O publicitário José (caso real, identidade trocada) tinha um bom emprego e achava que iria fazer parte da agência para sempre. Com seu salário confortável pagava um plano de saúde completo, do tipo “deixe R$ 1,5 mil todo mês no nosso caixa e não se preocupe com mais nada”. Se José tinha uma febrinha, passava no hospital, mostrava a carteirinha e o médico estava à disposição. Tudo incluído.
Um dia, José foi chamado na salinha do chefe e informado que seus serviços não eram mais desejados pela agência. Nosso personagem foi para casa com uma bolada em FGTS e permaneceu no mesmo plano do convênio. “Saúde é prioridade!”, pensava ele. “Carrão, bons vinhos, viagens regulares, restaurantes caros também são prioridade”, completou o lado mais mimado de sua mente.
Dessa forma, o dinheiro da indenização terminou muito mais cedo do que o publicitário esperava. Os R$ 1,5 mil que ele pagava antes sem pensar virou um fardo mensal. Um dia José foi avisado que, como ia completar 60 anos de idade, a conta do plano de saúde ia saltar para mais de 3 mil. Pagar o boleto de convênio se tornou impossível. Em suas noites de terror, José sonhava que estava sangrando numa maca, implorando por socorro num corredor escuro e imundo do SUS. Ele não tinha mais nenhuma proteção.
Uma tosse persistente o levou ao posto do SUS. Não encontrou as macas ensanguentadas nos corredores dos seus pesadelos. Teve um atendimento muito melhor do que esperava. Mas exames e consultas na rede pública eram distantes e incertos. E a tosse persistia.
Foi então que José descobriu um serviço chamado Dr Consulta. Pagou 100 reais por dez minutos de consulta e 70 reais por um raio-X. Ficou sabendo que tinha asma, passou a usar a bombinha — e a tosse passou. Aprendeu a combinar o SUS com serviços tipo Dr Consulta — que ele não sabia, mas era classificado como uma healthtech. Ou seja, uma empresa de saúde com base em aplicativo.
José ficou mais sossegado, mas havia ainda um problema a resolver. E se acordasse com apendicite? E se fosse atropelado por um motoqueiro? Teria que ser transportado por uma ambulância do Samu para algum pronto-socorro em Deus Me Livre da Serra, onde disputaria uma vaga com vítimas de tiroteios e embriaguez. Os pesadelos voltaram.
E então a loja de aplicativos do seu celular abriu mais uma porta: o aplicativo Cuidar-me. Por 600 reais mensais ele teria atendimento garantido num bom pronto-socorro/hospital particular. Agora ele estava quase tão protegido quanto nos tempos das vacas gordas. O convênio custava cinco vezes menos e ele só pagava (pouco) pelas consultas e exames que fizesse.
O vale dos abandonados
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde relativos a novembro de 2021, 48,5 milhões de brasileiros são filiados a algum plano médico privado. Desse total, 40% se concentram em nove empresas — a maior delas, a Notre Dame Intermédica, tem 4,34 milhões de clientes. São números impressionantes. Mas essa massa dos “com carteirinha” equivale a pouco mais de 20% da população.
Ou seja: 164 milhões de brasileiros não possuem um plano de saúde. Quase 80% dos habitantes teoricamente dependem do SUS. E 110 milhões são atendidos por Agentes Comunitários de Saúde. É pouco menos que a metade do total de brasileiros. Somando esses 110 milhões com os 48,5 milhões atendidos pelos planos de saúde, temos 159 milhões de assistidos. Num cálculo grosseiro, 54 milhões de brasileiros estão sem nenhum tipo de assistência médica.
Aparentemente quem está ajudando a resolver essa situação não é o governo. A solução, como quase sempre, veio do mercado
Houve um tempo em que havia duas classes sociais básicas: os que que tinham carteirinha, e os que iam para o SUS. Todo mundo (que tinha condições) pagava um plano de saúde tipo Amil, Marítima, Unimed, Golden Cross, etc. E entre os privilégios inacessíveis dos planos de saúde e a sombria montanha de usuários do SUS, havia um vale a ser conquistado. É o vale dos 54 milhões de brasileiros que aparentemente não contam com nenhum tipo de apoio para cuidar da saúde.
É uma massa maior que a população da Argentina, da Espanha ou da Coreia do Sul. Por que tanta gente sem aparentemente nenhum tipo de assistência médica não provoca uma onda permanente de pandemias e cadáveres insepultos ou não mantém tumultos nas portas dos hospitais implorando por alguma ajuda?
Aparentemente, quem está ajudando a resolver essa situação não é o governo, nem deputados, nem senadores, nem ministros. A solução, como quase sempre, veio do mercado. Da mesma combinação mercado+tecnologia que revolucionou indústrias como as do turismo, transporte de passageiros, sistema financeiro, entretenimento, da imprensa, da indústria editorial, das relações de trabalho e da comunicação entre as pessoas. A saúde não escaparia dessa revolução silenciosa.
O doutor está (no celular)
Em 2021, a revista Medicina S/A levantou as 50 empresas mais inovadoras da área da saúde. Revelou um ecossistema de healthtechs e startups de apoio às novas tendências — telemedicina, infraestrutura hospitalar, distribuição de medicamentos, plataformas de apoio aos clientes, edição de bulas eletrônicas, prontuário digital, inteligência artificial e robótica, monitoração de doenças crônicas, amparo psicológico, suporte para emergências, etc.
Essa nova realidade está disseminando um conceito ainda pouco conhecido — a Jornada do Paciente. Ela pode ser definida como a cadeia de eventos que começa com a descoberta de um sintoma, segue para os exames, a internação, a eventual cirurgia e vai até o acompanhamento após a alta. Uma das maiores falhas do SUS é não conseguir registrar apropriadamente essa jornada, pela precariedade do seu equipamento e da integração entre as unidades públicas. Healthtechs estão trabalhando para tornar essa jornada mais transparente e acessível.
Outro conceito em alta é o da telemedicina. Claro que muito médico picareta pode se encaixar nessa categoria. Mas a telemedicina possui um campo vasto de expansão. Um bom telemédico pode fazer as perguntas corretas para distinguir um AVC de um ataque de ansiedade. Uma consulta de retorno após a cura, uma orientação psicológica, um ajuste na alimentação — tudo isso pode ser perfeitamente realizado através do aplicativo no celular.
O site Feegow conta que as primeiras healthtechs brasileiras nasceram na década de 1990. A princípio, o crescimento foi lento: em 2010, não havia nem cem empresas nesse segmento.
O mercado explodiu a partir de 2012 e, em 2020, existiam mais de 540 healthtechs em atividade no Brasil. Em apenas um ano (2021), 205 novas healthtechs foram abertas, ultrapassando 745.
Viável ou não
O doutor Rodrigo Abreu e Lima, CEO da empresa Saúde Global, tem uma visão razoavelmente otimista sobre essa era de healthtechs. “Estas empresas possuem algumas características em comum, como foco em atenção primária, coordenação do cuidado e intenso uso de tecnologia”, afirmou o médico. “O grande objetivo é atuar na prevenção e evitar o agravamento das doenças, reduzindo o custo final e, consequentemente, proporcionando maior acesso da população ao serviço privado com mensalidades mais baratas. A recente liberação do uso da telemedicina foi essencial para a criação desse novo modelo de negócio, permitindo o acesso ao cuidado de saúde de qualidade a pessoas em regiões longínquas ou onde o deslocamento é difícil”.
Mas, segundo o doutor Abreu e Lima, há um perigo no caminho dessas empresas. “Ainda é muito precoce dizer se esse modelo de negócio será viável ou não, ou se ele terá capacidade de substituir o modelo tradicional”, disse. “Atualmente, a rede de prestadores de serviço e de especialistas para essas startups ainda é muito restrita ou enxuta. Além disso, como o número de beneficiários por empresa ainda é pequeno — menor que 30 mil —, seu custo final pode inviabilizar a permanência desse beneficiário ou empresa, a depender da política de reajuste”.
O mais provável, segundo Abreu e Lima, é que esse modelo seja complementar ao existente, atuando principalmente na atenção primária. “O que não resta dúvida, é que as inovações que permitam maior acessibilidade, segurança de dados, aumento da qualidade e redução de custo vieram para ficar, como o atendimento remoto, interoperabilidade em nuvem e o uso da inteligência artificial”, observou.
O responsável por nossa saúde
Essa fragmentação e a multiplicação de recursos levam para um caminho de amadurecimento. Entregar a saúde a um único médico, a um convênio ou ao sistema público é um equívoco. Essa era de economia altamente criativa está devolvendo a responsabilidade da nossa saúde para quem deve ser responsável por ela: nós mesmos.
O tempo do “meu médico me mandou parar de beber, mas eu bebo escondido” deve ser cada vez mais substituído pelo controle da própria condição. Isso para quem quiser viver bem e com saúde. Como vamos administrar nossa condição e quanto vamos gastar por isso devem depender da vontade de cada um. Já existem planos de R$ 15 por mês. Claro que o serviço é limitadíssimo. Mas melhor do que o abismo escuro da situação anterior.
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Muito obrigada pelas informações.
Excelente. Obrigada!