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Diego Pessi | Foto: Arquivo Pessoal
Edição 125

‘A polícia enfrenta um ativismo perverso e criminoso’

O promotor Diego Pessi instiga o meio acadêmico com Bandidolatria, livro de contestação ao culto ao bandido supostamente vítima da sociedade

Bruno Freitas
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Dois promotores de Justiça do Rio Grande do Sul levaram uma provocação a colegas do meio acadêmico em 2017 ao escreverem um livro que contesta o culto ao bandido no Brasil. Professores universitários pediram para alunos de Direito não lerem a obra, e algumas palestras com os autores foram canceladas. Além disso, um dos escritores venceu uma ação por injúria contra uma doutora em ciências criminais pela PUC-RS, depois de ter sido chamado de “medíocre, classista, racista, intolerante e antidemocrático”.

O tom das reações dá a medida de um tema controverso, que mexe com paixões e crenças na sociedade brasileira. O nome do livro em questão é Bandidolatria e Democídio: Ensaios sobre Garantismo Penal e a Criminalidade no Brasil, de Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza.

Foto: Divulgação

Membro da 2ª Promotoria Criminal de Carazinho (RS), Diego Pessi recentemente levou o conceito de “bandidolatria” ao filme Entre Lobos, como um dos entrevistados no documentário sobre segurança pública da Brasil Paralelo. O conceito que inspirou a investigação do promotor, como diz o livro, “é resultante da ideologia de uma oligarquia acadêmica, político-burocrática e jurídica na contramão dos anseios da população”.

Na entrevista a seguir, Diego Pessi comenta como a inversão de valores em torno do bandido supostamente vítima da sociedade conseguiu seduzir a intelectualidade.

Os presos passam pelo sistema criminal de uma maneira rápida, que nem de longe consegue intimidar a ação criminosa

O que levou o senhor a se dedicar à investigação da “bandidolatria” no Brasil?

Eu me formei em 1998 e fui cursar a Escola Superior do Ministério Público. Em 2000, já era promotor de Justiça. Entrei no Ministério Público com 23 anos e desde então sempre atuei na área criminal. Escrevi Bandidolatria em 2017, junto com meu colega Leonardo Giardin de Souza. Nós vimos um descompasso muito grande entre a realidade da segurança pública, a realidade que víamos no fórum, dos processos criminais, e aquilo que era dito. O que se vê na mídia, na academia, que se contava para as pessoas. Na época não víamos ninguém denunciando isso com a veemência que nós entendíamos necessária. Havia algumas obras anteriores, que nós citamos no livro, do doutor Gilberto Callado, do doutor Volney Corrêa, mas se passaram duas décadas, e a coisa se agravou. Em 2017, tivemos o ápice da violência no Brasil (recorde de mortes violentas, com 63 mil assassinatos). Escrevemos denunciando isso, que é bem diferente do que se diz, que no Brasil se prende muito. A grande verdade é que no Brasil nem sequer se apura a autoria da maioria dos crimes graves. Está acontecendo um “democídio”. A definição conceitual de “democídio”, de um professor norte-americano, é a morte do povo pela ação do Estado. Pela ação ou pela omissão, por uma negligência criminosa. A omissão do Estado brasileiro na segurança pública resulta nesse número astronômico de mortes. O argumento do nosso livro é esse, e teve uma repercussão muito grande.

Os senhores conseguiram encontrar as origens desse culto ao bandido em âmbito acadêmico?

O termo “bandidolatria” é uma criação do magistrado paulista Volney Corrêa Leite de Moraes Júnior. Foi criado em 2000, num livro chamado Crime e Castigo: Reflexões Politicamente Incorretas. Naquela época ele conceituava a “bandidolatria” como um surto de contracultura e anticivilização, que é a idolatria daquilo que é mau e perverso, e do esquecimento completo da vítima. Ou seja, um ataque às bases morais e éticas da sociedade.

Na abertura do livro há o relato de um episódio chocante de um crime em Porto Alegre. Por que vocês escolheram esse caso?

É um latrocínio, praticado na saída de um colégio. A mãe estava aguardando os filhos e foi vítima de um latrocínio. A gente utiliza esse caso na abertura por duas razões. Primeiro, porque ele teve muita repercussão na época. Segundo, porque é um caso muito emblemático da crise da segurança em todas as perspectivas. Quem cometeu o crime foram delinquentes que já haviam passado tanto pelo sistema da infância e juventude quanto pelo sistema prisional, com várias passagens. Eram pessoas que deveriam estar presas e não estavam. Que portavam armas ilegalmente, que atuaram por cerca de meia hora sem qualquer intervenção policial, ou qualquer intervenção de outro cidadão, porque a população está desarmada também. Dentro desse quadro existia uma vítima que nem sequer reagiu e foi morta mesmo assim. Um quadro de uma dramaticidade e de uma gravidade que demonstram tudo aquilo que gostaríamos de denunciar. Usamos até uma reportagem do Correio do Povo, jornal gaúcho, que fez um apanhado das passagens pela polícia do sujeito que matou. É uma coisa impressionante.

Foto: Reprodução

Qual a visão do senhor sobre o tratamento da grande mídia à questão de segurança pública e à figura do criminoso?

O grande desafio da mídia é ela vencer o clichê, o discurso repetido de maneira quase automática e analisar os fatos com isenção. Sem ideologia ou qualquer viés. Apenas ver se os fatos que a imprensa repete conferem com a realidade. Um exercício simples do jornalismo bastaria para que as informações corretas fossem passadas.

Os senhores encontraram resistência no meio acadêmico por causa dos conceitos do livro? Sofreram algum tipo de retaliação?

Isso foi muito comum. Fomos muito bem recebidos em vários lugares, mas tivemos episódios de eventos cancelados. Ouvimos relatos de vários estudantes de que o livro chegou a ser proibido em determinada universidade. Imagine um professor universitário proibir o aluno de ler um livro, uma coisa impressionante. O nosso livro bate muito forte em ideias, mas não agride pessoas. E a resposta foi justamente a contrária, sem discutir as ideias do livro. Isso dá a proporção do que aconteceu. Não há nada pessoal contra ninguém, é um debate. E a resposta a ele me pareceu irracional.

É possível já tratar o ativismo contra a atividade policial como um movimento no país?

Abordo isso tangencialmente em Bandidolatria. Mas tenho um livro que trata bastante desse tema, que é o Violência, Laxismo Penal e Corrupção do Ciclo Cultural. Lá eu coloco que a polícia obviamente tem de estar sujeita à lei, tem de observar todas as considerações do uso justificado da força, mas identifico que há um certo ativismo que não diz respeito à ação policial, que prega a própria abolição da polícia. Esse ativismo é perverso e criminoso. O que a gente percebe é a criminalização não de um ou outro fato, mas de uma instituição que é fundamental para a segurança da sociedade.

Outro tema controverso associado à “bandidolatria” é o mito do encarceramento em massa no Brasil. Existem estatísticas que contestam essa visão?

Sim, existe um estudo detalhado num livro com o título O Mito do Encarceramento em Massa, do Bruno Carpes. Ele mostra que o Brasil prende muito pouco. Basta você ver a quantidade de crimes e a quantidade de presos. E não apenas prende pouco, como propicia um sistema de “porta giratória”. Os presos passam pelo sistema criminal de uma maneira rápida, que nem de longe consegue intimidar a ação criminosa. Esse mito do encarceramento em massa é mais uma dessas questões que a simples análise dos dados prova o contrário. O que existe é um problema crônico de impunidade.

Por onde o senhor começaria a tentar resolver o problema da segurança pública no país?

Três coisas são fundamentais. Uma delas é a legislação, especialmente a lei de execução penal. Mas, para que esse esforço não caia no vazio, é preciso que haja investimento no sistema penitenciário. Construção, ampliação e reforma de penitenciárias. E, por fim, qualificação de nosso sistema de execução, investigação e processo em juízo do crime. Que a gente tenha um processo mais rápido, mais eficiente, que chegue no final com um resultado adequado.

Existem modelos internacionais bem-sucedidos de repressão ao crime que poderiam inspirar ações aqui no Brasil?

Existem coisas que se provaram eficazes em outros países. Aumento do índice de resolução do crime e punição severa e adequada, especialmente para crimes graves. Isso nós não temos aqui. Um exemplo que acho perfeito, que Entre Lobos coloca bem, é o caso de Nova Iorque, com o ex-prefeito Rudolph Giuliani (1994-2001), com o recrudescimento da execução penal e a “teoria das janelas quebradas” (a ideia de que, se uma janela de um prédio for quebrada e não receber reparo, a tendência é que passem a jogar pedras em outras janelas). Há outros exemplos, mas não existe um modelo mágico. Temos de buscar a adoção de princípios de acordo com a nossa realidade. Investigação qualificada, apuração de autoria e punição proporcional à gravidade do crime. Com isso é possível ter um impacto positivo a longo prazo.

Leia também “Vivemos uma guerra civil urbana”

6 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente entrevista. Parabéns ao entrevistador e entrevistado. Até que enfim algumas vozes começam a ser levantar contra essa idolatria ao bandido e demonização das forças policiais.

  2. THIAGO LUI REGIANI
    THIAGO LUI REGIANI

    que ainda não assistiu ao documentário “Entre Lobos”…. eu, humildemente, recomendo!!!

  3. Antonio Rodrigues
    Antonio Rodrigues

    Infelizmente, salvo raras exceções, somos um país de bandidos.

  4. José Eduardo Ferreira Prado de Carvalho
    José Eduardo Ferreira Prado de Carvalho

    Vejam o período em que os bandidos tomaram o poder no Brasil, após 1988 com a promulgação da C.F até 2017, principalmente nos governos de FHC, Lula, Dilma e Temer, ressalte-se, bandidos de todas as espécies, os que assaltam com mãos armadas, traficantes e os de colarinhos brancos, cujos todos sabemos onde vivem e são estes últimos os piores, pois montaram um sistema de proteção judicial que estão imunes ao livro da lei.

  5. José Luiz Almeida Costa
    José Luiz Almeida Costa

    A movimentação econômico-financeira da bandidagem no Brasil alcançou níveis empresariais. Organizações criminosas têm a mesma estrutura hierárquica e operacional de empresas. Movimentam milhões de recursos financeiros e econômico. Escritórios de advocacia lucram alto em defender bandidos. Programas de veículos de comunicação garantem a audiência com as notícias da criminalidade. A bandidagem demanda a criação de milhares de vagas de servidores públicos nas polícias e na justiça.
    Enfim, são muitos os que têm a ganhar com a “Bandidolatria”.

  6. Júlio Rodrigues Neto
    Júlio Rodrigues Neto

    A descriminalização do crime é uma realidade no Paîs . Os direitos dos infratores tornaram-se maiores do que os das vítimas

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