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Foto: Shutterstock
Edição 98

A morte lenta da noite

As trevas noturnas já foram motivo para o terror da humanidade. O terror acabou e a noite está acabando também

Dagomir Marquezi
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“Nós estamos cegos metade de nossas vidas.”
Jean Jacques Rousseau

Existe uma boa chance que você passe sua noite trancado no seu apartamento, esquentando o jantar no micro-ondas, contando com o porteiro do edifício para avisar se algum chato aparecer para interromper seu filme. Nosso problema máximo é se vamos ligar o ar-condicionado ou apelar para o edredom. Não imaginamos o terror que o simples pôr do sol de todos os dias significou há meros 300 anos.

O historiador A. Roger Ekirch resolveu contar essa história em At Day’s Close — Night in Times Past (“No Fechamento do Dia — Noite em Tempos Passados”, W. W. Norton & Company). Ekirch foca a história da noite nas sociedades europeias no período anterior à Revolução Industrial. A partir do momento em que a lâmpada elétrica se espalhou pelas casas e por locais públicos no fim do século 19, a noite de certa forma foi dominada.

Foto: Divulgação

O Gênesis começa com Deus criando o Céu e a Terra. Deus caminha nas trevas e decide que deveria haver luz. “E Deus viu que a luz era boa; e Deus separou a luz da escuridão. Chamou a luz Dia, e a escuridão chamou de Noite.”

Desde a Pré-História, os seres humanos aprenderam que havia metade do dia iluminado, e outra metade povoada por terror, impotência, pesadelos e mortes inevitáveis. No início dos tempos, quando não havia uma explicação para a rotação da Terra, nem mesmo se tinha a certeza de que haveria uma manhã após a escuridão. Egípcios e mesopotâmios consideravam a noite como sinônimo de morte. 

Durante as noites, o controle dos humanos desaparecia. A lua cheia podia interferir nas mentes humanas — que poderiam ficar “lunáticas”. Doenças costumam piorar à noite. Era um círculo vicioso — as pessoas se apavoravam com a escuridão lá fora, trancavam portas e janelas, o ar ficava cada vez mais contaminado, o que agravava as condições de saúde. E a culpa pela piora era creditada aos demônios noturnos.

House-Breakers, de Thomas Rowlandson | Foto: Reprodução/Wikipedia


Os cadáveres da madrugada

As cidades europeias em crescimento até o início do século 18 não tinham um serviço apropriado de esgoto. Aproveitando a escuridão da noite, os moradores de regiões mais pobres jogavam pela janela sacos de urina e excremento, tornando o ambiente ainda mais hostil a quem se aventurasse a sair de casa. Segundo um morador de Madri, “calcula-se que as ruas são perfumadas a cada dia por mais de 10 mil cocôs”.

Animais noturnos, como corujas, morcegos e sapos, eram todos ligados a “Satã”. A lenda de Drácula é um dos exemplos mais conhecidos disso. O conde sugador de sangue não suportava a luz do dia. Mas havia uma razão mais concreta para temer a escuridão da noite — era o momento em que bandidos de todos os tipos entravam em ação. Gangues no século 17 escolhiam uma casa durante a noite e simplesmente arrombavam a porta, amarravam todo mundo e levavam tudo. Não havia uma força policial a ser chamada pelo 190. 

Se ladrões e assassinos já eram suficientes para aterrorizar a vida dos cidadãos na noite, havia um perigo ainda maior

Para aumentar o terror, os criminosos escureciam o rosto, usavam chapéu e capas para proteger suas identidades. Alguns aproveitavam a má fama da noite para usar máscaras imitando demônios. Assassinatos eram cometidos por atacado. “A primeira luz na Dinamarca revelava os cadáveres da noite anterior boiando nos rios e canais”, conta o autor. “Assim como cadáveres inchados se acumulavam no Tejo e no Sena.” Atos impulsivos de violência desencadeavam-se à noite, por causa da falta de defesa ou de algo parecido com um policiamento.

A Blacksmith’s Shop, de Joseph Wright of Derby – (1771) | Foto: Reprodução/Wikipedia

Se ladrões e assassinos já eram suficientes para aterrorizar a vida dos cidadãos na noite, havia um perigo ainda maior. Para iluminar e aquecer suas casas, as pessoas usavam fogo. E o fogo constantemente saía de controle, destruindo a vizinhança inteira. Os “bombeiros” do século 17 usavam baldes de couro para combater incêndios que se estendiam por quarteirões. 

Em 1666, o fogo saiu de controle durante uma madrugada em uma padaria de Londres. A princípio, o prefeito desprezou o fato, dizendo que a situação podia ser controlada “com a mijada de uma mulher”. O fogo da padaria consumiu quatro quintos da cidade em quatro dias, destruindo mais de 13 mil casas. Praticamente todas as outras grandes cidades da Europa enfrentaram grandes incêndios causados pelo fogo usado à noite sem nenhuma segurança em velas, lamparinas, fogões precários e lareiras improvisadas. Para piorar, bandidos costumavam provocar incêndios e aproveitar a confusão para roubar o que pudessem.

A lei da noite

A caótica situação das noites gerou uma solução bastante conhecida hoje: o “fica em casa”. Em 1068, o rei William determinou o toque de recolher em toda a Inglaterra a partir das 20 horas. E, como acontece atualmente, a verdadeira razão para essa medida caiu na suspeita — o rei queria prevenir incêndios ou dificultar as conspirações contra seu governo, que costumavam acontecer na escuridão da noite? Outras medidas de restrição foram estabelecidas e atingiam principalmente as mulheres. À noite, nenhuma mulher deveria sair de casa, com exceção das parteiras. Ou seriam confundidas com “adúlteras e prostitutas”.

A ideia de uma iluminação de lugares públicos só começou a ser admitida a partir do século 15. Luz na rua passou a ser um acontecimento especial em dias de festa — nascimentos de herdeiros da família real, casamentos na realeza, coroações e vitórias no campo de batalha. Em 1654, os cidadãos de Barcelona iluminaram suas casas por três noites seguidas para comemorar o fim de uma praga.

Ace of Hearts, de Jan Havicksz Steen | Foto: Reprodução/Wikipedia

A Igreja Católica mostrava seu poderio e sua influência iluminando fartamente suas catedrais. Mas parte do clero era contra. Até o século 18, as autoridades católicas consideravam a iluminação artificial como um sacrilégio contra a ordem de Deus de separar a luz das trevas. A resistência era inútil. A segunda metade do século 17 viu as grandes cidades, como Paris, Amsterdã, Berlim, Londres e Viena, implantarem alguma forma de iluminação pública em suas ruas.

Segundo A. Roger Ekirch, a profissão mais antiga do mundo não é a de prostituta, mas a de vigilante noturno. Guardas de diversos tipos eram encarregados de circular pelas ruas a pé, carregando porretes. Eles faziam suas rondas avisando aos berros que tudo estava sob controle. Um personagem de uma peça dinamarquesa de 1723 descrevia bem a situação: “A cada hora da noite, eles acordam as pessoas de seus sonos gritando que esperam que estejam dormindo bem”.

The Dentist, de Gerard van Honthorst (1622) | Foto: Reprodução/Wikipedia

Esses vigilantes deram à noite uma função fundamental: a criação do próprio sistema legal. Segundo o acadêmico francês Jean Carbonnier, foi a dureza da vida noturna que gerou a necessidade de criar leis para regular os limites do comportamento pessoal. Desde a Idade Média, os crimes cometidos à noite eram punidos com maior severidade.

Crianças no escuro

A partir do século 16, surge o conceito de que “a casa de um homem é seu castelo”. Os moradores resolvem defender suas propriedades dos terrores da noite. As riquezas são enterradas em locais discretos do lado de fora. Teias de cordas com sinos pendurados são espalhadas perto de portas e janelas para denunciar qualquer invasão. Cães ferozes e até “patrulhas de gansos” dormem dentro de casa para alertar contra ladrões.

Evening in the Village, de Jean Jacques de Boissieu (1800) | Foto: Reprodução/The Met

Outras formas mais sutis de proteção eram usadas contra os demônios noturnos. Nas paredes e nas portas eram pendurados pequenos crucifixos, garrafinhas de água benta, velas consagradas e incensos. Os não tão católicos providenciavam ferraduras, cabeças de lobos e coroas de louros. Corações de porcos evitavam que os demônios entrassem pelas chaminés. E nasce um truque usado até hoje: deixar a vela acesa num dos cômodos para fingir que tem alguém acordado.

A noite traz a evolução das velas. Elas eram feitas com cera de abelha desde o tempo dos fenícios. No início do século 18, a caça às baleias no Atlântico Norte (que quase levou a seu extermínio) gerou a vela “spermaceti”. Mas eram produtos não sustentáveis e o preço, muito variável. Vieram em seguida as velas de sebo, produzidas a partir da gordura de carneiro ou porco, que eram mais baratas, produziam uma fumaça negra e cheiravam mal. Muito tempo se passaria antes da nossa segura e confortável vela de parafina, à base de petróleo.

Young Man Holding a Candle, de Thomas Frye (1760) | Foto: Divulgação Art Gallery of Ontario

Num nível mais sutil, a noite ajudava na educação das crianças. Por meio de jogos e pequenas tarefas realizados no escuro, elas aprendiam a enfrentar seus fantasmas e a amadurecer. Histórias infantis ressaltando o medo do escuro cumpriam a mesma função. 

Vida e morte na cama

A noite teve também o papel de modernizar as relações econômicas. Existem registros de atividades econômicas noturnas desde o século 14. “O dia é curto, o trabalho é longo”, diz um provérbio inglês. Manufaturas foram esticando seus horários de trabalho à luz de velas. As mulheres eram as mais sacrificadas. Passavam o dia com suas obrigações domésticas e esticavam a noite com “bicos” em trabalhos autônomos, como produzir cerveja ou fazer queijo, incrementando a renda doméstica. Escravos em fazendas também usavam o período de “descanso” para criar fontes de renda próprias.

A Rake’s Progress, de William Hogarth (1733) | Foto: Reprodução/Wikipedia

At Day’s Close também analisa o nascimento da vida noturna em cervejarias, casas de jogos, dança e prostituição. A noite permitia a transgressão sexual, vigiada de perto durante o dia por autoridades. Grandes festas noturnas, como bailes de máscaras, eram sinal de poder dos mais ricos. Discretas redes de encontro de homossexuais já existiam no século 18 em Londres, Paris e Amsterdã.

As famílias faziam da cama um lugar nobre de qualquer casa. “Uma cama servia de muitas funções durante uma vida”, lembra o autor Roger Ekirch. “Na cama, a maioria das pessoas eram concebidas e nasciam, se recuperavam de doenças, faziam amor e morriam.”

A beleza do céu noturno

Hoje, as populações estão cada vez mais concentradas em cidades. E, nas cidades, de certa forma, a noite está morrendo. Imagens de satélite mostram clarões urbanos permanentemente acesos, ocupando espaços de centenas de quilômetros ao redor de metrópoles e nas conexões entre cidades como Nova Iorque e Washington e Rio de Janeiro e São Paulo. Muitos dos terrores do passado estão dominados. Com a globalização da economia e a internet, podemos nos dar o luxo de dormir de dia e trabalhar à noite. É um grande avanço para o bem-estar e a produtividade do ser humano. Roger Ekirch observa que essa condição traz em si um toque de tristeza:

“A beleza do céu noturno, alternando ciclos de escuridão e luz, e as pausas regulares da alternância diária de imagens e sons — tudo isso será prejudicado pelo aperfeiçoamento da iluminação. Sistemas ecológicos, com seus padrões próprios de vida noturna, sofrerão muito. Com a escuridão diminuída, oportunidades para a privacidade, a intimidade e a autorreflexão vão se tornar mais raras. Chegando esse dia luminoso, nós perderemos um elemento vital de nossa humanidade — um elemento tão precioso quanto eterno.” 

A Boy Pouring Oil Into a Lamp, de Trophîme Bigot (1620) | Foto: Reprodução/Pinterest

Leia também “Faroeste invertido”

10 comentários
  1. AnaMachado
    AnaMachado

    Ótimo artigo, Dagomir.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns Dagomir.

  3. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Parabéns pelo texto.

  4. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Ótima viagem. Valeu!

  5. OLDEMIRO HARDOIM JUNIOR
    OLDEMIRO HARDOIM JUNIOR

    Durante a noite, agora, podemos ler ótimos textos como este.

  6. Luzia Helena Lacetda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacetda Nunes Da Silva

    Dagô (é assim que o pessoal aqui em casa se refere a você),
    seu surpreendente artigo iluminou minha mente neste cair da noite de sábado.

  7. Francisca Elza da Silva Ganzelevitch
    Francisca Elza da Silva Ganzelevitch

    Adorei este texto, totalmente fora da mesmice do cotidiano.

    1. Wagner M B Possani
      Wagner M B Possani

      Me lembro do céu noturno em 90 mo estado de Rondônia, nunca mais vi um céu igual

  8. Marco Polo Gerard Bondim
    Marco Polo Gerard Bondim

    Interessante reflexão!

  9. Eduardo
    Eduardo

    Que texto maravihoso. Há tempos não lia algo tão interessante assim. Parabéns mais uma vez a Revista Oeste.

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