Um dos autores mais negligenciados nos dias atuais é Anatole France — vulgarmente esquecido pela academia, críticos e mídias de nossos dias. Eis o comunista que combateu o comunismo, o humanista francês que se opôs à utopia social de perfeição do homem e da sociedade, o homem que colocou em risco seu ganha pão para defender a liberdade literária de Émile Zola em escudar Alfred Dreyfus no conhecido “caso Dreyfus”.
Nascido Jacques Anatole François Thibault, em 1844, na grande Paris, durante a vida adulta assumiu Anatole France como seu nome público em homenagem — ao que indicam seus biógrafos — à livraria de seu pai, a “Librarie de France” — um empreendimento livreiro de sucesso nos inícios dos anos 1800. A Librarie foi o local onde o jovem Anatole adquiriu amor pela leitura e pela escrita. France, o autor, foi um escritor prolífico por toda a sua vida. Durante os anos de 1870 a 1890, em especial, escreveu em quase todos os ramos literários possíveis; tal época de profunda produção literária se confunde com os anos em que exerceu a função de bibliotecário do Senado francês — de 1876 a 1890. Ao todo escreveu cerca de 42 obras, entre poesia, romances, críticas literárias, sociais, biografias e história comparada.
Uma característica especial desse francês — e por isso ele é tema desta coluna — foi a defesa dura da liberdade política e de consciência do homem, misturada à sua visão confusa ao atuar politicamente na França de seus dias. Suas críticas eram um pot-pourri entre um liberalismo clássico ao estilo inglês, misturado a um humanismo ao estilo francês de Voltaire e Rebelais. Em 1920, filiou-se ao partido comunista francês, o que não daria muito certo, ao final, pois France era odiado tanto pelos conservadores católicos quanto pelos comunistas, por sua notável independência intelectual. Os católicos o criticavam por suas opiniões ácidas contra a Igreja e o clero, em especial, por sua quase-militância em favor da separação de Igreja e do Estado — essa pauta era muito quente naquela França dividida da segunda metade dos anos 1800. O católico e ótimo escritor Georges Bernanos chegou a satirizá-lo em seu romance Sob o Sol de Satã — livraço, diga-se de passagem. A esquerda, por sua via, criticava-o por suas opiniões públicas contrárias a União Soviética e a Stálin; ele chegou, inclusive, a ser proibido formalmente de publicar em revistas e jornais comunistas. Na verdade, sua crítica ao comunismo bolchevique se deu logo após uma inicial adesão e encantamento com a Revolução Bolchevique, de 1917. Todavia, não demorou para que o autor francês visse naquela “rebelião russa” um ininterrupto e crescente movimento de totalitarismo assustador.
A independência intelectual de Anatole France
Anatole France era, na verdade, um espírito erudito que se negava a quaisquer movimentos de massificação da consciência e objetificação do homem por causas e ideologias. Era um convicto humanista de esquerda, mas também cultuava publicamente o legado filosófico e artístico do cristianismo. Era laicista, mas acreditava que, sem os valores e o simbolismo legados do catolicismo, a civilização logo ruiria como um castelo de cartas. Por fim, tinha aquela dose de independência que desagradava a todos, a todos mesmo.
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Quanto ao núcleo de sua filosofia, era um humanista puro, do tipo difícil de se encontrar hoje, defensor real da liberdade e da autonomia racional do indivíduo, ao bom e velho estilo iluminista francês de outrora. Na política, era um antitotalitarista “puro sangue” e um defensor aberto da estatização dos meios de produção; ainda que, em vida, tenha se filiado ao comunismo, movimento que logo que se tornaria, ao lado do nazifascismo, expressão máxima do totalitarismo mais bizarro de todos os tempos, manteve sua independência intelectual e sua capacidade crítica de todos os panteões políticos que o cercavam. Esse paradoxo, ou talvez contradição mesmo, se deu por sua abertura — típica dos franceses — a se posicionarem e se engajarem publicamente sempre, sobre quaisquer imbróglios políticos e sociais de seus dias. A prudência política, cá entre nós, desde a famosa Revolução Francesa, foi abertamente descartada do pacote de virtudes públicas cultuada pelos franceses. Se France foi afoito politicamente, quanto aos valores liberais que defendia manteve antes uma heróica coerência até o final de sua vida.
Livros realistas
Seus últimos romances, por exemplo, são críticas diretas ao progressismo afoito que a esquerda tentava forçar a Europa a adotar a todo custo, no início do século 20. Em especial, destaco aqui o primeiro livro que li de Anatole, A Rebelião dos Anjos, que foi também o último romance escrito pelo autor, em 1914. Um livro profundo e filosoficamente crítico ao comunismo e sua busca por uma utopia política. As ideias de que os comunistas traziam em si, por simples afiliação de ideias e agendas políticas, uma pureza política genuína e inconteste, que suas intenções eram as mais belas possíveis, que o fim que alcançariam com seus roteiros ideológicos seria inevitavelmente o paraíso terreno, são profundamente satirizadas e criticadas com um vigor renovado no referido livro. Das obras críticas de Anatole, inclusive entre aqueles textos não ficcionais, esse para mim continua sendo o mais crítico deles. O segundo livro que li do autor foi Os Deuses Têm Sede, um romance histórico que visa a destrinchar a mente de um fanático revolucionário no momento seguinte à tomada do poder pelos revoltosos da Revolução Francesa. Com profundo teor psicológico e histórico, o romance investiga a psique do protagonista Évariste Gamelin, pintor pobre que não consegue fazer vingar suas artes, ao mesmo tempo, um devoto revolucionário que, por isso, e pelas amizades que acabou cultuando entre os ricos que abasteciam os comitês revolucionários, torna-se jurado de uma corte revolucionária de Paris que buscava punir militares desertores, generais supostamente incompetentes, contrarrevolucionários e traidores da pátria francesa. O livro nos mostra como um “qualquer”, imbuído de poder e evidente cegueira ideológica, poderia tornar-se um ditador inveterado, um carrasco de dar arrepios em inquisidores de outrora.
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Permitam-me ficar mais um pouco nessa obra ‒ Os Deuses Têm Sede. O título do livro não é nada poético ou meramente simbólico. Ele é antes realista e diz tudo que a obra nos mostrará, isto é, como naqueles dias de revolução se seguiu uma espécie de histeria coletiva que, ao menor das infrações, onde qualquer frase mal colocada poderia se tornar uma passagem só de ida para a recém-inaugurada máquina de morticínio, a famosa guilhotina; naqueles dias em cada palavra, ato e pensamento eram pesados na balança moral dos revolucionários, havia uma sede de sangue que servia de combustível para a sonhada sociedade utópica onde liberdade, igual e fraternidade se trancariam numa roupagem nova para um novo homem nunca antes visto. Ao misturar uma crítica ao catolicismo francês e ao regime revolucionário, Anatole mostra-nos que aquele racionalismo que os revolucionários cultuavam como motor iluminista de esclarecimento e ascensão do espírito humano estava agora no patamar de uma nova religião, e o pior, muito mais irracional e caricata do que o catolicismo clerical que os revolucionários aboliram com fúria e furor. Se a irracionalidade era o motivo do embrutecimento do homem e sua consciência no antigo regime, os dogmas e as censuras diversas no novo regime tornavam a sociedade tão ou mais refém da escuridão dogmática e do mito nos dias que se seguiam à queda da Bastilha.
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Naquele texto, em forma de romance, Anatole France se une ao ensaio crítico de Edmund Burke, Reflexões Sobre a Revolução na França. E, tecendo uma rede de críticas profundas e coesas à mentalidade progressista dos revolucionários, mostra-nos que o humanismo que inspirou e guiou os primeiros passos da revolução logo tornou-se um dos episódios mais bizarros de desumanismos presenciados até então. Aquilo que Burke denunciava como tragédia iminente, France, em seu romance, denunciou como tragédia consumada. Devido ao seu trabalho como bibliotecário do Senado francês, Anatole ambientou o romance de forma profundamente histórica e assertiva, suas referências e estudos dos “anos de terror” foram grandiosos, tendo acesso aberto a documentos que outros não teriam. Os Deuses Têm Sede, assim, se torna um texto também de estudo.
O francês ganhou um Nobel
Em 1921, apenas três anos antes de sua morte, recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Anatole France foi, para mim, uma grata surpresa de sebo. Seu livro A Rebelião do Anjos foi um achado numa das minhas andanças por essas velhas catedrais dos livros em Juiz de Fora em 2019; recomendo vividamente também O Crime de Sylvestre Bonnard, À Sombra do Olmo e O Lírio Vermelho. Anatole me parece ser o típico autor que entrega tudo o que pensa e é; em seus textos, cada livro, independentemente de qual estilo literário esteja no momento sendo explorado, ele deixa porções generosas de suas ideias; e, se foi afoito e até mesmo confuso em suas atuações políticas — de fato foi —, manteve-se centrado e convicto quando a pauta era os seus valores e princípios. Sua independência intelectual, luta pela liberdade de consciência individual e profunda capacidade de oposição ao totalitarismo político são aquelas lutas louváveis que provavelmente nos tornaria amigos de trincheira mesmo sendo opositores nos debates de tabernas. Em tempos nos quais “ser de esquerda” é quase sinônimo de submissão intelectual, afogamento de convicções morais, conhecer Anatole France, um literato de alto calibre, profundamente influenciado pelas visões filosóficas do iluminismo francês, mas que não vendeu seus valores por um progressismo raso, e nem negociou no mercado ideológico mais próximo as liberdades fundamentais do homem, é tão necessário quanto reconfortante.
Fui me identificando com Anatole France até o momento que defende “a estatização dos meios de produção”. Mas ainda assim gostei do cara. Sua independência de ideias é comovente. Acho que vou ler o livro Os Deuses têm Sede.
O discurso do Comunismon é perfeito. So que qdo assumem o poder não conseguem se sustentar exceto por regime Autoritário.