A atmosfera efervescente no Brasil dos anos 1970 teve em Mário Jorge Lobo Zagallo um dos seus principais personagens. Ele idealizou, montou e conduziu um grupo que se tornaria símbolo não só da excelência no futebol, como das próprias potencialidades do brasileiro. Cujo sucesso levou seus integrantes a serem considerados heróis, os “heróis do tri”, por espelharem as próprias expectativas do povo.
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“O Zagallo estava muito à frente de seu tempo”, diz a Oeste Clodoaldo Tavares Santana, 74 anos, um dos principais jogadores naquela conquista de 1970. “Antes, no futebol brasileiro, o jogador não guardava posição. Ele trouxe uma organização nunca vista antes. NInguém montaria aquele time como ele. Estudou, analisou e encontrou uma maneira de juntar todos aqueles talentos.”
Zagallo, que morreu na última sexta-feira 5, aos 92 anos, no Rio de Janeiro, mostrou ao mundo uma nova faceta do brasileiro, ao conquistar aquele título com a seleção no México.
Ficou evidente a faceta queo Brasil não era só eficiente dentro de campo, com o puro talento. Mas que sabia aliar essa magia ao planejamento, à inteligência, sempre presente, mas até então pouco destacada no meio futebolístico do país.
Segundo Clodoaldo, o técnico uniu a intuição ao conhecimento e se tornou uma eterna referência.
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O próprio futebol brasileiro, junto com o país, de certa maneira parou no tempo. O mundo, no entanto, seguiu adiante, e a ideia de Zagallo foi surtir frutos em outras paragens. No Barcelona dos anos 2010, por exemplo.
“O Josep Guardiola, quando foi técnico do Barcelona, se inspirou na seleção de 70”, conta Clodoaldo. “Veja a movimentação da equipe, gostava de ficar com a bola e pressionava o adversário, como nós fazíamos. Guardiola já disse isso em entrevista.”
Clodoaldo conta que Zagallo, que acabara de substituir o controvertido João Saldanha, soube lidar com todas a pressão. Em uma época na qual o país almejava descobrir e mostrar sua identidade para o mundo pré-globalização. Que já era pautado pela integração de ideias. Não à toa, aquele foi o primeiro Mundial transmitido ao vivo pela TV.
Para aquela competição, a seleção brasileira treinou por cerca de très meses. O time realizava os coletivos no Maracanã. Às vezes treinava na Gávea, campo do Flamengo. E fazia as partes tática e física em centro de treinamento na Barra. A concentração ficava no Retiro dos Padres, em São Conrado.
Foi lá que, no início dos trabalhos, Zagallo conversou e mostrou seus métodos para Clodoaldo.
“Fui supreendido quando ele me chamou no quarto”, lembra o ex-volante. “Me explicou o que ele queria que eu fizesse. Falou para eu ficar um pouco à direita, para dar cobertura às avançadas do Carlos Alberto e aos zagueiros.”
Clodoaldo lembra que, bem ao seu estilo minucioso, Zagallo contou como iria montar o time, com detalhes. E que ele seria peça-chave.
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“Eu já jogava nesta posição no Santos, mas adaptei para fazer algumas funções que ele queria. E me perguntou: ‘Entendeu?”. Na hora disse ‘que estava preparado e esperava corresponder’. E fiquei grato para sempre por essa confiança.”
Clodoaldo ressalta que, em todas as outras posições, Zagallo se mostrou um visionário.
“No quarto gol do Brasil contra a Itália, por exemplo, quem tomou a bola na defesa foi o nosso centroavante, o Tostão”, destaca o ex-jogador, que nasceu em Aracaju e iniciou no Santos em 1965, permanecendo no clube até 1979.
“Então ele passou para o Piazza, que passou para mim, eu dei aqueles dribles lá, já achei o Rivellino, que tocou para o Jairzinho. O Pelé recebeu e viu o Carlos Alberto livre. Ele fez o gol, mas quem já estava na área para o cruzamento? O Tostão! Tudo isso foi fruto do Zagallo.”
Adaptação rápida
Para Clodoaldo, Zagallo adaptou os jogadores de acordo com o estilo individual de cada um, mas em busca de um trabalho coletivo. Foi, desta maneira, o comandante do maior time de futebol de todos os tempos, título concedido pela revista inglesa World Soccer.
“Ele viu que o Rivellino podia ser meia, mas abrir também na ponta. Percebeu que o Pelé poderia se revezar com o Tostão na frente. E que o Jairzinho seria um elemento surpresa, como foi.”
No início dos treinos, os próprios jogadores se mostraram surpresos com a ousadia do treinador. Mas Clodoaldo ressalta que Zagallo jamais deixou de lado suas convicções.
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“Ele falava: ‘vocês vão compreendendo aos poucos'”, recorda-se. “E a adaptação foi rápida, natural, tranquila, em pouco tempo parecia que o time jogava assim há anos. Zagallo montou com um quebra-cabeça como ninguém faria.”
Fora de campo, o trato de Zagallo com os jogadores era de igual para igual. Feito com simplicidade, que não lhe tirava a autoridade, garante o ex-volante.
“Um pai é assim, não é o paizão que é só bonzinho, mas cobra na hora de cobrar, mas é amigo, brinca, dá risada, bem como ele fazia.”
A experiência fez Clodoaldo chegar à conclusão de que a profissão de jogador de futebol, apesar de todo o glamour dos dias atuais, é um ofício ligado ao sentido da vida. Como com qualquer profissional.
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“O jogador joga pelo seu sustento, joga pelo clube porque quer se manter lá, e joga para o técnico, que é fundamental para que o trabalho dele avance”, analisa o ex-craque. “Se o técnico não for amigo nas horas boas e nas de dificuldade, o projeto do jogador é interrompido. Zagallo sabia disso e desta maneira conquistava os jogadores.”
A relação de ambos se manteve próxima mesmo depois de Clodoaldo, na Copa do Mundo de 1974, ter sido cortado, por uma contusão que ele considerava que poderia superar até o início da competição. Para ele, no entanto, foi coisa do destino.
“Só tenho a agradecer ao Zagallo, por tudo que ele fez por mim e pelo legado que ele deixou para o futebol brasileiro.”