Eu não sou um grande amante do cinema, tal como gostaria de ser. Minha praia são os livros. No entanto, há filmes que me marcaram profundamente, não apenas pelo valor artístico, mas pela carga emocional que carregam e pela forma como se entrelaçaram com a minha história. Por exemplo, lembro-me de ter assistido ao Titanic no cinema com minha mãe e meu pai, numa tarde gostosa de passeio ao shopping.
Lembro-me também de ter assistido ao Kung Fu Panda com minha irmã, na TV da sala da casa da minha avó, justamente no dia em que a minha velhinha teve que ser internada às pressas para corrigir um deslocamento da sua prótese femoral. Naquele dia, eu havia sido encarregado de cuidar da minha irmãzinha: então peguei um dinheiro que meu pai tinha nos dado, fomos comprar pães, salsichas e molho de tomate; foi uma noite gulosa e feliz em companhia do panda lutador — apesar do susto com a vovó. Por último, teve o famigerado “dia de pai e filho”, quando meu velho, um confesso fã de Will Smith desde Independence Day, me chamou para assistir a um “filme para homens” que ele tinha acabado de alugar. Ele dispensou minha mãe, trouxe o guaraná de 2 litros, o balde de pipoca, e assistimos ao Eu Sou a Lenda.
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Foi por essa boa lembrança que, na última feira da USP, eu adquiri o livro Eu Sou a Lenda (Aleph), de Richard Matheson. Eu, quase literalmente, devorei a obra em quatro dias de leitura. Defensor que sou da “literatura como entretenimento”, esse foi um dos casos que, confesso, não pesquisei sobre o entorno do livro e do autor antes de começar a ler. Eu o fiz, parte pela memória do filme com meu pai, parte porque tinha que cumprir minha cota de livros de terror que estabeleci no começo deste ano.
Qual foi minha surpresa ao me deparar com um livro extremamente bem construído e escrito, com descrições diretas e altamente reflexivas. Sem desperdiçar palavras e nem poupar-nos de sensações claustrofóbicas, Richard Matheson não escreveu um livro somente para os leitores vorazes por diversão rápida e terror clichê, ele estava claramente disposto a entregar-nos antes uma obra de profundidade filosófica e de entretenimento complexo.
Lá pelo meio do livro, lembro-me de pensar: “Caramba, eu dava muito pouco por este livro, e agora estou aqui, surpreendido pelo autor sobre o qual tive preguiça de pesquisar ao pegar o livro da estante.” Para quem lê bastante, sabe que surpreender-se com um livro, ou um autor, é uma das sensações mais prazerosas que existem na literatura; é como descobrir um tesouro que muitos passam por cima, pisam, e nem sequer notam, e você, por algum motivo, encontra e devolve seu valor real.
Mas permitam-me falar um pouco da obra, cuja primeira edição data de 1954. O texto combina elementos de sobrevivência pós-apocalíptica, introspecção psicológica e reflexões filosóficas sobre a condição humana. Ambientado em um mundo devastado por uma pandemia que transformou a humanidade em vampiros, o romance acompanha a solitária luta de Robert Neville, o suposto último humano sobrevivente. Neville era um operário comum em Los Angeles antes da deflagração pandêmica, e agora, depois da morte da filha e da esposa, vive isolado e bêbado de whisky em sua casa fortificada, resistindo aos ataques noturnos das criaturas vampíricas que antes eram seus amigos, vizinhos e familiares. Durante o dia, ele sai em busca de suprimentos e caça vampiros adormecidos com estacas, enquanto tenta entender cientificamente a origem da praga. O contraste entre sua rotina metódica e o caos ao seu redor cria uma narrativa tensa e angustiante. Entrevemos assim, desde o início do texto, o dilema que envolverá a trama até a última linha, isto é, a luta de um homem para manter alguma ordem e valores ante um mundo esfarelado que, após ruir, dispensa qualquer conceito de norma e moral.
À medida que a história avança, Matheson aprofunda a solidão de Neville, mostrando os efeitos devastadores do isolamento, da perda e do constante estado de alerta. O autor consegue, em pequenos capítulos, mostrar a degradação mental gerada pelo isolamento absoluto, que, longe de ser uma queda brusca de sanidade, vive entre agonizantes altos e baixos de esperança e desilusão. O protagonista é atormentado por memórias de sua família e pelos dilemas morais de sua luta contra os vampiros, que ele vê como monstros, mas que, eventualmente, se revelam mais complexos do que ele imagina.
É justamente aí que está um dos pontos altos da obra — além da narrativa profundamente psicológica já citada: os “monstros” são complexos e dinâmicos, demandam uma investigação do protagonista, mas também do leitor. Não há preguiça em Matheson aqui, ele definitivamente escreve algo diferente daquele típico horror novel convencional da década de 1950 a 1970, e, para isso, ele dispensou tanto o horror comercial de estilo hollywoodiano, recheado de clichês e exageros gráficos, bem como abriu mão do uso de um lirismo requentado de Edgar Allan Poe, muito comum em autores que buscavam reconhecimento literário do grande mainstream editorial naqueles dias.
O livro é, assim, mais que uma sucessão de espantos e tensões, é antes uma exploração sofisticada daquilo que define a humanidade. Neville, inicialmente, representa a última fagulha do que consideramos humano, mas, em sua tentativa de sobreviver, ele se torna, para os vampiros, também um monstro implacável. Numa releitura de Frankestein, não sei se consciente, Matheson inverte de forma genial a perspectiva tradicional do horror, questionando quem realmente é o “outro” ou o “monstro” — aquele que resiste e mantém sua perspectiva e dogmas intactos mesmo que seja o último defensor desse status quo, ou aquele que se adapta em meio às adversidades brutais, que revoluciona e dá novo sentido às coisas seguindo adiante com o que se tem em mãos, mesmo que o que se tenha em mãos e em mente seja brutal e completamente bárbaro.
Matheson nos oferta, assim, um paradoxo profundo, dois times pelos quais torcer e aos quais aderir, lados que realmente nos fazem pensar e que, até agora, me deixam em profunda reflexão, pois temos, com certeza, um pouco de ambos. Seríamos fiéis defensores da tradicional humanidade, de seus valores e ciências, ainda que fôssemos o último homem vivo e consciente de tais princípios? Ou abraçaríamos sem resistência uma nova versão de homem, aquele adaptado depois de uma decadência brutal, sobrevivente de uma realidade fragmentada e doente, uma nova geração responsável por construir um novo sentido de “humanidade”, ainda que por meio de um start profundamente desumano. Defenderíamos, por fim, qual forma de reforma: a reforma gradual e lenta, típica da evolução tradicional da humanidade, ou a revolução brusca, partindo violentamente do abandono paradigmático do que foi um dia a humanidade, em busca de uma construção nova, apartada das velhas tradições éticas.
Eu Sou a Lenda é uma obra seminal que influenciou profundamente o gênero pós-apocalíptico e as narrativas sobre pandemias na literatura mundial. Entre os influenciados, está Stephen King, que assina o prefácio da edição que li. O livro, além disso, influenciou roteiros consagrados de várias adaptações cinematográficas, como The Last Man on Earth (1964), The Omega Man (1971) e Eu Sou a Lenda (2007), aquele com Will Smith. Cada versão reinterpreta os temas do livro, mas é bom notar que nenhuma delas captura totalmente sua complexidade psicológica e filosófica — sim, fiz questão de assistir aos três.
Eu Sou a Lenda não é apenas uma história de terror ou ficção científica, é uma meditação profunda sobre a solidão, a moralidade e a redefinição do que significa ser humano em uma realidade irremediavelmente decadente, onde princípios, sociedade e moralidade são colocados em xeque. “Há valores quando ninguém está olhando?”, parece nos questionar diretamente Matheson. Por fim, o autor desafia o leitor a repensar as noções de normalidade e monstruosidade em um mundo decaído. É, sem dúvida, um clássico atemporal, que, confesso, não sabia ter tal peso até lê-lo. Will Smith voltará em 2026 com Eu sou a Lenda 2. Então esta é uma boa hora para beber da fonte antes de assistir à continuação do filme de 2007. Um bom livro para o fim de ano, caso queira embarcar em uma leitura viciante e profunda, feita para iniciantes e experientes, um real clássico em toda sua entonação literária.