Pessoalmente penso a literatura ficcional como uma arte sem viés, e isso não se trata de uma inocência prévia, nem de supor que autores como Jorge Amado e Máximo Gorki, ou Ayn Rand e Mario Vargas Llosa não transmitam seus pontos de vistas políticos em seus romances. Trata-se antes de uma postura consciente de leitor maduro que gosto de imaginar que tenho. Gosto de assumir a leitura de um livro tal como Lúcia, em As crônicas de Nárnia, que se via diante do guarda-roupa que a levava para outro mundo, isto é, não faço pré-análises do fabricante do guarda-roupa nem fico questionando quais mensagens e impulsos de meu subconsciente estão ali naquele instante, apenas entro no móvel e me deixo carregar pela aventura. Posteriormente, me aprofundo no autor, quem sabe até compro alguma biografia para entender os meandros de suas ideias, mas só depois. Sei que soa poético para alguns — quiçá, patético —, mas é bem mais do que poético — e patético —, é antes uma atitude extremamente pragmática e libertadora: o livro pelo livro, apesar do que tentaram fazer dele posteriormente, apesar das próprias intenções do autor. Essa é a minha regra pessoal antes de abrir uma obra.
Mas não se iludam, faço sim uma curadoria do que irei ler, não sou daqueles que julgam um romance de Fiodór Dostoiévski com o mesmo peso literário de um suspense de Joël Dicker; meu tempo, hoje em dia, é caro para aqueles que me pagam para fazer o que eu faço, então filtrar minhas leituras é um dos meus afazeres mais constantes. Mas o ponto aqui é outro, falo da atitude mental que não devemos ter diante de um romance determinado: a de pré-condenar ou de pré-louvar um texto sem antes entrar nele, entender suas vias, estruturas e questões.
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Darei um exemplo pessoal aos senhores; fui aluno de um importante crítico literário brasileiro, ele odiava Victor Hugo, pois julgava-o enfadonho, prolixo e demasiado ideológico, e, por admiração ao professor, sem mesmo ter lido uma única obra do francês, adotei previamente a sua postura ante os livros de Hugo. O que nele era uma convicção após uma análise das obras do francês, em mim era puro preconceito e burrice. Certa vez ganhei de uma ex-namorada a linda edição de Os miseráveis — do dito Victor Hugo — editado pela extinta Cosac&Naify. Lembro-me de consumir com ferocidade e fascinação as páginas daquele livro, a história de redenção de Jean Valjean, de expiação e de luta por um caráter genuíno e bom envolveram-me de tal forma que, pela primeira vez em minha vida, chorei lendo um livro — me deixem, olha o que fizeram com Cossete.
Ler e absorver
O meu professor, todavia, tinha certa razão. Centenas de socialistas, após o lançamento do livro em 1862, usaram a obra como chancela e fonte de inspiração para suas lutas políticas à esquerda — o prefaciador da edição da Cosac&Naify, na ânsia de ganhar estrelinhas ideológicas, não deixou tal tendência falhar. Mas a obra em si transpõe o cenário da Revolução Francesa que o autor emulou, ela tratou também do Homem como um todo, da angústia dos indivíduos que se encontram na penúria existencial, carregados por tendências que lhes fogem, pela fome ou pelas pressões sociais ao abismo moral e social. Victor Hugo mostra ali, como poucos o fizeram na literatura mundial, como funciona a psique de um homem que se encontra livre, porém constantemente pré-julgado por seus erros passados. Verdadeiramente contrito e até confuso pela bondade alheia e gratuita — de um bispo —, mas eternamente flamejado pelos desejos paradoxais de justiça e pela vergonha.
É fácil imaginar que Os miseráveis tenha sido escrito para louvar os movimentos revolucionários franceses, dando às massas jacobinas um fundo simbólico da miséria humana a fim de somar retoricamente à revolta moral que impelia os adoradores da guilhotina, mas é fato também que Victor Hugo, talvez até mesmo sem querer, transpôs essa efemeridade política e nos entregou um tratado psicológico profundo, um dos escritos mais humanos de seus dias.
A pobreza ali descrita traz o seu problema fundamental, que atravessa o mero ajuste político e os cartazes sindicais, as sanhas partidárias e as lutas pelo poder, ou seja, o problema da dignidade do homem que tem em sua existência a maior riqueza, o ser metafísico que depende miseravelmente do pão imanente para se manter vivo.
Essa, aliás, foi a mesma temática de outra obra que eu literariamente louvo, Oliver Twist de Charles Dickens — e esse não pode ser chamado de socialista, diga-se de passagem. Dickens descreve a vida de um órfão assolado pela miséria social desde o berço, renegado pelo orfanato paroquial, pelos seus cuidadores, pelos juízes de guarda, pela sociedade como um todo, que, após não aguentar mais as violências sofridas foge para Londres, onde, longe dos cuidadores relapsos, se encontra circundado por um grupo de batedores que o adotam para fazer dele um ladrão também. A vida de Oliver é uma perfeita descrição de como a sociedade, seus sistemas falhos e a falta de caridade dos indivíduos podem fazer um homem inocente sucumbir em um caminho de podridão moral e criminal. Mas também é — e essa parte geralmente os resenhistas encobrem — a história de resiliência de um jovem que não se deixou dobrar moralmente ante as opressões sofridas e pelas misérias constantes vividas, pois Oliver escolhe sempre o caminho correto apesar de tudo, e passa o livro todo tentando se acertar e ser feliz dentro do que é esperado de um bom homem inglês. Fim alcançado, aliás, com a ajuda de uma boa alma que enxerga no garoto mais que um delinquente e do próprio sistema policial que um dia o acossou.
O perigo da ideologia
Oliver Twist e Os miseráveis, assim, são livros que tratam da mesma miséria humana, tanto econômica como moral, sem se renderem ao coro panfletário das ideologias. Esses dois livros são apenas dois exemplos de que podemos ler literaturas de ótima qualidade somente pelo engrandecimento humano e espiritual, sem buscar a cada obra que tiramos da estante um trago de política e conforto ideológico. São provas, aliás, de que podemos falar dos males da miséria existencial e econômica dos homens sem passar pelo pedantismo panfletário, pela sanha carniceira de uma esquerda parasitária de desgraças.
Experimentem ler por ler, deixar-se absorver pela trama sem caçar referências que endossem seus pontos de vista. Se Victor Hugo foi louvado por quase todos os socialistas modernos e contemporâneos, Dickens foi por vários conservadores — Chesterton, por exemplo, considerava-o um dos maiores escritores de todos os tempos. Não se prenda às ideologias para ler um bom livro de ficção. Faça isso posteriormente, se quiseres, encontre numa segunda viagem o aparato crítico do romance e aquilo que ele pode colaborar para uma análise ácida da sociedade, mas na primeira ida, vá sem maiores porquês.
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Um conservador que deixa de ler Virgínia Wolff por suas opiniões feministas, ou um socialista que não lê Nelson Rodrigues porque ele era “conservador”, só perde em profundidade e erudição; a fidelidade cega tende a nos afastar da imensidão da arte literária. O risco de lermos bons romances com nossos óculos ideológicos fideístas já está ilustrado atualmente, como nos recentes casos do cancelamento do clássico E o vento levou, de Margaret Mitchell, e de O coração de nanquim de J. K. Rowling — este último publicado sob o pseudônimo de Robert Galbraith.
Quando nos sentamos confortavelmente numa poltrona, pegamos um bom romance, talvez até acompanhado de uma boa xícara de café. Naquele momento, meus caros, a ideologia que carregamos como apêndice mental é completamente dispensável, e é bom que seja assim. Deixe isso para depois, e, se esse depois nem chegar também, não tem problema, a viagem terá valido a pena mesmo assim, tenho certeza.