mim apresentam um grande problema ,não vem com legendas ! Me recuso a assistir filmes dublados , a Paramount+ está perdendo muitos clientes como eu e muitos mais !

  7. Carlos Alberto Mazzi
    Carlos Alberto Mazzi

    Excelentes séries, muito bem-vindas nos dias de hoje. Servem não só para diversão, mas principalmente para refletirmos em coisas importantíssimas como a essência do ser humano sem a lente do progressismo que nos dominou.

  8. Paulo Cesar Ferreira
    Paulo Cesar Ferreira

    Valeu pela dica Dagomir. Abç.

  9. Marilia Luci Vieira
    Marilia Luci Vieira

    Gostei 👍 Vou assistir a série.

  10. Alberto
    Alberto

    Já assisti todas a 4 séries de Yellowstone. Excelente! Pena que 1883 ainda esteja no começo e só possamos ver um capítulo por semana.

  11. Pedro Henrique Alves
    Pedro Henrique Alves

    Ok, me convenceu. Assistirei a série. kkk

  12. Es muß sein
    Es muß sein

    Legal, mas vou ter que recorrer ao dicionário.

    1. Es muß sein
      Es muß sein

      Entendi: Better call Saul é prequela de Breaking Bad

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