A história do Estado moderno é a história do aumento do poder do Estado. Trata-se, portanto, da história da criação e da ampliação dos mecanismos de controle da vida em sociedade. Isso significa que o desenvolvimento do Estado teve como corolário a redução das liberdades individuais sob justificativas diversas de acordo com cada época. Hoje, no mundo, usa-se a pandemia do coronavírus. Depois, como no passado, será qualquer outro pretexto mais ou menos justificável.
É curioso que faça parte do imaginário popular e, pior, equívoco ratificado por professores, a ideia falsa segundo a qual as antigas monarquias, mesmo as absolutas, eram mais violadoras das liberdades do que o Estado moderno. O fato é que, embora os poderes políticos estivessem concentrados em suas mãos, nenhum rei tinha tantos poderes e tantos mecanismos para intervenções diversas quanto os que hoje estão à disposição de líderes de países democráticos.
A natureza expansionista do Estado, segundo Bertrand de Jouvenel em seu livro Poder – História Natural do Seu Crescimento, significa que o poder nas mãos dos políticos e dos agentes estatais tende a ficar cada vez maior — e foi assim ao longo da história.
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Em determinados casos é preferível a revogação ou derrogação do que a criação de mais leis
As duas guerras mundiais no século 20 aceleraram essa expansão e anabolizaram o poder político. O crescimento se deu de forma tão engenhosa, dotando o aparelho governamental de instrumentos operacionais, legais e jurídicos, que as tentativas para contê-lo ou não têm eficácia adequada ou são neutralizadas por outras normas.
A própria criação de leis para reduzir os poderes das instituições políticas pode não funcionar a contento. Em determinados casos é preferível a revogação ou derrogação do que a criação de mais leis. Mesmo assim, todo o esforço deve ser dirigido para estabelecer limites prudentes em forma de “restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos” para controlar o poder e as paixões humanas. São essas “redes de restrições sobre a vontade e o apetite” que, segundo Russell Kirk em A Política da Prudência (É Realizações, 2013), o conservador defende “como instrumentos da liberdade e da ordem”.
No âmbito jurídico, segundo o jurista brasileiro Ibsen Noronha em seu livro Da Contra-revolução e Seus Inimigos (Editora Resistência Cultural, 2018), o Estado onipotente passou a ser justificado a partir da hipertrofia da lei como única fonte do Direito, da negação da especulação filosófica do Direito, do esvaziamento do lastro no direito natural, da redução do conceito de Direito a “um comando imposto pelo legislador”.
Crise política é o padrão da nossa história desde o golpe militar republicano que instituiu o presidencialismo em 15 de novembro de 1889
O conhecimento desse problema nos permite ter uma percepção aguçada para identificar leis e decisões políticas que, em nome da igualdade ou de qualquer outra coisa, propõem “organizar a sociedade para o bem maior de todos” a partir do controle, marginalização ou proibição de determinadas atividades humanas. O seu resultado é, entretanto, um “desprezo pela liberdade”, segundo observou Roger Scruton em seu Como Ser um Conservador (Editora Record, 2015).
Diante desse panorama hostil, constituído por Estados mais ou menos intervencionistas, dos totalitários aos democráticos, faz-se necessário restaurar ou desenvolver a liberdade não como categoria ou princípio absoluto, mas como prática concreta de uma comunidade. O valor que a ela atribuímos orienta nossa conduta individual e a cobrança que deve ser feita sobre os políticos. Um chão comum de valorização da liberdade no seio da sociedade permite que reconheçamos seus amigos e inimigos, que apoiemos seus defensores e rejeitemos seus adversários — dentro e fora da política.
Sob uma perspectiva conservadora, a liberdade está vinculada à ordem (transcendental, moral, política). Em vários países são perceptíveis os graus distintos de desordem que antecedem a pandemia. No Brasil, a desordem é mais aguda porque mais antiga, porque é a natureza da própria ordem que, contraditoriamente, se desenvolve desde o golpe militar republicano que instituiu o presidencialismo em 15 de novembro de 1889. Crise política é o padrão de nossa história desde então, não sua exceção.
Perante o fracasso da política, o golpe militar é a solução mais fácil de ser proposta e a mais difícil de ser revertida
Atualmente, soma-se à manifesta inabilidade e incompetência dos políticos diante do novo coronavírus a desordem institucional provocada pelos representantes e integrantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (federal, estadual, municipal). É igualmente inaceitável que, a cada crise, quem quer que seja, tanto mais grave se for um presidente, considere como solução o uso das Forças Armadas, seja invocando o artigo 142 da Constituição ou, sem usar eufemismo, propondo um golpe militar.
Que fique claro: todas as intervenções militares no Brasil, a começar pela de 1889, produziram consequências negativas tão profundas que só ignorância histórica ou delírio podem explicar a defesa de tal insanidade. Perante o fracasso da política, o golpe militar é a solução mais fácil de ser proposta e a mais difícil de ser revertida.
Para quem se considera de direita, tanto mais grave, pois foi o regime militar de 1964 a 1985 que destruiu a direita conservadora e liberal (intelectual e política) existente à época. O símbolo maior desse processo talvez tenha sido Carlos Lacerda, que apoiou a revolução e foi logo depois guilhotinado por ela.
Eis o imperativo categórico: liberdade é conquista diária, luta árdua contra todos aqueles que tentam relativizá-la ou aboli-la sob a alegação de que é para nosso bem. A liberdade só é um direito garantido por lei porque na tipificação reside a ideia de que ao Estado cabe protegê-la, não concedê-la muito menos destruí-la.
Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário serão sempre uma ameaça às liberdades se a sociedade não impedir suas eventuais ou sistemáticas tentativas de violá-las. Se não lutarmos diariamente por nossa liberdade, que é uma conquista não um mero direito, repito o que já escrevi: quando nos dermos conta, não haverá nada mais a perder porque não haverá nada mais por que lutar.
Leia também nesta edição: “O gabinete da censura”, de Ana Paula Henkel
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Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Texto “isentão, prudente e sofisticado”!
A maioria esmagadora dos brasileiros quer a democracia, mas uma democracia em sua completude, não pela metade. A maior indignação é vê-la solapada pelas próprias instituições que, por vezes, querem passar por cima da autoridade umas das outras. Isso desrespeita totalmente o nosso sistema de freios e contrapesos, e agride severamente a almejada harmonia entre os três poderes. Em tese, nenhum Poder pode deter mais força do que o outro, mas o que vemos é um Judiciário poderosíssimo, um legislativo que finge não haver executivo, e um executivo acanhado no canto, espremido pelos dois primeiros. Isso sim é pior do que qualquer pedido de 142 ou golpe etc. No dia em que essa harmonia for de fato consagrada na prática, permitindo que cada poder, dentro da legalidade, atue com liberdade e pujança máxima, que faça exatamente aquilo que lhe é atribuído a fazer, buscando sempre o REAL interesse público, teremos uma democracia completa.
Concordo plenamente Natan. Que pese a inabilidade do Presidente em algumas falas, o Congresso e STF estão nitidamente em oposição.
Texto, como sempre, primoroso do Bruno, particularmente quando diz que a “liberdade só é um direito garantido por lei porque na tipificação reside a ideia de que ao Estado cabe protegê-la, não concedê-la muito menos destruí-la.” Infelizmente, a noção que temos no Brasil é de que a liberdade que temos nos é concedida pelo Estado.
O povo brasileiro está mais preocupado em ter comida na mesa, poder sair de casa sem ser assaltado ou assassinado, ver um corrupto ir pra cadeia e ficar preso de verdade, está preocupado com sua saúde, com a escola dos filhos… do que com a democracia.
Que democracia é essa onde a anarquia impera ? Que democracia é essa onde ano após ano só faz aumentar a desigualdade no país ?
Democracia precisa ser alimentada e não destruída pelos poderes executivo, legislativo e judiciário.
Parabéns pelo excelente texto. A democracia é espetacular porque tem que ser protegida por toda a população. Exige nossa atenção diária.
Podemos teorizar sobre as várias visões de mundo ideal, e liberdades ou quem vai vijiá-la, ou mesmo se o Art. 142 (conf. está na Constituição) é um exagero para por fim à intromissão de um poder sobre o outro, etc. Porém, após o comunismo se instalar de vez nalgum país, todo esse desfile de sabedoria dos escritores que correm pra por panos quentes em quaisquer insatisfações, que correm pra avisar às Forças Armadas pra se conterem, tudo vira nada, vira pó. Foi assim na China, Cuba, Coreia do Norte, Hong Kong está sendo esmagada pela bota comunista, Taiwan já sofre sérias ameaças, nossos deputados já receberam pito da ditadura chinesa sobre como proceder em relação a Taiwan e devemos ficar dormindo?!?!
Somente uma pergunta Bruno: Qual solução você propõe para derrotarmos esses extremistas que fazem uso dessa “suprema e tirânica corte de ditadores?
Tá aí… Eu ía perguntar a mesma “coisa”!
Na mosca! O ótimo texto omite aquilo que, em minha opinião, é essencial. Acredito que não há nenhuma justificativa para desconsiderar o uso da força sempre que for necessário. A resposta deve ser rigorosamente equilibrada com a ação que a tenha provocado. A ataques “pacíficos”, respostas negociadas pelo debate. Para ataques “violentos” contra a liberdade, respostas violentas. A violência é atávica na natureza humana e deve, também, poder ser expressada.
O golpe fabricado pela Peste Chinesa é COMUNISTA e GLOBALISTA com todos os matizes totalitários( perda das liberdades individuais, criação de decretos governamentais em número expressivo, uso de coerção estatal, fechamento inédito das Igrejas Católicas). A censura às opiniões contrárias ao politicamente correto e da agenda globalista é apenas um meio de concentrar o poder nas mãos do Estado Totalitário. A imprensa é um dos agentes colaboradores, que estão contribuindo para a implementação dessa agenda totalitária.
O texto é excelente mas com o precário nível de amadurecimento político que temos no Brasil, seja de esquerda ou direita, a sua aplicação aqui se torna praticamente uma utopia. Os EUA tiveram essa compreensão desde o início por isso se transformaram na nação que é. No Brasil somos primitivos e fadados a mediocridade terceiro mundista.
Excelente texto, sobretudo pelo alerta – mais do que necessário – aos ensaios golpistas à esquerda e à direita. Seja liberal, seja conservador, a saída nunca será pelo recrudescimento estatal ou pela desvalorização das instituições.
É preciso manter as instituições em bom funcionamento e reformar aquelas que demonstram problemas. Sempre de forma parcimoniosa.
Perfeito!
Um conhecido meu, com o qual convivi de perto durante algum tempo, advogado, lutou muito mas venceu na vida, como gostamos de dizer. E comprou mais de uma fazenda. Em uma delas, ao construir uma barragem, passaram a parede de concreto por cima da raiz de uma árvore que havia sido cortada. Com o tempo, a infiltração apodreceu a raiz, criou uma broca na base e implodiu a barragem. Creio que com os Estados, regimes e governos também seja assim. Construí-los ou edificá-los à base de falsas premissas levam ao mesmo destino da barragem da qual falo. Nos últimos sessenta anos tivemos o regime militar, cuja raiz apodreceu num determinado tempo. De lá para cá tivemos e vivemos ainda a nossa democracia, cuja raiz apodrece dia após dia. Penso que esta denominação “Democracia” precisa ser repensada. Gatos, ratos, jumentos, antas, todos juram de pés juntos a defesa da democracia. Quem entende quem?
Falar que “temos de lutar diariamente” não resolve, pois os inimigos estão lutando de forma suja. Se chutam abaixo da linha da cintura, têm que levar o troco, e já que a Constituição prevê no artigo 142 o uso das Forças Armadas pra corrigir os abusos, isso não é golpe militar.
Até porque, se fosse, não estaria na Constituição. O 142 está lá exatamente para impedir que um Poder (no caso atual o Judiciário, liderado pelo STF) rompa a ordem constitucional e avance sobre os outros Poderes. Retórica libertária não resolve esse problema. Concordo plenamente com você.
Interessante sua análise, no entanto temos um sistema eleitoral que nos coloca em desvantagem perante a classe política. Não temos voto distrital puro e muito menos recall. Isso torna-se um axioma que determina nosso calvário ao desenvolvimento social, moral, econômico, educacional, judicial e assim por diante. Precisamos pensar seriamente nisso .