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Giorgia Meloni, primeira ministra da Itália (à esquerda) e Riikka Purra, política finlandesa do Partido dos Verdadeiros Finlandeses (à direita)
Capa da Revista Oeste, edição 160. Mãe carrega uma lata de água na cabeça ao lado da filha na cidade de Guaribas, no Piauí, onde não existe água encanada e as pessoas vivem em situação precária. Foto de 2/02/2003, gestão Dilma Rousseff
Edição 102

A guerra que o Ocidente poderia ter evitado

Cerca de 40% do gás natural europeu vem dos gasodutos controlados por oligarcas russos que respondem diretamente a Putin

Flavio Morgenstern
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Havia uma grande preocupação entre os líderes da Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, em julho de 2018. Os presidentes dos países da organização, criada em 1949 para deter o avanço soviético, estavam empenhados em evitar uma grande ameaça, que poderia paralisar o mundo: o aquecimento global.

O encontro na Otan parecia assumir que a instituição vivia uma crise de identidade: qual era, afinal, o objetivo de uma aliança militar criada contra os russos se nenhum líder ocidental parecia ver mais os russos como inimigos? Sem discutir sequer estratégias, era mais um dos vários encontros de líderes para discursar para a mídia, falando de problemas que só interessam à elite.

Naqueles tempos que parecem antigos, Donald Trump quebrou mais uma vez o protocolo. Ao encontrar-se com o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, o então presidente norte-americano criticou o fato de a Alemanha pagar apenas 1% do seu PIB para a Otan, enquanto os EUA pagavam 4,2% de um PIB bem maior. O encontro inteiro, ao contrário do esperado, foi filmado para o público.

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Mas havia uma crítica mais pesada: a Alemanha trocava o carvão e a base nuclear de sua indústria por modelos verdes — mais de um quarto da sua geração de energia é eólica. Mas mesmo Angela Merkel, uma engenheira nuclear convertida ao ambientalismo radical, não deixou de importar gás da Rússia pelo gasoduto russo-alemão Nord Stream desde 2011. Em uma aliança militar, Trump falou de impostos norte-americanos — mas também de uma crise séria, já que a Alemanha e a França estavam de mãos atadas graças ao gás do Gigante Branco.

Segundo Trump, a Otan deveria proteger os países europeus de sua dependência da Rússia, pois enriquecer e dar poder ao seu “algoz” era inaceitável. Gerhard Schröder, ex-chanceler alemão, depois de passar pelo banco de investimentos Rothschild & Co, havia se tornado presidente do conselho da Nord Stream AG, o que Trump considerava um conflito de interesses. Stoltenberg apenas afirmou que a Otan negociar com a Rússia tornava-a mais forte.

Histórico de trapalhadas

Naquele ano, a guerra russo-georgiana completava uma década, sem muita clareza para a Otan de quais conclusões deveria tomar sobre o conflito. Em 2009, no ano seguinte da guerra, o então presidente norte-americano, Barack Obama, iniciava sua política de reaproximação com a Rússia, chamada de “Reset”, com um tratado prometendo “Um Novo Começo” a partir do ano seguinte. Hillary Clinton, a secretária de Estado, ficou encarregada de entregar, em Genebra, um simbólico botão vermelho ao decano da diplomacia russa, Serguei Lavrov, que ambos apertaram conjuntamente. Em uma gafe diplomática com caráter premonitório, além da palavra reset, estava escrito no botão também a transliteração para o russo — mas a palavra “peregruzka” inscrita, na verdade, significa “sobrecarregado”. Tal como a paciência russa com a fraqueza ocidental.

Líderes fracos facilitam ações de ditadores fortes

Este foi apenas mais um capítulo na longa série de erros do Ocidente — os países que podemos chamar de mais civilizados do mundo, hoje afogados em ideologia — ao lidar com o Grande Urso Branco que hoje ameaça a Ucrânia — e, por consequência, todo o mundo livre. Vladimir Putin havia aplicado seu conceito de “geografia sagrada”, uma interpretação do mundo a partir do poderio russo, que precisa ressurgir e “guiar” o planeta em um “novo começo” para o “século russo”. E viu na fraqueza de Obama, Hillary, Merkel e outros líderes ocidentais a prova suprema de que era hora de passar da economia para a ação militar.

O modelo de nacionalismo de Putin evoca um tribalismo primitivo não muito distante da mitologia reformada do nazismo, no qual os direitos individuais são sacrificados constantemente por uma mística “pátria mãe”. O apelo retórico a uma nova Rússia forte, anti-imperialista e antiliberal, encontra eco na esquerda radical que busca um controle da vida privada dos indivíduos como Lenin e Stalin o possuíam. Ao mesmo tempo, sua crítica à decadência ocidental e o retorno ao antigo Império Russo não raro granjeia apoio até mesmo na direita, totalmente desesperançosa de algum renascimento de valores espirituais no Ocidente.

Se Biden prometera, uma semana antes da invasão russa, que não envolveria tropas norte-americanas na Ucrânia (ao contrário de Síria, Líbia, Afeganistão, Iraque etc.), havia várias razões ocultas. Em primeiro lugar, o escândalo envolvendo o laptop de seu filho, Hunter Biden, entupido de segredos de Estado, que parecem incluir negociações das famílias Biden e Clinton com oligarcas ucranianos para lavagem de dinheiro do monopólio de gás na região. Mas também havia o fato de que a Europa está totalmente dependente da Rússia. Cerca de 40% do gás natural europeu vem dos gasodutos controlados por oligarcas russos que respondem diretamente a Putin.

Putin iniciou a guerra na Ucrânia alegando pensar na “segurança da Rússia” (o que é mais ou menos o mesmo que o Brasil se preocupar com a segurança contra o Suriname)

Nas duas últimas décadas, a Europa diminuiu a produção e a importação de energias fósseis e de fonte nuclear para evitar o “aquecimento global”. Mesmo a energia eólica ou solar, que depende do clima (e cujos componentes são chineses), precisa de gás de reserva para não gerar apagões nos países mais ricos da Europa. E o veto ambientalista à compra de gás natural liquefeito (GNL) gera total dependência da Rússia — em vez de poder comprar gás da América. Qual desses países iria destruir sua economia e sua política para proteger a Ucrânia neste momento? Gerhard Schröder, na última semana, insistiu que a União Europeia não cortasse vínculos com a Rússia. Quem irá admitir agora que Trump estava certo na Otan há longevos quatro anos?

Uma medida que teria refreado os ímpetos de Vladimir Putin é um tabu entre norte-americanos — e misteriosamente não é comentada na mídia brasileira: as sanções que Donald Trump havia aprovado ao gasoduto Nord Stream 2, que poderiam ter feito Putin pensar duas vezes antes de se enfiar em uma guerra custosa agora. Biden revogou as sanções tão logo chegou ao poder, enquanto Trump afirmava que o gasoduto russo-alemão havia sido “o maior erro” de Angela Merkel.

Para compensar a falta de gás nos EUA e na Europa, bastaria ter continuado com o projeto do oleoduto Keystone, entre o Canadá e a América, mas grupos ambientalistas pressionaram Obama, em 2015, contra o uso de combustíveis fósseis que “aumentam o aquecimento global”, freando deliberadamente a sua construção. Apesar de Trump ter tentado retomar o projeto em 2017, Biden assinou uma ordem executiva no ano passado revogando a permissão. Hoje, Putin continua com praticamente um monopólio sobre a energia europeia. Os civis ucranianos que estão sendo mortos ao menos não sofrem com o aquecimento global.

Guerra agora, aquecimento global fica para depois

Vladimir significa “aquele que possui o mundo”. Há um dito usado como frase de autoajuda de banheiro, mas sem o qual é difícil sobreviver no complexo tabuleiro geopolítico: é preciso conhecer o inimigo. Os líderes ocidentais recentes — Obama, Biden, Merkel, Macron, Trudeau, Boris e companhia — não parecem grandes estudiosos de alguém capaz de “possuir o mundo” como Vladimir Putin. O que parecia o menos culto de todos, Donald Trump, foi quem melhor soube lidar com os russos: tratá-los como aliados temporários contra o Estado Islâmico, e ao mesmo tempo bombardear bases sírias quando a Rússia usava seu poderio para favorecer um ditador como Assad. É de fato risível pensar em Macron estudando o eurasianismo, ou em Kamala Harris tentando compreender a relação de Putin com Heidegger ou com a escola perenialista — bases intelectuais da sua política.

Putin não é alguém simples: Obama, por exemplo, acreditava que podia simplesmente deixá-lo feliz com uma política de “reset”, crendo que estaria tratando com um igual em termos do mundo democrático e liberal. Mas Putin — e os russos em geral — não fala literalmente a mesma língua e não tem os mesmos conceitos e objetivos. As relações diplomáticas entre os dois logo azedaram, e o autocrata russo só foi se tornando cada vez mais poderoso.

Putin iniciou a guerra na Ucrânia alegando pensar na “segurança da Rússia” (o que é mais ou menos o mesmo que o Brasil se preocupar com a segurança contra o Suriname). Putin fala até do “direito” dos ucranianos de se submeterem à Rússia. Mas, enquanto o Ocidente poderia ter feito muitas coisas contra o projeto militar, cultural e político de Putin se começasse a estudá-lo e compreendê-lo, os russos simplesmente anexam cidades e invadem países com bombas.

Alguma hora será urgente que o Ocidente se preocupe menos com banheiros trans, identidade de gênero nas Forças Armadas e pronomes neutros (a emissora de televisão norte-americana CBS chegou a reclamar da “transfobia” que mantinha uma “mulher trans” em Kiev por conta de leis discriminatórias) e mais em entender o que de fato está matando as pessoas. Talvez esta guerra seja mais urgente para salvar a humanidade do que painéis solares para evitar o aquecimento global.

Leia também “A Ucrânia balança o mundo”

17 comentários
  1. Alberto Santa Cruz Coimbra
    Alberto Santa Cruz Coimbra

    Excelente artigo. Deixa clara a idéia da crueldade que é se fazer política com politicagem e idealismo acima dos interesses do povo eleitor. Trump tinha razão ao tentar defender os interesses dos pagadores de impostos americanos, mas a ideologia e a imposição de uma visão de mundo, associada às clássicas fraudes dos que não se contentam com derrota viraram o jogo e elegeram outra fraude.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Como os americanos devem estar morrendo de raiva por terem elegido o velho pedófilo e de saudades do Trump. Esse sim, um visionário que entendia o mundo melhor do que esses nojentos, decadentes, bichas, aprendizes de ditadores que governam o Ocidente.

  3. Fernando B. Monte-Serrat
    Fernando B. Monte-Serrat

    Parabéns pela análise equilibrada das tensões políticas da atualidade.

  4. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    Trump, the greatest President ever.

  5. Machado lson
    Machado lson

    Esses líderes ocidentais ñ passam de uns todes.
    Todes eles.

  6. JAIME KOPSTEIN
    JAIME KOPSTEIN

    Flávio, o artigo é instrutivo, Aprendi muito com ele. Grato. Mas acho que há dois pontos a considerar: a Russia foi invadida duas vezes, no passado, a segunda com a destruição de três Bélgicas em termos de população (acho que deve ter sido pior). Como vês o trauma residual disso? Comparar a Ucrânia com o Suriname não me parece válido: Macron, por exemplo nunca estacionaria tropas ali, para invadir o Brasil e destituir nosso Presidente. A Russia, eu acredito, não admite a ideia de ter tropas estacionadas em suas fronteiras, no caso da Ucrânia ir para a Nato . Sempre foi seu desejo, Russia, criar um buffer em torno de si contra Alemanha, A URSS fê-lo.

    1. Jorge Alberto de Souza
      Jorge Alberto de Souza

      Bem colocado.

  7. Silas Veloso
    Silas Veloso

    É isso!

  8. Marcos Antônio Braz lucas
    Marcos Antônio Braz lucas

    Excelente e realista reportagem.

  9. Thiago de a
    Thiago de a

    Muito bem escrito!!!!!

  10. Gustavo G. Junior
    Gustavo G. Junior

    Trump é um ogro, mas entende da coisa………… ; Bela reportagem

  11. Érico Ribeiro
    Érico Ribeiro

    É. A coisa tá russa…

  12. Altamirando Barreto Vieira
    Altamirando Barreto Vieira

    Não sei porque mas me parece que o autor evitou falar em Nova Ordem Mundial (NOM), embora se sinta nas entrelinhas que ele estava tendente a faze-lo. Atente-se para o último parágrafo.

    1. Erasmo Silvestre da Silva
      Erasmo Silvestre da Silva

      De tanta investida dos esquerdistas no mundo ocidental, o surrealismo virou realidade para todo mundo e chegar ao ponto que chegou de o horror da guerra ser solução

  13. Wilson Martins de Assis
    Wilson Martins de Assis

    Excelente reportagem. A midia está perdida com notícias fabricadas pelos dois lados e esquecendo o mais importante que são os passos do Putin. A OTAN está imobilizada.

  14. Ernesto Quast
    Ernesto Quast

    Ótima reportagem. Não sei se por ignorância ou mau-caráter, os países “verdes” deixam de utilizar combustíveis fósseis locais, que geram energia, poluição e empregos locais, para utilizar gás natural de origem fóssil da Rússia, gerando tudo exceto empregos locais. A mesma constatação se dará daqui a alguns anos, com relação às baterias de automóveis, na substituição de queima local (entre eles, o etanol, fonte renovável), pela geração de energia, às vezes por termoelétricas movidas a combustíveis fósseis e a destinação e toda a energia necessária para a separação de componentes, para reciclagem de baterias (se estas não forem apenas enterradas na África). Existem muitos indivíduos e empresas enriquecendo-se com as narrativas de proteção ao meio ambiente, mas a preocupação com o planeta não é a prioridade para essas pessoas físicas e jurídicas.

    1. Elvo Pigari Júnior
      Elvo Pigari Júnior

      Ótimo artigo !
      Show !
      Flávio e seu senso sempre incomum.

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