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Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva | Ilustração: Lucasmello/Shutterstock
Edição 134

Aversão a eleições

Numa eleição é preciso fazer uma escolha com base em uma avaliação instintiva ou global. Isto é, se preferimos os vícios de uma pessoa aos de outra

Theodore Dalrymple
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Outro dia, a manchete em um site brasileiro chamou minha atenção: “‘Nenhum desses bandidos merece meu apoio’, diz Soraya”.

Como não sou um seguidor obsessivo da política nem do meu país, quanto mais do Brasil, não fazia ideia, a menor ideia de quem é Soraya, ainda que até mesmo eu pudesse imaginar quem eram os dois bandidos. Graças à internet, logo descobri que Soraya era Soraya Thronicke, que havia concorrido à Presidência pelo União Brasil e recebido apenas 600 mil votos, um comentário um tanto irônico sobre o nome do partido dela.

Mesmo assim, entendo o que ela quis dizer: todas as eleições nas democracias contemporâneas são um pouco assim — nenhum dos candidatos é digno do nosso voto quando esses candidatos são considerados de forma abstrata. (O que prova que o Brasil agora faz parte do mainstream.) No entanto, dois seres humanos podem ser igualmente ruins? E ruins exatamente da mesma forma? Vícios e virtudes são incomensuráveis, assim como maçãs e peras não podem ser comparadas em todos os seus aspectos. Ninguém tem todas as virtudes, ainda que eu imagine que seja possível que alguém tenha todos os vícios.


Finalmente, numa eleição é preciso fazer uma escolha com base em uma avalição instintiva ou global. Isto é, se preferimos os vícios de uma pessoa aos de outra. (Suas políticas de fato têm relativamente pouco a ver com a nossa escolha — o que essas figuras simbolizam é muito mais importante).

Felizmente, nunca precisei defender uma eleição, pelo menos nos 57 anos desde que quis ser o editor do pequeno jornal da escola que alguns colegas e eu estávamos começando. Havia cinco candidatos e cinco votos. Acho que não me comportei como um cavalheiro, como todos os demais, que votaram em alguém que não eles mesmos. Votei em mim e, portanto, ganhei o cargo de que, acreditava eu, na minha presunção juvenil, o futuro do mundo dependia. Desde então sinto uma leve culpa.

Isso porque a pessoa que deveria ter ganhado a eleição, a julgar apenas pelo mérito, morreu pouco depois, e eu o privei disso. Ele era um pesquisador brilhante, cujo destino era obviamente uma carreira na academia, quando a academia ainda era um lugar para acadêmicos de verdade. Tamanhos eram seus dons como linguista e seu amor pela literatura que acho que ele teria feito uma contribuição real para os estudos literários. Lamentavelmente, não era para ser, e devo acrescentar que ele também era dotado de uma generosidade natural de caráter, era modesto e discreto, a despeito de seu brilhantismo.

Votei em mim e, portanto, ganhei o cargo de que, acreditava eu, na minha presunção juvenil, o futuro do mundo dependia

Ele sofria terrivelmente de asma e dermatite. Ainda me lembro de sua imensa dificuldade de respirar quando era acometido por uma crise (das quais ele nunca esteve totalmente livre). Seu peito ficou deformado pela doença. Também me lembro de sua pele escurecida, que sempre descamava, como as escamas de um peixe pequeno. Atividades de um menino normal eram impossíveis para ele.

Naqueles tempos, o tratamento para asma estava muito menos avançado do que hoje. Um novo medicamento surgiu quando ele tinha cerca de 15 anos, o cromoglicato dissódico, que impedia a liberação das substâncias químicas do corpo que causavam a contração dos brônquios. Mas esse avanço terapêutico chegou tarde demais para ele. Outro remédio relativamente novo, a isoprenalina, aliviava os sintomas das crises de asma, mas aumentava a probabilidade de morte súbita. Ele se agarrava à bombinha que provavelmente o matou como um homem que está se afogando se agarra a um canudo.

Um dia, depois de duas semanas de ausência, fui à casa dele. A mãe abriu a porta e perguntei por ele. Ela me disse que meu amigo tinha morrido. Ainda me lembro da fraqueza que senti nos joelhos.

A mãe me contou que ele teve uma crise mais grave do que o usual. Meu amigo pediu que ela chamasse uma ambulância, e ela o fez. Enquanto o serviço de atendimento insistia em alguns detalhes burocráticos sem os quais a ambulância não seria enviada, ele gritou: “Estou morrendo, estou morrendo, você não entende que estou morrendo?”.

Meu amigo não era o tipo de rapaz que diria isso levianamente, e ele de fato morreu antes que a ambulância chegasse, aquelas palavras ecoando nos ouvidos de sua mãe aflita. Como isso aconteceu 56 anos atrás, e ele tinha 16 ou 17 anos na época, a probabilidade é que sua mãe também esteja morta, mas ela deve ter passado muitos anos com essa amarga lembrança.

Meu amigo tinha um irmão mais velho, bonito, confiante, charmoso e obviamente inútil, destinado à falência. A mãe dos dois disse algo que me chocou e que nunca esqueci: “Gostaria que tivesse sido o outro a morrer”.

Apenas no ápice do sofrimento uma mãe poderia dizer algo assim. Saí correndo da casa e nunca mais voltei, constrangido demais e não socialmente apto o bastante para saber o que dizer. Gostaria de ter voltado.

Não posso dizer que penso nisso todos os dias da minha vida, nada assim. No entanto, a lembrança me vem à mente sempre que ouço alguma conversa sobre asma, e então sinto um pouco de culpa. Sei que a sorte não é distribuída como uma medalha militar por serviços prestados, e que nem sempre recebemos, pelo bem ou pelo mal, o que merecemos (é um preconceito vulgar pensar que, se a vida fosse justa, todos estaríamos numa situação melhor). Mas ainda sinto uma leve culpa pela morte dele, ainda que não tenha feito nada para causá-la. Provavelmente tem a ver com aquela votação, e minha ciência de que meu amigo era uma pessoa mais merecedora do que eu. Por que ele morreu e eu sobrevivi?

De certa forma, foi uma lição útil de que nem tudo na vida está sob o controle de nenhum indivíduo, por mais poderoso que ele seja. Meu amigo teria sobrevivido se a ambulância tivesse chegado a tempo? Não sei dizer. Mas o episódio todo me deixou com uma aversão duradoura a eleições (por mais necessárias que sejam) e ódio pela burocracia idiota.

Leia também “Uma solução interessante para o problema”

5 comentários
  1. Jorge Apolonio Martins
    Jorge Apolonio Martins

    Também achei fraquinho e sentimentaloide.

  2. Antonio C. Lameira
    Antonio C. Lameira

    Homem de caráter, com certeza levará para o resto da sua vida a culpa, mas o fato de vc está carregando este sentimento de culpa desde a adolescência ti fez um homem melhor, por ter vivido essa experiência traumática. A vc minhas deferências.

  3. Moacir Alves Schmidt
    Moacir Alves Schmidt

    Nossa!

  4. Rosalia Alvim Saraiva
    Rosalia Alvim Saraiva

    Excelente texto!!!!

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