Um colunista da Folha de S.Paulo, que se diz liberal, escreveu nesta semana um artigo questionando a quem interessa a liberdade de expressão irrestrita. Para ele, quando uma opinião coloca em risco outros direitos, é evidente que ela deve ser tolhida. Ele defende a liberdade ampla, mas… e eu sempre me interesso mais pelo que vem depois do “mas”. No caso, a “liberdade de expressão é um valor inegociável, mas é preciso impor limites”.
Claro que ele usou a pandemia como exemplo. Para o autor, notícias falsas tiraram vidas. Quem não concordou totalmente com a receita draconiana e autoritária de isolamento social, uso obrigatório de máscaras e passaporte vacinal colocou vidas em perigo, segundo nosso liberal. Eis como ele conclui: “Apenas o que defende o bem comum, que luta contra injustiças, que se pauta pelo rigor da ciência, que acompanha a marcha da História, deve ter espaço. Mentira e injustiça não têm espaço numa sociedade democrática. Fora isso, a liberdade de expressão deve ser irrestrita”.
Bem, está claro que ele não é liberal de verdade, mas, sim, um esquerdista autoritário. Aliás, ele defende todas as demais pautas “progressistas”. No caso da liberdade de expressão, talvez o valor mais caro ao liberalismo junto da propriedade privada, o colunista bate num espantalho. Ninguém, ou quase ninguém, defende uma liberdade totalmente irrestrita. Incitar ódio e violência, pregar ataques físicos a terceiros ou fazer apologia ao crime, por exemplo, são pontos que liberais aceitam como passíveis de algum controle. E já existem punições previstas para injúria, calúnia e difamação.
Mas não é disso que ele fala. O que o “liberal” deseja é impor censura em nome do combate às fake news e ao “negacionismo”, ou seja, trata-se de uma visão extremamente arrogante e autoritária que delega a um clubinho o poder de determinar o que é a verdade científica e o que é mentira perigosa, que deve ser banida do debate. Nesta pandemia, ficou escancarada essa postura arrogante e autoritária de muita gente, inclusive alguns que se dizem liberais ou mesmo conservadores.
A ciência nasce da dúvida, da pergunta, enquanto essa turma tentou impor dogmas e interditar o debate
E, para piorar, a tentativa de monopolizar a fala em nome da ciência se mostrou um fiasco. Estudos posteriores sérios questionaram a eficácia do lockdown, vendido como panaceia. As máscaras não foram capazes de impedir a rápida disseminação do vírus. E até as vacinas passaram a ser colocadas em xeque quando inúmeras pessoas “imunizadas” contraíram a doença, e em muitos casos foram hospitalizadas ou mesmo a óbito. Muita promessa falsa, pouca ciência de verdade.
E é aqui que mora o cerne da questão: o liberal de fato parte de uma postura de humildade. A ciência nasce da dúvida, da pergunta, enquanto essa turma arrogante tentou impor dogmas e calar os céticos, interditar o debate, punir os dissidentes e “hereges”, tratados como “negacionistas”, um termo religioso, não científico. Ao depender de gente como esse colunista “liberal”, médicos renomados e cientistas sérios, com um histórico respeitável na área e um conhecimento infinitamente maior do que o dele nos assuntos, deveriam pagar com o ostracismo social por suas dúvidas ou contrapontos.
“O liberal é humilde. Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem certeza é que a incerteza requer a liberdade, para que a verdade seja descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência — ou seja, sua ignorância e arrogância — aos seus concidadãos.” A fala de Raymond Aron defende com precisão o abismo entre a postura humilde liberal e a arrogância dos planejadores sociais.
Podemos resgatar também o que outro liberal famoso pensava sobre a liberdade de expressão. John Stuart Mill flertou com ideias “progressistas”, mas nessa área defendeu como poucos o indivíduo. Eis o que ele tinha a dizer sobre o assunto: “Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade. Se a opinião é correta, privam-nos da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perdem, o que importa em benefício quase tão grande, a percepção mais clara da verdade, produzida por sua colisão com o erro. Todo silêncio que se impõe à discussão equivale à presunção de infalibilidade. Há uma enorme diferença entre presumir uma opinião como verdadeira porque, apesar de todas as oportunidades para contestá-la, ela não foi refutada e pressupor sua verdade com o propósito de não permitir sua refutação”.
Ele acrescentou: “O único modo pelo qual é possível a um ser humano tentar aproximar-se de um conhecimento completo acerca de um assunto é ouvindo o que podem dizer sobre isso pessoas de grande variedade de opiniões, e estudando todos os aspectos em que o podem considerar os espíritos de todas as naturezas. O hábito constante de corrigir e completar a própria opinião cotejando-a com a de outros, longe de gerar dúvidas e hesitações ao pô-la em prática, constitui o único fundamento estável para que nela se tenha justa confiança. A verdade de uma opinião faz parte de sua utilidade. Se quiséssemos saber se é ou não desejável crer numa proposição, seria possível excluir a consideração sobre ser ou não verdadeira? Na opinião não dos maus, mas dos melhores, nenhuma crença contrária à verdade pode ser realmente útil”.
Em outra passagem, Mill volta a atacar os censores: “A história está repleta de exemplos de verdades silenciadas pela perseguição. A perseguição sempre triunfou, salvo quando os heréticos formavam um partido demasiado forte para que os perseguissem efetivamente. É um exemplo de sentimentalidade ociosa supor que a verdade, meramente por ser verdade, possua o poder inerente, negado ao erro, de prevalecer contra o calabouço e o cadafalso. A real vantagem da verdade consiste em que, quando uma opinião é verdadeira, pode-se extingui-la uma, duas ou inúmeras vezes, mas ao longo dos anos se encontrarão pessoas que tornem a descobri-la, até que uma de suas reaparições ocorra numa época em que, graças a condições favoráveis, escapa à perseguição, avançando de modo tal que resista a todas as tentativas subsequentes de suprimi-la”.
Por fim, Mill diz: “Ninguém pode ser um grande pensador se não reconhece que, como pensador, seu primeiro dever consiste em seguir seu intelecto em todas as conclusões a que o possa conduzir. Onde houver uma convenção tácita de que não se devem contestar os princípios, onde se considerar encerrada a discussão acerca das grandes questões que podem ocupar a humanidade, não podemos esperar encontrar essa escala geralmente alta de atividade mental que tornou tão notáveis certos períodos da história”.
Resgato mais um liberal renomado, e no campo da ciência, para concluir. Falo de Sir Karl Popper. O conhecimento humano objetivo é possível, e não devemos cair no relativismo cínico. Conhecimento é a busca pela verdade, a busca de teorias explanatórias, objetivamente verdadeiras. Mas não é a busca por certeza absoluta. Entender que errar é humano é reconhecer que devemos lutar incessantemente contra o erro, mas que não podemos eliminá-lo totalmente. Como diz Popper, “mesmo com o maior cuidado, nunca podemos estar totalmente certos de que não estejamos cometendo um erro”. Essa distinção entre verdade e certeza é fundamental segundo Popper, pois vale a pena sempre buscarmos a verdade, mas devemos fazê-lo principalmente buscando erros, para corrigi-los.
Por isso o método científico é o método crítico, o método da “busca por erros e da eliminação de erros a serviço da busca da verdade, a serviço da verdade”. Alguns acusaram Popper de relativista por conta dessa postura, mas ele explica isso com base nessa confusão entre verdade e certeza, e é enfático ao recusar tal rótulo: “O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais; é uma traição à razão, e à humanidade”. Ser humilde do ponto de vista epistemológico não é o mesmo que ser um relativista.
Agora vamos comparar essa postura liberal com aquela típica de seitas dogmáticas, em que a “Verdade” já foi descoberta. Nesses casos, não há espaço para erros, para divergências saudáveis e construtivas, para evolução. Afinal, tudo já foi respondido, e as crenças são tidas como infalíveis. Alguém que está certo mais de 50% do tempo já pode se vangloriar de sua inteligência, mas o que dizer de alguém que “está certo” 100% do tempo? Nem o maior gênio de todos. Logo, só mesmo um fanático ou embusteiro adota esse tipo de postura iliberal e arrogante.
Não restam dúvidas de que um liberal de verdade adotará postura humilde diante dos temas polêmicos e jamais se colocará como o detentor da palavra final sobre assuntos controversos, buscando silenciar críticos ou céticos.
Leia também “A ditadura do pensamento único”
Liberdade restrita não é Liberdade
Os opiniões divergentes sobre um determinado assunto não bem aceitos, a grande maioria só quer uma maneira de agir. Silenciar as pessoas que não pensam ou que questionam a ” verdade absoluta” é modus operandi dos Wokes nas redes sociais, A humanidade só crescer com debate de ideias, caso contrário ainda estaríamos pensando que a Sol gira em torno da Terra.
Os meus efusivos aplausos a texto tão excelente. Meus parabéns a esse inteligente jornalista que nos brinda com artigo tão extraordinário.
Muito bom o artigo.
“Ciência que não se pode questionar é propaganda!” Excelente artigo. Parabéns.
🇧🇷👏👏👏👏
Perfeita, essa reportagem. Deveria ser leitura obrigatória por todos os parlamentares, médicos e jornalistas, principalmente por aqueles que se dizem os donos da ciência.
Não leio a Folha de São Paulo há anos. Sem credibilidade nenhuma. Jornal de extrema esquerda, disseminando de forma velada e sutil ideais socialistas e comunistas, vestindo a carapuça de progressistas. Não perco meu tempo em ler a velha imprensa podre.
Rodrigo, eu concordo com os seus argumentos a luz da razão iluminista.
Mas eu acho que você falha em desconsiderar o problema central, que é o pós-modernismo aplicado que desconsidera por completo a ciência e até razão. Os militantes pós-modernos, como o Joel, querem usurpar até o significado das palavras em prol de um projeto de poder.
Todos esses jornalistas e pseudo-cientistas que estão cacarejando falsas virtudes não ligam para a busca da verdade, nem a ciência, elas querem dominar as narrativas para conquistar poder.
Como curiosidade, estão patrocinando propaganda no YouTube do Leonardo Boff dizendo que não podemos voltar ao “velho normal”, ele gostou do novo normal onde o Estado operado pela nomenclatura ungida manda, e os súbitos obedecem cegamente ou são cancelados.
Se as pessoas não entenderam exatamente com quem estamos lutando e qual é o código de ética (?) desses caras, estamos fritos. É papo de bêbado tentar dialogar de boa fé com quem só pensa em trapacear. No mínimo, é preciso deixar a inocência de lado. O outro lado ocupou quase todas a cultura e quase toda a burocracia estatal e não jogam limpo, eles são amorais, traiçoeiros e querem destruir quem fica no caminho do projeto de poder totalitário coletivista que eles estão implementando.
Locke, Mill, Pope não significam nada pra essa gente. E, infelizmente, acho que são a arma errada para lidar com os pós-modernistas.
“Crê nos que buscam a verdade. Desconfia dos que a encontraram.” (André Gide)
Eu acho que tenho certeza. É verdade.
Que texto!!
Há dois tipos de pessoas que desprezo: os que não sabem de nada, e os que sabem de tudo
O liberal “progressista” da “falha de sp” que vc não identifica, foi jenial (cada um que atribua ao “j” o significado que quiser) nesta pérola: “Mentira e injustiça não têm espaço numa sociedade democrática. Fora isso, a liberdade de expressão deve ser irrestrita.” Vamos por parte. Mentir está no fundo da alma humana. Mentimos por infinitas razões tanto de boa quanto de má fé. Portanto, ocupam um espaço infinito, principalmente, na sociedade democrática. Quanto a atos de injustiça, bem, aí tem-se que juntar os agentes e as circunstâncias para se chegar a um veredito. Agora, o que mais chama a atenção, é um novo significado para “irrestrita”, qual seja, de que tudo o que deva ser irrestrito não deve ser irrestrito para quem está com o poder de estabelecer as exceções.
Me lembrei do filme 12 homens e uma sentença. Um júri analisando um caso e apenas um deles foi contra…. e aos poucos foram um a um analisando e refutando os dados e chegando a uma conclusão unânime. o que seria se esse um não tivesse defendido sua opinião?
Fico intrigado como uma “empresa”, Folha de S. Paulo, que atua no mercado e dele se beneficia, pode alojar profissionais que mal escondem o desejo de mudança radical do modelo econômico.
Joel é café com leite, hahaha