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John Cleese, ator e comediante inglês | Foto: Reprodução/Flickr
Edição 144

O direito de rir

John Cleese, do grupo inglês Monty Python, é uma prova viva de que o humor precisa ser livre — ou não é humor

Dagomir Marquezi
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Dagomir Marquezi, com entrevista de Nick Gillespie (da revista Reason)

Os mais jovens talvez nunca tenham ouvido falar em John Cleese. Talvez você o conheça como Q, o inventor que pegava no pé de James Bond. Ou como um personagem de faroeste (em Silverado, filme de 1985). Ou a voz do sogro de Shrek, ou o personagem Nearly Headless Nick da série Harry Potter. Ou mesmo o conheça como apresentador de algum documentário passado em algum país exótico.

Aos 83 anos, esse inglês de Weston-super-Mare foi tudo isso e muito mais. Com uma sólida formação acadêmica, Cleese descobriu que poderia ser um profissional do humor. Trabalhou com comédias na TV inglesa desde os 20 e poucos anos. Em 1969, aos 30, encontrou sua turma: o parceiro de criação Graham Chapman, o animador norte-americano Terry Gilliam, o ator Eric Idle e os roteiristas Terry Jones e Michael Palin. Idealizaram um programa para a TV inglesa que foi batizado de Monty Python’s Flying Circus.

Integrantes do Monty Python | Foto: Reprodução/Flickr

O Monty Python mostrou didaticamente que o humor tem de ser livre — ou não funciona. Eles esculachavam qualquer coisa. Não havia limites, territórios proibidos, e muito menos essa praga atual chamada correção política. Suas ideias partiam das fontes de qualquer boa comédia: o absurdo que costuma servir de cenário ao comportamento do ser humano. E as tolas maneiras que inventamos para sermos levados a sério.

O programa dos Python podia simular um jogo de futebol entre grandes filósofos alemães (Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche) e os gregos (Platão, Aristóteles, Sófocles etc.), tendo o chinês Confúcio como juiz. Ou uma corrida entre idiotas que não conseguiam se dirigir à linha de chegada. Contavam com toda seriedade a suposta história da piada mais engraçada do mundo (usada como arma de guerra, pois fazia as pessoas morrerem de rir). Imaginavam um tosco programa de trivia na TV ridicularizando alguns dos deuses do comunismo: Karl Marx, Vladimir Lenin, Ernesto Che Guevara e Mao Tsetung.

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O Python chega aos cinemas

Apesar de seu humor sofisticado e nem sempre fácil de ser compreendido, o Monty Python ganhou um fã-clube fiel e fanático. Seus membros resolveram dar um grande salto, produzindo filmes para o cinema. Já não eram mais limitados à TV britânica. E o humor maluco deles se espalhou pelo mundo.

Três dos filmes se tornaram clássicos da comédia. Em Monthy Python e o Cálice Sagrado (1975), o alvo das gozações são as lendas e as narrativas sobre a Idade Média e as Cruzadas. Os Python ainda estavam meio tímidos lidando com a nova mídia, mas criaram grandes cenas — como a luta insana entre o rei Arthur e o misterioso Cavaleiro Negro.

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Em 1979, o Monthy Python partiu para um novo patamar em matéria de provocação. A Vida de Brian conta a história de um judeu comum, que nasceu ao mesmo tempo que Jesus Cristo, na Galileia, e foi confundido com o Messias anunciado pelas escrituras. Jesus é mostrado respeitosamente à distância. Mas nada escapa da mira dos Python — como os romanos e os inúmeros “movimentos de libertação”. Esta cena parece profetizar em detalhes nossa atual realidade, com 43 anos de antecedência.

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Mas nada nesse filme é mais ultrajante e provocativo do que a cena final, quando a crucificação de Brian se torna um musical cheio de otimismo e alegria.

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O Monty Python deu ao mundo a lição de que não existe comédia sem liberdade. E que no humor não pode haver liberdade pela metade. Por mais indignado que alguém possa ficar com o que o Monty aprontava, esta é a base do princípio da liberdade que tanto defendemos. Basta lembrar que, nesse mesmo ano de 1979, um país sofisticado e moderno como o Irã iria ser enterrado nas trevas por uma casta de fanáticos religiosos.

Quatro anos depois, os Python produziram uma comédia de sketches sobre nada menos que o sentido da vida. É um filme desconcertante, como quando um homem obeso come o cardápio inteiro de um restaurante chique e vomita sem parar, sem que ninguém se importe com isso. Ou a cena que brinca com os clichês de filmes militares.

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“Obrigado por me fazer rir”

Trazendo o espírito de humor anárquico do Monty Python, John Cleese é um respeitável intelectual e cidadão britânico. Já foi reitor da Universidade de St Andrews e é formado em Direito pela honorável Universidade de Cambridge. Escreveu vários livros, com títulos divertidos, como A Vida e Como Sobreviver a Ela. O mais recente, de 2020, trata de um assunto que ele conhece muito: Criatividade: um Guia Rápido e Alegre. No ano passado, cancelou uma aparição na Cambridge, ao saber que um professor havia sido colocado numa lista negra por imitar Adolf Hitler. (“Eu me cancelei antes que outro alguém me cancelasse”, declarou na ocasião.)

John Cleese deu uma entrevista a Nick Gillespie, da revista Reason, em Las Vegas, onde participava do FreedomFest (Festival da Liberdade, em tradução livre). Na entrevista, Cleese destacou principalmente a importância da criatividade para a evolução de cada pessoa e da civilização como um todo. Estes são trecho da entrevista, em edição especial para a Revista Oeste.

John Cleese | Foto: Divulgação

O senhor escreveu sobre colaboração, particularmente com Graham Chapman (integrante do Monty Python). Pode falar um pouco sobre suas experiências com ele, e o fato de ter alguém para trocar ideias?

Quando você começa como um comediante ou um roteirista cômico, o grande medo é: isto é engraçado? Porque não dá para saber. Você não tem a experiência necessária para avaliar. Você pensa: “Bem, eu acho engraçado. Alguém mais acha?”. A coisa extraordinária sobre Chapman é que, se ele risse, então eu descobria que a audiência ia rir, então o maior problema era resolvido assim. Ele era a prova de fogo perfeita. Se o que eu disse era engraçado e ele risse, a gente aproveitava. Era maravilhoso. Mas eu estava na cabine de comando tocando o barco, e Chapman era criativo, mas o problema é que eu era crítico e analítico demais, e ele era tão avoado que estava sempre fora do eixo dizendo coisas ridículas. Nossa combinação funcionava bem, porque o que algumas pessoas esquecem sobre uma equipe é que você precisa de um monte de gente com habilidades diferentes, não um monte de gente com as mesmas habilidades.

Fale um pouco sobre o papel de drogas e álcool nas suas experiências criativas, o que atormenta pessoas criativas, particularmente comediantes, músicos e escritores. Chapman tinha um problema real com bebida, mas isso também aumentava de sua genialidade?

Acho que não.

Graham Chapman | Foto: Reprodução/Reddit


Você usa alguma droga para incrementar seu trabalho?

Dinheiro.

Vamos falar sobre os inimigos da criatividade. Você mencionou que o sistema de ensino não facilita isso. A cultura woke é um fator sobre o qual você já falou. Como ela sufoca a criatividade?

Porque é uma interrupção interna. Você tem uma ideia e imediatamente se pergunta: “Opa, isso vai me causar problemas? Bom, tal pessoa não teve problemas com isso na quinta escapou”. Mas tudo isso imediatamente o impede de ser criativo.

Qual a porcentagem de sua obra que você acha que seria inadmissível ou proibida agora?

Essas coisas mudam de modo imprevisível. Quero dizer, houve uma enorme explosão na Inglaterra, acho que em 1965, quando Kenneth Tynan, que era nosso melhor crítico de teatro, usou deliberadamente a palavra “fuck”. Foi como uma explosão nuclear. Agora eu digo “fuck” e uma ou duas pessoas vão torcer o nariz. A maioria não se importa mais com isso, mas esta era uma palavra proibida. 

Mas existem muitas outras palavras que…

Bem, há a palavra com “n” (NR: “nigger”, um termo considerado ofensivo e racista). Agora, vamos considerar a seguinte situação: se eu realmente pronunciar a palavra com “n” hoje, o que não vou fazer — relaxe! Mas, se o fizesse, estaria nos jornais amanhã. Agora, qual seria a utilidade? Os lacradores, acho, perderam a noção. O significado de uma palavra depende de seu contexto. Se eu for sarcástico, o que estou querendo dizer é o oposto das palavras que estou realmente dizendo. Se você não entende a ironia e levar isso a sério, você entenderá de maneira completamente errada a intenção do escritor ou do artista.

A lacração certamente não é a única inimiga da criatividade. O senhor falou sobre executivos, os donos do dinheiro que comandam a indústria do entretenimento. Como eles inibem a criatividade?

Tudo o que eles querem é o oposto do que as pessoas criativas querem. Eles querem clareza. Os executivos, em geral, são muito estressados, porque estão tentando controlar tudo, especialmente as coisas que não podem realmente controlar. Se você conversar com terapeutas, fisioterapeutas, quiropráticos ou osteopatas, eles dirão que as pessoas mais difíceis de trabalhar são as pessoas de negócios, porque elas estão tentando controlar o processo mesmo quando estão sendo massageadas, enquanto as pessoas mais fáceis de trabalhar são as pessoas criativas, porque estão acostumadas a deixar as coisas acontecerem sem tentar controlá-las. Veja, quando você está brincando com sua própria imaginação, você não deveria estar tentando controlá-la. Você está apenas vendo onde isso o leva, porque não existe essa coisa chamada erro. É muito, muito bom quando as pessoas me dizem: “Obrigado por me fazer rir.” Sempre me faz sentir bem, porque rir é bom. Eu vou te dizer quando percebi isso. Eu estava no Festival de Cinema de Sarajevo, e eles estavam falando sobre o período em que [os bósnios] estavam sitiados. Sarajevo fica em um vale, e os sérvios, nas colinas, estavam arremessando granadas. Eles tinham atiradores de elite com rifles telescópicos, atirando nas pessoas que atravessavam a rua. E o que (os bósnios) fizeram foi encontrar uma garagem subterrânea e a converteram em um cinema, e, quando escurecia, iam todos a esse cinema e assistiam a comédias. Muitas coisas do Monty Python, me disseram, mas muitos filmes de comédia, e, no final, quando iam embora, sentiam-se melhor. Nada havia mudado, mas eles se sentiam melhor. Poderiam lidar melhor com essa situação. De repente percebi que o riso realmente nos ajuda. Isso nos leva a uma parte de nossa mente em que provavelmente estamos mais saudáveis do que em qualquer outra situação. É essa coisa de rir de si mesmo. Não tenho tanta certeza de que os lacradores riam de si mesmos, não importa quão hilários eles sejam.

O programa Monty Python foi produzido originalmente de 1969 a 1974?

Sim, e então começamos a fazer filmes.

Como foram recebidos? Aquele foi um momento difícil para o Reino Unido. As pessoas gostaram? Quantas pessoas ficaram indignadas porque você estava tirando sarro de tudo o que era britânico?

Algumas pessoas ficaram ultrajadas, sim. Quero dizer, minha mãe não entendeu, e muitos executivos da BBC também não. Não estou brincando, houve uma reunião depois que quatro ou cinco programas foram ao ar. Houve uma reunião dos chefes de departamentos — diretor de ficção, diretor de jornalismo, diretor de documentários. Todos eles se reuniram, umas nove pessoas, e seis ou sete deles basicamente disseram: “Esse tal de Python não é bom, e deveríamos cancelar.” Cerca de três quartos dos principais criadores de programas na Inglaterra achavam que deveríamos ser descontinuados. Eu tenho lutado contra isso toda a minha vida, porque as pessoas no comando não sabem o que estão fazendo. Eles não têm ideia do que estão fazendo, mas não têm ideia de que não têm ideia do que estão fazendo. E essa é a parte perigosa.

Como os críticos e a mídia reagiriam ao filme A Vida de Brian se fosse lançado hoje, e não há quase 45 anos?

Não sei. Isso causou um grande alvoroço na época. Quando estreou em Nova Iorque, fomos condenados pelos judeus liberais e por uma das outras três denominações judaicas. E então fomos condenados pelos calvinistas, pelos católicos, pelos luteranos. Ao todo, sete igrejas.

Poster do filme A Vida de Brian, do grupo Monty Python | Foto: Reprodução

E todas elas se odiavam!

Todos disseram a seus seguidores: “Não assistam a este filme, cuja mensagem central é ‘pense por si mesmo'”. Mas você está certo, porque [o ator] Eric [Idle] disse: “Conseguimos algo muito bom. É a primeira vez em 500 anos que eles conseguem chegar a um acordo sobre qualquer coisa”.

Existe alguma maneira de tornar a política engraçada?

Você quer dizer mais engraçada do que já é? Acho que o grande problema é este: as pessoas — ah, isso vai soar muito profundo — não entendem a diferença entre solenidade e seriedade. Você pode ter uma conversa perfeitamente séria, como a que tivemos agora. Estamos levando as coisas a sério, mas sem sermos solenes. As pessoas pensam que qualquer coisa com diversão ou humor não é séria. Na verdade, não é solene. Você sempre pode ter uma discussão séria com humor e, como as pessoas não percebem a diferença, acham que quem é um pouco bem-humorado carece de seriedade. Acho isso muito triste.


Esta entrevista foi publicada originalmente na Reason.com e na revista Reason: John Cleese’s War on Wokeism

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2 comentários
  1. NELSON MACHADO
    NELSON MACHADO

    Sou um fanático admirador do Monty Python e do John Cleese porque eles são os gênios do cinismo e cara de pau que originaram um filhote como o Borah. Ele tiram sarro com classe e com base intelectual (a partida de futebol dos filósofos é brilhante). São inimitáveis porque têm cultura acadêmica sólida, derrubando o mito que pra ser engraçado basta ser sacador de banalidades urbanas. Os idiotas brasileiros que tentam fazer humor inteligente fracassam pateticamente: queriam ser Monty Pithon mas nasceram Danilo Gentil ou, mais ridículo e fracassado ainda, Fábio Porchat (detalhe que a matéria não explora: nenhum produto topou fazer a História de Brian que tirava sarro do cristianismo com elegância, quem salvou a lavoura foi o Beatle George Harrison que era amigo dos Pithon e colocou sua grana na realização. Devemos mais essa ao inesquecível Beatle,

  2. Roberto Gomes
    Roberto Gomes

    Que lindo Dagomir. Lavou a minha alma. Não ri mas enterneceu minha alma. Obrigado. Abraço

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