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Vista aérea do Porto de Santos | Foto: Santos Port Authoroty/Divulgação
Edição 127

O Porto de Santos desencalha

Empresa supera modelo deficitário com ‘choque privado’ sobre administração estatal e passa a registrar, em vez do rombo anual de mais de R$ 400 milhões, um lucro de meio bilhão de reais

Bruno Freitas
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Numa sala estão reunidos os diretores da operação portuária de Santos. Um imenso painel ocupa toda uma parede. O conjunto de telas informa, em tempo real, sobre quase tudo o que acontece no local: o estágio de carregamento dos navios atracados, a aproximação de caminhões na região e a movimentação no canal ajudam na tomada de decisões.

Até 2018, esse processo era realizado por meio de anotações em folhas de almaço. Essa cultura de improviso ajuda a explicar o rombo anual de mais de R$ 400 milhões, e a conta era paga pela União — ou seja, pelos pagadores de impostos. Hoje, numa reviravolta por meio de métodos clássicos do mundo privado, o maior porto do país se prepara para comemorar um lucro de meio bilhão de reais em 2022.

Somando importações e exportações, o Porto de Santos é o ponto de passagem de quase 30% das trocas comerciais brasileiras. É também um corredor fundamental para o agronegócio brasileiro no caminho até os compradores estrangeiros e, por isso, estratégico para o desempenho da economia nacional. Depois da recuperação financeira dos últimos quatro anos, a gestão portuária local se prepara para ser desestatizada.

A volta por cima da Autoridade Portuária de Santos (Santos Port Authority, a SPA), órgão ligado ao Ministério da Infraestrutura, se deu por meio de um esforço para trocar a burocracia estatal pelo pragmatismo privado. A administração, que vinha marcada por casos de desvios de dinheiro, foi virada do avesso. O atual governo enviou ao litoral de São Paulo executivos com experiência em recuperação empresarial, partindo de um cenário de prejuízo de R$ 468 milhões em 2018.

Contratos foram revistos, e a estrutura foi enxuta. Logo no primeiro ano, a atual gestão chegou ao azul, com lucro de R$ 87 milhões. Em 2020, o Porto de Santos comemorou superávit de R$ 202 milhões, seguido de R$ 329 milhões em 2021.

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Nessa curva ascendente, a expectativa agora é chegar ao resultado de meio bilhão de reais no fim de 2022. Na última semana, a Autoridade Portuária anunciou o balanço recorde do segundo trimestre, com lucro líquido de R$ 144,8 milhões, alta de 46,4%, na comparação com o mesmo período do ano anterior.

“A administração do Porto de Santos tem de ser muito profissional”, afirma Fernando Biral, diretor-presidente da Autoridade Portuária de Santos. “A gente defende que a desestatização é uma forma de garantir isso, o que tem impacto direto no país. A fase em que eram permitidos alguns erros já passou. Outro ponto de cultura que é inerente ao funcionalismo público é a baixa exposição ao risco. No serviço público em geral, o funcionário é punido se errar. E, se acertar, não tem nenhum benefício ou prêmio. A cultura da empresa era muito engessada, no sentido de propor inovação. A gente foi trabalhando para quebrar essas barreiras e poder incentivar as pessoas a ousarem.”

Tecnologia de primeiro mundo

Contando com terminais especializados em contêineres, granéis sólidos e líquidos, o Porto de Santos é estratégico para vários setores da economia nacional. É, por exemplo, o principal polo exportador brasileiro de açúcar, soja e milho, além de ser o segundo maior importador de trigo. Em 2021, o porto exportou 4,3 milhões de toneladas de celulose e respondeu por cerca de 25% do total de veículos movimentados no país.

A área seca sob administração da Autoridade Portuária foi recentemente ampliada de 8 quilômetros quadrados para 15,5 quilômetros quadrados, expandindo as possibilidades de atuação, mas também aumentando os desafios na área de segurança, uma vez que este é um local de apreensões recorrentes de drogas.

Hoje, o porto no litoral paulista é o 45º do mundo em movimentação de contêineres e caminha para ser o principal do Hemisfério Sul. O Plano de Desenvolvimento e Zoneamento para o período de 2020 a 2040 projeta aumento de 50% na capacidade de movimentação de carga, mirando 240 milhões de toneladas anuais. A expansão terá seu impacto traduzido nos indicadores econômicos do país.

“Há uma série de fatores que fazem o Porto de Santos bastante privilegiado”, diz Fernando Biral, CEO da estatal portuária local. “Em termos de localização e infraestrutura de acesso. A gente está conectado com o produtor de soja de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, de Goiás, do sul de Minas Gerais. Nós temos competitividade de exportação para a Ásia e temos uma estrutura muito moderna. Os terminais hoje têm tecnologia de primeiro mundo. É um ativo superespecial e tem uma perspectiva de crescimento enorme. O país conta com a expansão do Porto de Santos para viabilizar o crescimento econômico.”

O pulo do bilhão

Do prejuízo de mais de R$ 400 milhões ao lucro projetado de R$ 500 milhões, a recuperação do Porto de Santos se deu sem receita mágica. A virada se resume à administração estatal, que foi se livrando de contratos ruins e, aos poucos, enxugando gastos dos mais diversos.

Primeiro, o Porto de Santos reduziu o quadro de funcionários, por meio de um programa de desligamento voluntário. No fim de 2018, eram mais de 1.300 trabalhadores, e hoje são menos de 900. As horas extras foram cortadas de 20 mil por mês para 2,3 mil. Uma força-tarefa jurídica também foi estabelecida para diminuir pela metade o número de ações trabalhistas em andamento. Um simples rearranjo de configuração de escritórios permitiu a desocupação de quatro prédios.

Contratos custosos sobre limpeza e aluguel de impressoras foram revistos. Um caso emblemático foi a substituição de um acordo para segurança terceirizada por meio de drones, de R$ 2,7 milhões ao ano, pela compra de três aparelhos pelo valor de R$ 150 mil, incluindo treinamento de operação.

“O principal custo era a parte da mão de obra”, relata Marcus Mingoni, diretor de Administração e Finanças da Autoridade Portuária. “Baixo nível de digitalização, de informatização, processos muito arcaicos, manuais. A gente viu muita oportunidade aí.”

Além das questões de funcionamento administrativo, a gestão conseguiu derrubar uma série de liminares sobre áreas estagnadas do porto, que acabaram gerando novas parcerias. Também foram renegociadas algumas relações tradicionais com empresas que operam no local, como a Petrobras, com desfecho prático de contratos mais longos e lucrativos.

Diretores que conduziram a recuperação da Autoridade Portuária de Santos. Da esquerda para a direita: Marcus Mingoni, Marcelo Ribeiro, Fernando Biral, Afranio de Paiva e Bruno Stupello | Foto: SPA/Divulgação

Um dos pontos da gestão do Porto de Santos acabou virando referência dentro da máquina estatal da União. A administração atual assumiu com o plano de previdência prestes a quebrar, perto de 5% de solvência. Sob intervenção federal desde 2011, o setor acumulava déficit de alguns bilhões de reais. Mas, com o diálogo com sindicatos e órgãos de controle, o rombo acabou equacionado. O programa, batizado de “Portus”, virou benchmarking dentro do governo, com outras empresas replicando o modelo.

Mas ainda há quem critique o processo de recuperação. O Sindaport é o principal sindicato ligado à Autoridade Portuária de Santos e foi ouvido parcialmente no programa de desligamento voluntário. O comando da categoria diz que a volta por cima se deu por meio de sacrifícios de trabalhadores. Segundo Everandy Cirino dos Santos, presidente do Sindaport, “avaliamos como uma administração positiva, mas com equívocos. A administração conseguiu lucro, mas tirando do trabalhador. Mexeu nas horas extras, promoveu um programa de desligamento que não era o melhor, passou questões como atracações para a iniciativa privada. Mas tiveram coisas positivas, como a gestão da questão dos fundos de pensão”, comentou

Privatizar ainda em 2022?

As atividades portuárias na Baixada Santista começaram ainda no século 16, com estruturas rudimentares até 1890. Naquele ano, o local foi cedido pela primeira vez à iniciativa privada com o estabelecimento da Companhia Docas de Santos. Na época, foram construídos 260 metros de cais, criando o primeiro porto organizado do Brasil.

Visão aérea do Porto de Santos, no começo do século 20 | Foto: Reprodução

Ao longo do século 20, o Porto de Santos se firmou como o principal do país, inicialmente impulsionado pelo auge da economia do café. Em 1980, com o fim da concessão privada, foi criada a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), estabelecendo o monopólio estatal das operações portuárias. Tem início então um período de mais baixos do que altos, com grupos políticos aparelhando a estrutura e com escândalos de corrupção.

Em 2019, por exemplo, o ex-deputado federal Marcelo Squassoni (PRB) e outras 18 pessoas foram presas em um esquema milionário de propinas e manipulações de contratos da Codesp. Um ano antes, Michel Temer foi incluído no Inquérito dos Portos, uma investigação da Polícia Federal sobre práticas de corrupção na administração em Santos. O inquérito teve início na década de 1990, quando o ex-presidente era parlamentar em Brasília. Em 2021, no entanto, o político do MDB foi absolvido pela Justiça Federal.

Tela do pintor Benedito Calixto retrata a atividade do Porto de Santos no começo do século 20 | Foto: Reprodução

Hoje, a página da corrupção parece virada, e a histórica estrutura portuária brasileira se dá ao luxo de sonhar com crescimento. A expectativa é que a nova privatização coloque o Porto de Santos entre os mais relevantes do mundo. O modelo de desestatização concebido pelo governo federal prevê investimentos obrigatórios de R$ 18,5 bilhões no local. Deste valor, R$ 14,1 bilhões vão ser aplicados em manutenções. Outros R$ 3 bilhões serão destinados à construção de um canal submerso para ligar Santos e Guarujá — uma iniciativa que ajuda no trânsito de navios e atende a um clamor antigo da população da Baixada Santista. O restante R$ 1,4 bilhão serão investidos em aprofundamento do canal e melhoria dos acessos rodoviários.

Com a licitação, a estatal Santos Port Authority vai ser integralmente privatizada e não vai retornar para a União. Já as áreas físicas do porto serão concedidas a esta mesma empresa pelo prazo de 35 anos, sem prorrogação. O valor da outorga mínima do ativo é de R$ 1,38 bilhão.

A expectativa é que o Tribunal de Contas da União (TCU) apresente parecer favorável ao leilão até outubro, para que o edital definitivo seja publicado. O governo deve adicionar à modelagem a possibilidade de operadoras de terminais se associarem para disputar a administração. No mínimo 60% do capital da concessionária deverá ser detido por grupos econômicos sem conflito de interesse no local.

Joia da coroa

Ainda há alguma resistência política no meio do caminho da desestatização. Representantes do Sindaport, sindicato de portuários ligado à administração, prometem dificultar a privatização. O presidente da entidade afirmou que está em contato com políticos do PT e do PSB para desenvolver uma estratégia para travar o processo. Entre os interlocutores, está o deputado federal Alexandre Padilha (PT).

“Assim que o processo chegar ao TCU, vamos entrar com uma ação para tentar barrar a desestatização”, diz Everandy Cirino dos Santos. “A operação portuária já está com a iniciativa privada, com o funcionamento dos terminais. O que a SPA quer passar para a iniciativa privada são coisas que devem estar sob responsabilidade do Estado, como segurança, fiscalização da atividade portuária, controle sobre acessos ao porto e garantias ao meio ambiente.”

Navio é carregado no Terminal Exportador de Santos, que movimenta granéis sólidos vegetais | Foto: Bruno Freitas

Obstáculos à parte, o Ministério da Infraestrutura confia na conclusão do processo até o fim do ano, no que representaria uma vitória da gestão iniciada por Tarcísio de Freitas e hoje nas mãos do ministro Marcelo Sampaio.

“O Porto de Santos é uma grande joia da coroa”, garante Sampaio. “A gente está trabalhando com o leilão para dezembro deste ano. Houve amplo diálogo por parte da prefeitura, da sociedade civil, dos arrendatários dos portos, das empresas que acessam o porto. A gente acompanhou muito de perto a privatização do Porto de Melbourne, na Austrália, o segundo maior porto do Hemisfério Sul. Acompanhamos o modelo que foi utilizado, pegamos as boas práticas e trouxemos para dentro de casa.”

Atualmente, os terminais de Santos têm autorização para receber embarcações com até 366 metros de comprimento, enquanto grandes portos no mundo já estão preparados para ancorar navios de 400 metros. Com a projeção de rebaixamento do canal, de 15 metros para 17 metros de profundidade, o local poderá ver a capacidade de operação expandir.

“Até 2040, temos uma projeção de sair de 160 milhões de toneladas de capacidade para 240 milhões”, diz Fernando Biral, da SPA. “O porto tem um horizonte de crescimento enorme. Ele pode explorar novas áreas, que foram recentemente incorporadas. Esse crescimento vai exigir uma melhoria dos acessos. A gente precisa ter, no futuro, um terceiro sistema viário, além de Anchieta e Imigrantes. Existem vários projetos em discussão pelo governo do Estado. A gente vai ter também a expansão da malha ferroviária. Hoje temos o sistema desenhado para atingir esses 240 milhões de toneladas. Depois a gente tem condições de crescer mais”.

Os cruzeiros e o meio ambiente

A reportagem ouviu a prefeitura de Santos a respeito da privatização. Júlio Eduardo dos Santos, secretário de Assuntos Portuários e Projetos Especiais da cidade, disse entender que o ritmo “acelerado” da desestatização liderada em Brasília prejudica o debate na região.

Para o secretário, alguns temas que fogem da discussão do negócio em si estão sendo ignorados. Como a situação dos trabalhadores avulsos e dos pequenos empresários do setor, que passariam a depender de, pelo menos, um cais público. A condição do setor turístico também é vista com preocupação, já que Santos concentra a maior parte de embarques e desembarques de cruzeiros no país. A prefeitura critica ainda a concessão de um terminal de fertilizantes ao lado de onde funciona a ala de turistas do porto, destacando a questão de segurança e desconforto de passageiros.

Navio é carregado no Brasil Terminal Portuário, área do Porto de Santos que movimenta contêineres | Foto: Bruno Freitas/Revista Oeste

“A prefeitura de Santos não é contra o processo de desestatização”, garante o secretário, “mas acredita que esse planejamento deve levar em consideração as demandas dos municípios da Baixada Santista, especialmente os que abrigam a atividade portuária, que precisam ser mais ouvidos”. Segundo Julio Eduardo, a maior preocupação da prefeitura é com relação ao ritmo acelerado da privatização. O secretário teme que pode não haver tempo necessário para um amplo debate sobre o tema.

“Também estamos atentos à possível aquisição do porto por um grupo internacional, que, sem vínculos com o país e com a região, poderá primar exclusivamente pela produtividade e pela lucratividade, sob o risco de, se não estabelecidos direitos e deveres na forma da lei no ato da privatização, desconsiderar os impactos da atividade portuária no dia a dia da Baixada Santista”, observou. Os impactos englobam, além da economia, o meio ambiente, a mobilidade, a segurança e a qualidade de vida dos moradores de Santos e da região.

Leia também “Mentiras tóxicas sobre o agronegócio”

5 comentários
  1. Manfred Trennepohl
    Manfred Trennepohl

    A privatização é fundamental e tem que acontecer o mais rápido possível.. As preocupações/restrições apenas dizem respeito aos interesses do sindicato, das prefeituras, leia-se POLÍTICOS, aqueles que não gostam de trabalhar.

  2. Sebastiao Márcio Monteiro
    Sebastiao Márcio Monteiro

    Estado administrando um porto! Só podia dar errado. Administração social-democrata na prefeitura explica as críticas ao processo de privatização.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Onde tem o estado tem corrupção, isso tá bem claro

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo texto. Bastante explicativo. Parabéns. Privatização de tudo pra ontem. O Estado não tem que gerir ou administrar nada. Quem está reclamando é porque vai perder a boquinha que tinha.

  5. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    Dedo do Tarcisio nisso! Parabéns !

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