Imagine que algum ousado escreva um livro intitulado Sobre as interferências do TSE nas eleições de 2022 baseado nos documentos do Twitter/X revelados recentemente, você acha que tal livro seria ou não censurado no Brasil atual? Vamos lá, tenho certeza de que você, no mínimo, teve uma dúvida séria sobre o caso. E não se culpe por isso, hoje eu também tenho essa dúvida sincera.
Afinal, já temos históricos semelhantes. Em 2019, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a revista Crusoé tirasse uma matéria do ar, ao estilo grosseiro e tirânico de qualquer republiqueta socialista do século 20. Ano passado, o mesmo colegiado definiu, num caso contra o Diário de Pernambuco, que um veículo de imprensa pode ser penalizado por expressões de um entrevistado. Durante as eleições passadas, então, a censura tornou-se mais comum do que torresmo vencido em bar velho. As ações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), recém reveladas por Michael Shellenberger, no caso “Twitter Files”, configuram não só censura ao modo analógico àquelas já citadas republiquetas, mas também censura prévia.
Assim sendo, quem nos garante que um livro não seria censurado em nosso país se ele se opusesse à versão oficial de nossa Corte Absoluta? Ninguém. Convencionou-se nas democracias liberais, principalmente depois das fogueiras fascistas, nazistas e comunistas de livros, envolver esse objeto em uma áurea de garantias jurídicas e simbolismos culturais, não raro colocando-o como o cimento de qualquer sociedade liberal, como arrimo de países que realmente aderem à democracia real.
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Mas se tem uma característica comum nas ditaduras é a iconoclastia, o método zombeteiro ante ao sagrado que ofende o sistema. Dessa maneira, ainda que o livro Sobre as interferências do TSE em nas eleições de 2022 não exista de fato, se algo do tipo vier a se materializar, que a editora corajosa prepare também um corpo jurídico robusto para defendê-la.
“Retirar livros das escolas públicas e vendê-los em todas livrarias físicas e virtuais do país não configura censura, ora bolas”
Pedro Henrique Alves
E aqui cabe um adendo: não estou falando de recolhimento de livros em escolas públicas, o livro O Avesso da Pele está sendo vendido em todo lugar, talvez a publicidade dada pela crítica ao livro nas escolas públicas tenha sido tudo que o autor e a editora sonharam um dia. A obra é ruim, mas como bom liberal, recomendo que comprem e leiam por vocês mesmos. Estou falando de censura real. Retirar livros das escolas públicas e vendê-los em todas livrarias físicas e virtuais do país não configura censura, ora bolas.
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Mas voltemos àquela censura que está logo ali, não há nada mais característico de uma ditadura nascitura que o medo constante de um ato censório. Não sei se sabem, mas eu era colunista de um jornal, e três vezes tive textos meus negados pela editora da ocasião, pois eu tocava em “assuntos políticos sensíveis”. A mesma editora me garantiu, por ligação, que não se tratava de uma censura qualitativa, ou seja, o ensaio era bom, fundamentado, mas o assunto poderia “gerar problemas jurídicos ao jornal”. Estavam no direito editorial deles, e quanto a isso não tenho o que protestar, mas notem que o motor que fez meus ensaios serem negados à época foi tão somente o MEDO. Medo de penalização judicial e financeira por parte da Suprema Corte.
Esse medo, meus caros, ronda a todos, e se hoje eu maculo esta coluna literária para falar de política é tão somente porque a literatura trata diretamente com a cultura, e a cultura versa diariamente sobre, entre outras coisas, a liberdade e demais princípios régios de nossa civilização. Em ambientes hostis à liberdade de expressão, o livro, veículo primordial e mais completo para tal expressão, inevitavelmente será atingido em algum momento — apesar de sua sacralidade, das suas garantias fundamentais, do simbolismo civilizacional que o sustenta.
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Justamente nesse ponto, caímos num paradoxo interessante. Pois, se o medo é castrador para alguns; para muitos outros, o ambiente de perigo é o principal combustível, vide livros que foram escritos ou roteirizados por autores que estavam justamente sob ameaça de ou até mesmo em prisões quando escreveram ou idealizaram suas obras. Cito três livros apenas como exemplo, Arquipélago Gulag, Luvas Vermelhas e O Diário da Felicidade, de Aleksandr Soljenítsyn, Eginald Schlattner e Nicolae Steinhardt, respectivamente.
“[Um livro] une o simbolismo de uma sociedade livre, conteúdo que vai além dos posts de redes sociais e opiniões de tavernas”
Pedro Henrique Alves
O momento perigoso de se opor a uma tirania é também o melhor momento para erguer tal oposição. É na aflição do iminente abismo que conseguimos enxergar a importância real daqueles valores que nos afastam de sua borda.
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O livro é uma das armas mais mortais para qualquer tiranete. Une o simbolismo de uma sociedade livre, conteúdo que vai além dos posts de redes sociais e opiniões de tavernas e costuma desnudar de forma profunda os absolutistas de ocasião. Essa arma, continuando com o paradoxo, também é um dos objetos mais frágeis, feito de uma matéria que basta um isqueiro para incinerá-lo, mas como se queimam ideias? Como se queimam princípios?
Momento perigoso, mas que pode ser importante para a literatura brasileira
Este é, então, o momento perfeito, ainda que perigoso, de se produzir literatura antiditatorial. Por isso, convoco todos os escritores, de direita e de esquerda, pessoas de bom senso e capacidade de percepção do óbvio a se unirem para defender as bases de uma sociedade que permita que direita e esquerda continuem existindo.
Talvez a rebelião mais vistosa seja aquela feita nas ruas, mas a que mais machuca os ditadores são aquelas feitas com textos, a palavra carrega a potência da perpetuação
Pedro Henrique Alves
A ditadura é um demônio que no começo escolhe um lado, mas, no final, acaba por engolir a todos, até mesmo aqueles que antes jurava defender. Escrevam mais, abandonem o medo da censura, escrevam artigos para blogs, submetam ensaios a revistas e jornais, escrevam livros, nem que seja para publicar de forma independente. A escrita ainda é a maneira mais fecunda e profunda de se expor uma ideia e ditaduras, de se defender princípios. Talvez a rebelião mais vistosa seja aquela feita nas ruas, mas a que mais machuca os ditadores são aquelas feitas com textos, a palavra carrega a potência da perpetuação.
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Eu só sei lutar com palavras, e podem esperar de mim essa luta. Quero defender a liberdade de meus opositores, quero acordar de manhã e ficar incomodado com uma coluna da Folha de S.Paulo, irado com a cegueira de um ensaio político da CartaCapital.
“Não se dobrem, escrevam para serem livres”
Pedro Henrique Alves
Eu quero isso. A felicidade profunda de me sentir incomodado por uma opinião contrária sendo propagada livremente, mas quero continuar nessa sociedade livre. Defenderei a liberdade das redes sociais, a liberdade das opiniões idiotas, defenderei a liberdade jornalística e editorial. Pois acreditem, meus amigos, a fogueira já foi acesa em nosso país, nela alguns já foram queimados, pessoas, ideias e veículos. Os livros não estão longe de tudo isso. Como editor e liberal, não contem com meu mutismo e covardia neste instante. É antes que as raízes da praga se aprofundem que devemos arrancá-la da boa terra.
Pronto, semana que vem volto a resenhar e analisar livros. Mas hoje, não se dobrem, escrevam para serem livres.
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Excelente ideia. Um bom livro, que exponha as vísceras do último processo eleitoral seria bem-vindo e muito oportuno.