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Ilustração: Shutterstock
Edição 151

Lula e a política inflacionária

Politizar o Banco Central para reduzir na marra as taxas de juros é uma ideia tão antiga quanto estúpida

Rodrigo Constantino
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Não faltam “especialistas” querendo quebrar o termômetro para curar a febre do paciente. No caso da economia brasileira, eles observam as altas taxas de juros e imediatamente apontam os culpados: os especuladores, o mercado, o Banco Central independente. Essa confusão entre causa e efeito está no cerne de muita ideia equivocada. Politizar o Banco Central para reduzir na marra as taxas de juros é uma ideia tão antiga quanto estúpida. A estupidez, porém, tem sido a marca registrada do lulismo.

“Se os governos desvalorizam a moeda para trair todos os credores, você educadamente chama este procedimento de ‘inflação’”, ironizou George Bernard Shaw. Para compreender o enorme risco do controle político de um Banco Central, talvez seja preciso voltar no tempo até as origens do dinheiro. Segundo o austríaco Ludwig von Mises, o dinheiro não pode surgir por decreto estatal ou algum tipo de contrato social acordado entre os cidadãos; ele deve sempre se originar num processo de livre mercado.

Ludwig von Mises | Foto: Wikimedia Commons

O escambo, que os homens praticam desde os primórdios da civilização, conta com sérias limitações. Um problema crucial é a necessidade de um desejo mútuo coincidente, ou seja, os dois agentes envolvidos na troca precisam concordar exatamente com o que recebem em relação ao que oferecem. Outro problema é o das indivisibilidades, isto é, uma troca teria de ter a mesma magnitude de valor. Basta pensar na situação de alguém querendo trocar uma casa por vários produtos distintos, para mostrar a impraticabilidade desse método. Eis quando surge o dinheiro.

Em The Mystery of Banking, o economista Murray Rothbard explica melhor a origem do dinheiro e os riscos inflacionários provenientes do papel-moeda. Justamente por conta dessas barreiras do escambo, que atende não mais que as demandas de uma vila primitiva, o próprio mercado criou gradualmente um meio de troca mais eficiente. Foi ficando claro para os comerciantes que o uso de uma commodity amplamente aceita como meio de troca fazia muito sentido. Em vez de um produtor de calçados ter de encontrar um vendedor de carne disposto a trocar exatamente carne por calçado, bastava ele vender no mercado seus produtos em troca dessa commodity, e depois usá-la para comprar os bens que desejava.

Murray Rothbard | Foto: Wikimedia Commons

Para atender a esta função, a commodity deveria ser demandada por seu valor intrínseco, ser divisível, portável e durável, além de apresentar um elevado valor por unidade. Durante a história, diversas commodities serviram como moeda, mas invariavelmente o ouro e a prata foram os escolhidos quando possível. Com o tempo, surgiu a demanda por certo padrão homogêneo de commodity usada como moeda. Os reis estampavam seus rostos nas moedas de ouro, garantindo sua qualidade e peso, e em troca cobravam a “senhoriagem”.

Durante a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os “Continentals”

Automaticamente surgiu o risco de o próprio governo alterar o peso das moedas e embolsar a diferença. Era o começo do “imposto inflacionário”, ou a desvalorização da moeda. Esta prática foi bastante facilitada com a introdução do papel como moeda, servindo no início como um certificado garantindo o peso do ouro. É importante notar que praticamente todas as moedas mais importantes, como o dólar, a libra, o marco ou o franco, começaram simplesmente como nomes para diferentes unidades de peso do ouro ou da prata.

Moedas antigas do Império Romano | Foto: Shutterstock

Naturalmente, o risco de falsificar a moeda sempre existiu, e por isso mesmo surgiu a demanda por padrões e selos de governos ou bancos. A falsificação de moeda é uma fraude, que enriquece o fraudador em detrimento do restante dos usuários da moeda. Os primeiros a receberem o dinheiro falsificado se beneficiam à custa dos últimos. O governo tem como função justamente evitar tal fraude, punindo com prisão os criminosos. O grande problema é quando o próprio governo adere à prática de “falsificação”, com o respaldo da lei. A invenção do papel-moeda foi um convite tentador para os governos embarcarem nessa nefasta prática inflacionária.

Em primeiro lugar, o governo deve garantir que os pedaços de papel são resgatáveis em seu equivalente em ouro. Caso contrário, ninguém irá aceitá-los voluntariamente. Em seguida, o governo geralmente tenta sustentar seu papel-moeda através de legislação coercitiva, instando o público a aceitá-lo, incluindo os credores de montantes em ouro, através das leis de “legal tender”. O papel-moeda passa a ser aceito como pagamento dos impostos, e os contratos privados são forçados a aceitar pagamento em papel. Quando a moeda começa a ser amplamente aceita e utilizada, o governo pode então inflar sua oferta, para financiar seus gastos de forma menos escancarada.

A inflação é o processo pelo qual o imposto escondido é usado para beneficiar o governo e os primeiros a receberem a nova moeda. Após um prazo suficiente, o governo adota um passo definitivo: corta a ligação da moeda com o ouro que ela representava antes. O dólar, por exemplo, passa a ter uma vida própria, independente do ouro que ele representava anteriormente, e o ouro passa a ser apenas uma commodity qualquer. O caminho para a inflação está totalmente livre de obstáculos.

Foto: Shutterstock

O primeiro papel-moeda governamental do Ocidente, segundo Rothbard, foi emitido na província de Massachusetts, em 1690. Sua origem ilustra muito bem o relato acima. Massachusetts estava acostumada a periódicas expedições militares contra a Quebec francesa, e os ataques bem-sucedidos permitiam o pagamento dos soldados com a pilhagem obtida. Dessa vez, no entanto, a expedição perdeu feio, e os soldados retornaram para Boston sem pagamento e descontentes. O governo de Massachusetts, então, precisava arrumar alguma outra forma para pagá-los. Em dezembro de 1690, foram impressas 7 mil libras em notas de papel. O governo garantira que tais notas seriam resgatadas em ouro ou prata em poucos anos, e que novas notas não seriam emitidas. No entanto, já em fevereiro de 1691, o governo declarou não ter recursos novamente, e emitiu mais 40 mil libras em notas para pagar a dívida acumulada. Além disso, as notas não poderiam ser resgatadas pelos próximos 40 anos. As portas do inferno inflacionário estavam abertas!

Pelo menos em três vezes na história norte-americana, desde o fim do período colonial, os norte-americanos sofreram bastante com o sistema de fiat money. Durante a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os “Continentals”. A desvalorização foi abrupta, e antes mesmo do término da guerra essas notas não tinham mais valor algum. O segundo período foi durante a guerra de 1812, quando os Estados Unidos saíram do padrão ouro, mas retornaram dois anos depois. O terceiro período ocorreu durante a Guerra Civil, com a emissão dos greenbacks, notas não resgatáveis para pagar a guerra. No final da guerra, os greenbacks tinham perdido metade de seu valor inicial. Mais recentemente, pode-se falar numa quarta fase de elevada inflação norte-americana, na década de 1970. Após medidas keynesianas adotadas pelo governo, a inflação medida pelo Índice de Preço ao Consumidor (CPI) subiu mais de 8% ao ano na década, fazendo com que o dólar perdesse metade de seu valor no período entre 1969 e 1979.

Cédula Continental, impressa em 1775 | Foto: Wikimedia Commons

O mecanismo encontrado pelos países desenvolvidos para mitigar esse risco da política inflacionária foi justamente a criação de bancos centrais independentes, para separar o ciclo político do econômico. Com quadros técnicos e um mandato estritamente voltado para a preservação do valor da moeda, esses bancos centrais estariam mais protegidos da tentação política de apelar para o imposto inflacionário. Nem sempre essa blindagem funciona, mas ela tem sido razoavelmente eficaz no mundo livre. Já governos populistas invariavelmente seguem pela rota inflacionária, como a Venezuela e a Argentina podem atestar. Esses são os exemplos que Lula pretende seguir.

Leia também “Democracia inabalada”

19 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Excelente matéria com uma verdadeira aula de moedas e meio circulante.
    O grande problema é você colocar isso na cabeça bitolada de um esquerdista que ainda habita o século XVI.

  2. CARLOS ALBERTO SPAGGIARI SOUZA
    CARLOS ALBERTO SPAGGIARI SOUZA

    Excelente explicação sobre a origem do dinheiro (papel moeda), e também da importância de um Banco Central independente, não comandado por interesses políticos.

  3. Silvio T Correa
    Silvio T Correa

    Excelente! Grande aula!
    Parabéns.

  4. Ronaldo Rodrigues Rosa
    Ronaldo Rodrigues Rosa

    Sem sombra de dúvidas o artigo é uma aula brilhante de economia. Parabéns, Constantino.

  5. Glauco Bonilha
    Glauco Bonilha

    Assinate de primeira hora, por admiração do quadro de jornalistas dessa revista, que tem o grande Augusto Nunes, sinto-me à vontade para solicitar uma cobrança sobre a cobertura do segundo maior estelionato do País, Lojas Americanas. Só perde para a maior organização criminosa de todas as galaxias (parece frase da Dilma), que foi o PT

  6. Daniel BG
    Daniel BG

    Um banco central independe é a melhor garantia contra a espoliação.

  7. Beatriz Leite
    Beatriz Leite

    Gostei de sua aula ! porem sinto muitas saudades de te ouvir na JovemPan.Voltei a ler livros que aí não tem censura e não sou obrigada a ver pessoas sem qualificação na minha sala. Confesso que agora vejo as noticias aqui no meu cp .pois tudo isto vai passar.

  8. Joel Luiz Oliveira Rios
    Joel Luiz Oliveira Rios

    Se o congresso ficar de quatro e tirar a autonomia do Banco Central, só resta a quem tem o real, comprar dólar e abrir conta lá fora em um país onde haja democracia com o devido respeito ao cidadão.

  9. Giovani Santos Quintana
    Giovani Santos Quintana

    Muito explicativa a matéria. Parabéns.

  10. MARCIO MARQUES PRADO
    MARCIO MARQUES PRADO

    Texto didático e indicado à todas as pessoas que tentam entender que a dinâmica inflacionária passa por caminhos claros e precisos. Cabe ao BC independente, atuar com instrumentos de pesos e contra-pesos para atenuar as interferências políticas na moeda.

  11. Frederico Oliveira dos Santos Melo
    Frederico Oliveira dos Santos Melo

    Excelente, muito didático!

  12. David Peixoto Sampaio
    David Peixoto Sampaio

    Bem explicado! Qualquer leigo entendi.

  13. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Constantino, Arminio Fraga, Persio Arida e Elena Landau sabem disso? E ainda assim fizeram o L?

  14. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Brilhante Constantino,aula Magna.Dou apenas minha opinião;Brasil não tem como viver com esse governo,impossível. Os ministros escolhidos é o próprio Inferno de Dante.

  15. Gilson Teixeira santos
    Gilson Teixeira santos

    Gostaria de enviar este artigo para o Lula e a trupe dele (o poste ). A defesa da independência do banco central é crucial para travar o molusco e sua sede de poder.

  16. Mara Nadia Jorge Mattos
    Mara Nadia Jorge Mattos

    Aqui é só aguardar, brevemente estaremos ferrados, economia nas mãos do Lula e sua turma será o caos

  17. Iury de Salvador e Lima
    Iury de Salvador e Lima

    No Brasil, é melhor comprar ouro.
    Não corre o risco de o Xandão apertar um botão e confiscar seu patrimônio.
    E ouro vc consegue colocar na mala e fugir para o exílio, vide o que está acontecendo com os manifestantes, isso pra não falar o que o ditador do Canadá fez com os manifestantes de lá.

    1. Renato Perim
      Renato Perim

      Outra saída é comprar dólares e abrir uma conta no exterior. No dinheiro lá de fora ninguém mexe. Pelo menos os ditadores daqui não tem acesso a ele.

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