Em 29 de março de 2012, o então governador, Geraldo Alckmin (na época no PSDB e hoje no PSB), assinou a autorização para início das obras da futura Linha 17-Ouro do metrô de São Paulo. Diferentemente das outras linhas, esta seria operada em monotrilho. “Serão dois anos de obras, vamos correr o máximo para ficar pronto antes da Copa do Mundo”, anunciou Alckmin.
Dez anos depois, a obra de mobilidade que iria interligar parte da zona sul da cidade continua sendo uma promessa. O governo garante — de novo — que o início da operação do monotrilho deve sair até o início de 2023. Depois de uma década perdida, contudo, essa “garantia”, como a das últimas gestões tucanas, tem se mostrado equivalente a três vezes zero.
O triunfo que não ocorreu
O monotrilho é considerado um projeto de menor custo em relação ao metrô. Em um cálculo com base no valor operacional, atualmente a extensão em obras do monotrilho vai custar cerca de R$ 550 milhões por quilômetro. Como comparação, a Linha 6-Laranja do metrô (que vai ligar a zona norte ao centro da capital) tem previsão de gastos de R$ 15 bilhões — com um valor aproximado de R$ 1 bilhão por quilômetro.
O monotrilho é operado em uma via elevada, com trens movidos a eletricidade e pneus de borracha. Na época de seu anúncio, a proposta, então desconhecida no país, chegou a acumular nove processos na Justiça contrários à implantação. Associações de moradores da região argumentavam que o projeto degradaria o entorno, com impacto ambiental e urbanístico. “O tempo de execução era para ser um trunfo, o que não ocorreu”, disse o consultor em transportes Flamínio Fichmann, ao criticar o meio de transporte escolhido pelo governo paulista.
A obra é um raro caso de linha metroviária perimetral — quando o transporte corresponde a um traçado que não segue em direção ao centro da capital. Por conta dessa característica, ela tem potencial de distribuir o fluxo de passageiros da rede, além de encurtar viagens. A inclusão do monotrilho como uma das promessas para a Copa de 2014 ocorreu ainda em 2010. Na época, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, assinou uma série de compromissos para a capital paulista, prevendo obras de infraestrutura e de mobilidade para a cidade sediar o torneio.
Projeto derretido
Ao custo de aproximadamente R$ 3 bilhões, o traçado original da Linha 17-Ouro foi projetado para ter um pouco mais de 17 quilômetros de extensão, com 18 estações ao longo do trecho. A proposta era levar os passageiros do Aeroporto de Congonhas ao Estádio do Morumbi, ligando os extremos da zona sul com diversas conexões com outras linhas do metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.
A obra previa atender regiões de baixa renda, como as existentes nas imediações do Jabaquara e da Vila Santa Catarina e na comunidade de Paraisópolis, passando por bairros de classe média-alta, como Campo Belo e Panamby, além de eixos geradores de empregos, como as avenidas Chucri Zaidan e a própria Berrini. Sem falar na ligação com o Aeroporto de Congonhas. No entanto, o projeto foi derretendo ao longo dos anos, envolto em uma sucessão de trapalhadas que só evidenciam ainda mais a inépcia dos governantes com a gestão do dinheiro dos pagadores de impostos.
Em outubro de 2011, foi anunciado que o estádio que sediaria os jogos seria a Arena Corinthians (na época, em construção), em Itaquera, na zona leste, e não mais o Morumbi. Com isso, a construção da linha sofreu alterações, com redução de sua extensão. Ao mesmo tempo, os valores da obra aumentaram e os prazos foram sucessivamente ampliados. Sem o Estádio do Morumbi na jogada, o governo redesenhou o projeto e fatiou a Linha 17-Ouro em três trechos, ignorando a população que dependeria do transporte quando o serviço estivesse pronto.
“Em reprogramação”
Dos 17 quilômetros iniciais, foi eleito um “trecho prioritário”, somando oito estações em 8,3 quilômetros de vias. Agora, a linha está restrita ao trecho entre o Aeroporto de Congonhas e a Marginal do Rio Pinheiros. O custo é bem maior que o inicial: quase R$ 5 bilhões.
As outras duas fases, que ligariam os extremos da zona sul (de um lado, chegando à estação São Paulo–Morumbi, passando pela comunidade de Paraisópolis, e do outro, à estação Jabaquara), foram suspensas em 2015 e ainda não têm previsão de ser licitadas. A estratégia do governo foi dar prioridade ao trecho que já possuía obras “avançadas” antes de abrir novas frentes de trabalho. Atualmente, no site do Metrô, as duas futuras fases 2 e 3 aparecem com o seguinte status: “Em reprogramação”.
Na época, a Secretaria de Transportes Metropolitanos justificou o congelamento das obras por causa da troca do estádio que sediaria o evento. “Com a mudança da zona sul para a leste, o trecho estratégico da Linha-17 para a Copa do Mundo passou a ser a ligação do Aeroporto de Congonhas com a rede metroferroviária, passando por uma importante zona hoteleira.” Mas nem isso saiu do papel a tempo.
Aventura irresponsável
Ainda em 2015, um ano depois da Copa e sem a obra concluída, Geraldo Alckmin prometeu: “Nós entregaremos uma grande parte das estações em 2017.” Mais uma promessa no ar. Em 2016, o Metrô rescindiu um dos contratos com o consórcio responsável pela construção de estações e pátio de manobra (formado pelas companhias Andrade Gutierrez e CR Almeida) alegando que “a empresa desacelerou o ritmo das obras e não vinha cumprindo os prazos estabelecidos”. Na época, o consórcio rebateu as acusações. “Há meses as empresas buscam uma negociação com o Metrô.”
No mesmo ano, o então secretário de Transportes Metropolitanos na gestão Alckmin, Clodoaldo Pelissioni, garantiu: “O prazo é final de 2017″. Em junho de 2018, em outra entrevista, Pelissioni empurrou a conclusão para 2019.
O Tribunal de Justiça de SP determinou a realização de perícia para verificar os prejuízos aos cofres públicos gerados pela paralisação das obras e a possível omissão do governo paulista
A construção do monotrilho virou alvo do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, que apontou falhas no projeto inicial: discrepâncias nos valores em relação às obras estruturais, ausência de estudos técnicos básicos e modificações viárias.
“Desde o início, já se previa um grande número de problemas, seja pela escolha do modelo de transporte, de grande interferência no projeto urbano, seja pela ausência de estudos mínimos para sua implantação”, citou, em 2016, Antonio Roque Citadini, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. “O Metrô detinha conhecimento dos problemas e resolveu assumir os riscos.” Ainda segundo Citadini, “os elementos existentes demonstram que o Metrô embarcou numa aventura quando decidiu construir a linha e que gastou dinheiro de forma irresponsável”.
Dinheiro público pelo ralo
No decorrer dos anos, a obra passou por uma rotina de paralisações ou quase paralisações, tanto por questões judiciais quanto por problemas envolvendo as empresas. O ex-secretário Pelissioni citou uma série de imbróglios que afetaram o cronograma das obras. “Empreiteiras envolvidas na Lava Jato, contratos questionados na Justiça, a questão da desistência da fornecedora de trens, e deixamos tudo preparado para que a próxima gestão pudesse dar o encaminhamento”, alegou, em entrevista em 2021.
Já em 2019, o Metrô decidiu rescindir unilateralmente o principal contrato de construção do monotrilho (que previa entrega de trens, vigas e sinalização). Em uma nova licitação, a empresa Constran fez a proposta mais barata, mas as concorrentes recorreram, alegando irregularidades. Só um ano depois, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) afastou a Constran do processo. A Coesa Engenharia, que ficou em segundo lugar e é controlada pela OAS (envolvida na Operação Lava Jato), assumiu a conclusão das obras remanescentes.
A construção da Linha Ouro é dividida em cinco contratos: um para o pátio de manutenção, três para construir as estações e fazer o acabamento e o principal, que contempla trens, vigas e a sinalização.
Os vários pontos controversos
As obras do trecho prioritário só foram retomadas em dezembro de 2020. Na época, o então secretário de transporte, Alexandre Baldy, disse que, “quando nós chegamos, em janeiro de 2019, encontramos uma obra paralisada, cujo novo projeto, para que nós pudéssemos reincidir e retomar, foi realizado”.
Em março deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a realização de perícia para verificar os prejuízos aos cofres públicos gerados pela paralisação das obras e a possível omissão do governo paulista. “Há vários pontos controversos”, disse José Manoel Ferreira Gonçalves, presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias. “Começando por mudanças de traçados, sem falar na inexistência de estudos a respeito das despesas necessárias para a conclusão das obras, de cronogramas e planejamento de mobilidade.”
Ecossistema de problemas
Ao final das obras, o monotrilho da Linha 17-Ouro será operado pela iniciativa privada. Em 2018, antes mesmo da data final para conclusão dos serviços, o governo do Estado leiloou o trecho.
O Consórcio ViaMobilidade venceu o certame por pouco mais de R$ 550 milhões, que também previa a operação da Linha 5-Lilás. O grupo ficará responsável pela manutenção e pela operação das duas linhas pelo período de 20 anos. O valor estimado do contrato é de quase R$ 11 bilhões, o que corresponde à soma das receitas tarifárias de remuneração e de receitas como a comercialização de espaços públicos. A previsão é que a Linha 17-Ouro atenda cerca de 165 mil passageiros por dia útil em 2023, bem longe dos quase 500 mil que o projeto original iria beneficiar quando foi anunciado.
O engenheiro José Manoel Ferreira Gonçalves, presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias, classificou as obras como um ato de “irresponsabilidade, incompetência e falta de seriedade com o dinheiro público”. Ele criticou o fatiamento do traçado original, que dividiu a linha em um trecho prioritário e outros dois que estão suspensos. “A obra precisa ser trabalhada no traçado original, que tem a possibilidade de ser equilibrada financeiramente, se não você tem uma linha deficitária”, observou.
Para o engenheiro Gonçalves, as idas e vindas do projeto e o novo traçado definido pelo governo prejudicam a região. “Inicialmente, era uma obra interessante, passando por Paraisópolis, por exemplo, se conectando com a linha do metrô”, explica. “Nesse caso, há um conjunto de vantagens, possibilitando atrair investimentos, como empreendimentos, comércio etc. A partir da frustração do projeto original, há uma decadência para a região e um prejuízo para os moradores, que poderiam usar o transporte.”
Para Gonçalves, a falta de planejamento e o atraso no cronograma acarretam, inevitavelmente, superdimensionamento do valor da obra. “A consequência é que ela passa pela mão de duas, três empresas, triplica de valor, pois é preciso corrigir uma série de coisas que ficaram abandonadas no canteiro de obras. É um ecossistema de problemas que a gestão irresponsável do dinheiro público gerou.”
De acordo com Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), o monotrilho cumpriria a função para atender à demanda na região, além de ser um modal mais barato, em comparação com o transporte subterrâneo. No entanto, “em função da judicialização, da paralisação de obras, muita troca de empreiteiras, o monotrilho acabou não ficando tão atrativo financeiramente, por problemas que surgiram ao longo dos anos”.
Mudanças no projeto
Recém-empossado governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB) acabou com o fio de esperança restante dos moradores de Paraisópolis: ele disse no começo de maio que a Linha 17-Ouro não será mais expandida até lá. Segundo ele, “não vale mais a pena subir com o monotrilho até Paraisópolis e parar no Morumbi”. Garcia, no entanto, não justificou a decisão, e o Metrô não comentou.
A declaração contrasta com recentes afirmações de membros do governo. Em novembro do ano passado, Paulo Galli, secretário dos Transportes Metropolitanos do Estado, garantiu que o monotrilho seria implantado em sua totalidade depois da conclusão do trecho prioritário. Com cinco novas estações, a chamada fase 3 da Linha-17 cruzaria o Rio Pinheiros chegando até a Estação São Paulo–Morumbi, onde haveria conexão com a Linha 4-Amarela — além de Paraisópolis, considerada a mais importante do trecho, pelo impacto social na comunidade.
O povo no fim da fila
Com 100 mil habitantes numa área de 10 quilômetros quadrados, a comunidade de Paraisópolis pode ser considerada uma cidade dentro da cidade. No projeto inicial, o monotrilho seria uma opção a mais de transporte coletivo para os moradores.
O escriturário fiscal Charlys de Araújo Freitas, morador de Paraisópolis, vive a menos de 10 quilômetros do trabalho. “O maior problema está no volume de pessoas que utilizam o transporte público, principalmente em horário de pico”, disse. Atualmente, Freitas depende de uma perua e de um ônibus para fazer o trecho de quase uma hora até a empresa, na região central da cidade.
A comunidade é atendida por apenas uma linha de ônibus que liga ao centro da capital e outras 11 linhas que se conectam com os trens da CPTM e o metrô. “Muitas vezes, esperamos por mais de meia hora para pegar o ônibus, porque eles passam lotados e não param nos pontos”, explicou Freitas. “Se a obra do monotrilho tivesse saído do papel, seria mais uma opção para desafogar o transporte para os moradores da região.”
Segundo Gilson Rodrigues, presidente do G10 Favelas, a região de Paraisópolis foi a que mais adensou no município nos últimos 20 anos, causando diversos problemas de mobilidade para os moradores. Com o atraso nas obras, a região perde em desenvolvimento econômico. “Isso acarreta em perda de tempo nos deslocamentos e piora o rendimento no trabalho, comprometendo a qualidade de vida, tirando tempo de convívio com a família e afetando o desenvolvimento econômico da região.” Mais uma vez, o povo foi para o fim da fila de prioridades e continua a pagar a conta da incompetência dos governantes.
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Ótimo artigo. Parabéns. E o pior de tudo é que ninguém foi punido por todo esse descaso com o dinheiro dos pagadores de impostos.
Se demolir tudo saíra mais barato. Monotrilho não é solução para transporte de massa em nenhum país do mundo. Serve se muito para fazer ligações pontuais em distâncias curtas. O governo do estado errou ao insistir na sua implantação. Nunca funcionará a contento e se pronto, terá que ser mantido deficitário pelo estado e sua obsolescência será em curto espaço de tempo. Anotem aí.
A causa primária disso é que a população sempre paga pela incompetência criminosa dos administradores, sem que estes tenham qualquer punição administrativa, criminal ou econômica.
Vejam bem: São Paulo conseguiu o que poucos países conseguiram até o momento: enterrar um tatuzão. Sabem quanto vale 1 hora deste equipamento? Prejuízo para nós, direta ou indiretamente.
Sou da época do trolley-bus, não necessitava de baterias, pois os ônibus possuem uma rota previsível. Faz muito tempo que o Governo e a prefeitura de São Paulo se perderam… tempo de resgatar, assim como o Congresso, Senado e STF!
Paulistas: não votem mais em palhaços! Quem é feito de palhaços são vocês!!!
Grato pela reportagem. A administração do PSDB em SP é recheada de obras mal feitas. O monostrengo é um deles. Sugiro também outra reportagem sobre a duplicação da Rodovia Bunjiro Nakao entre a Rodovia Raposo Tavares e a cidade de Ibiúna. A execução está sendo um completo horror e o resultado final não será melhor. Concordo em que se o candidato Tarcísio se referir na campanha a essas obras e ao destino que pretende dar a cada uma, vai receber votos, sim.
Excelente reportagem voltada à demonstração do descaso com os recursos públicos.
Em um país desenvolvido, uma obra dessas, importante para a mobilidade e desenvolvimento teria sido terminada em tempo hábil.
Aqui, parece fonte de desperdício e aproveitamento para poucos interessados!
Façam mais reportagens assim!
Se SP eleger o Tarcísio, ele resolve.
Muito dinheiro e pouquíssima entrega. Obras que nunca são concluídas. Outras mal acabadas, como aquele trem no aeroporto de Guarulhos.
Pior de tudo é uma região como a de Guarulhos, que tinha espaço para o Metrô no antigo ramal do trem da Cantareira ter sido abandonado!
Hoje o Metrô tem uma estação no Aeroporto que chega apenas no Terminal 1 (e vai ter de ser complementada por outro modal), cujo origem é a linha Leste do Metrô.
A cidade de Guarulhos foi abandonada pelas administrações locais e pelo governo do estado!
O Tarciso vai terminar !!!
Ouro só no bolso de quem ganhou muito dinheiro ao longo desses anos.
Será que o Tarcísio vai continuar a obra original ?
Esse descaso com a populaca
Parabéns à Oeste por trazer o assunto à discussão pública. Essa obra é uma mausoléu, um acinte para a população em todos os sentidos. Seu abandono, descaso, só revela a incompetência de governantes que falam muito e fazem pouco ,quando fazem.
Uma lástima para São Paulo.
Todos os responsáveis deveriam ser processados por incúria.