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Foto: Shutterstock|Pedrinho Matador na penitenciaria 2 de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, em 2004 | Foto: José Patrício/Estadão Conteúdo/AE |Tatuagem "MATO POR PRAZER" no braço de Pedrinho Matador | Foto Reprodução/TV Globo|Foto: Zamrznuti tonovi/Shutterstock|Foto: Shutterstock
Edição 156

‘Mato por prazer’

A associação entre tatuagem e criminalidade costumava me parecer tão forte que eu sugeria como piada que o crime era causado por um vírus neurotrópico de ação lenta introduzido pela agulha do tatuador

Theodore Dalrymple
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Até poucos dias atrás, eu nunca tinha ouvido falar da cidade de Mogi das Cruzes, ainda que sua população seja de quase meio milhão de pessoas, e esse seja o local de nascimento do jogador Neymar. Agora conheço o lugar, porque foi onde Pedrinho Matador encontrou a morte alguns dias atrás. Claro, além de uma ligação com Mogi das Cruzes, a única coisa que Neymar e Pedrinho Matador compartilhavam era a feiura de suas tatuagens.

Foi cerca de 25 anos atrás que notei, pela primeira vez, a ascensão das tatuagens na pirâmide social, de presidiários a celebridades e milionários (o que não é uma distância longa, segundo alguns). Até então, elas basicamente se restringiam a marinheiros, criminosos e alguns poucos membros degenerados das classes altas, como o rei George V. A relação entre a tatuagem e a criminalidade é observada há tempos, por exemplo, pelo médico, criminologista e antropólogo italiano Cesare Lombroso, que hoje é bastante ridicularizado, no fim do século 19. Claro, precisamos ter cuidado para não cometer um erro lógico elementar: se todos os criminosos são tatuados, a conclusão não é todas as pessoas tatuadas são criminosas.

Quando piadas suscitam contestação em vez de risadas, as pessoas não devem estar aproveitando muito a vida

No entanto, quase todos os detentos na prisão em que trabalhei eram tatuados, muitos em estilo amador, com nanquim. Por exemplo, eles tatuavam linhas pontilhadas ao redor do pescoço com uma tesoura e as palavras “Corte aqui”. Às vezes, as instruções eram seguidas. Eu me lembro de um paciente, um jovem de baixa estatura, que tinha as palavras “Sem medo” tatuadas em letras grandes na lateral do pescoço, na esperança de que, assim, ele transmitisse a impressão de perigo e ferocidade. Nos meios em que ele circulava, infelizmente, as palavras foram tratadas como desafio ou incitação, e o homem foi agredido diversas vezes por causa delas, pelo menos uma resultando em fratura craniana.

Foto: Zamrznuti tonovi/Shutterstock

A associação entre tatuagem e criminalidade costumava me parecer tão forte que eu sugeria como piada que o crime era causado por um vírus neurotrópico de ação lenta introduzido pela agulha do tatuador, só para descobrir depois que minha piada foi levada a sério, e as pessoas estavam fazendo esforços reais para refutá-la. Admito que não era uma piada muito boa, mas, quando piadas suscitam contestação em vez de risadas, as pessoas não devem estar aproveitando muito a vida.

Sabendo que eu tinha um pequeno interesse pela ascensão da tatuagem nas classes sociais, uma revista de cultura me enviou um livro sobre o assunto, escrito por uma acadêmica. Ela afirmava que as tatuagens eram uma forma de autoexpressão, como se a autoexpressão fosse uma coisa boa, independentemente do que está sendo expressado. Pedrinho Matador, por exemplo, com certeza estava se expressando quando tatuou “Mato por prazer” no antebraço, mas não acho que isso tenha feito nada de bom por ele nem por ninguém.

Tatuagem “Mato por prazer” no braço de Pedrinho Matador | Foto Reprodução/TV Globo

A pesquisadora que escreveu o livro era, ela mesma, tatuada e afirmava fazer parte de uma comunidade de pessoas tatuadas. Achei isso curioso. Ao se tatuar, o que era algo um tanto incomum para acadêmicos fazerem na época, ela estava se rebelando e se conformando ao mesmo tempo, ainda que estivesse se conformando com uma “comunidade” de rebeldes. A rebelião conformista é típica da mente adolescente, então me ocorreu que adolescentes mais velhos estavam ensinando adolescentes mais novos nas nossas universidades. Aliás, por que não? Afinal, adentramos a primeira era de adolescentes geriátricos: isto é, pessoas que cresceram nos anos 1960 e amaram tanto a própria adolescência que decidiram nunca mais deixá-la para trás.

Minha primeira teoria sobre o porquê da escalada das tatuagens na pirâmide social (o que acabou acontecendo com grande rapidez; diz-se que cerca de um terço dos homens adultos nos Estados Unidos e na Inglaterra estão tatuados) era que se tratava de uma tentativa da burguesia que sentia culpa de seu status ou boa sorte de se identificar com grupos marginalizados, como os detentos. “Identificar-se” simbolicamente com os menos afortunados deste mundo é uma forma indolor de ser bom, a maioria das outras maneiras de ser bom requer algum tipo de sacrifício.

Essa teoria me pareceu plausível na época. Afinal, é dito que a origem de usar bonés de beisebol virados para trás (não que eu goste de usá-los virados para a frente; alguém consegue parecer inteligente usando um boné de beisebol ou, por falar nisso, mascando chiclete?), o que até mesmo jovens privilegiados nos Estados Unidos e em outras partes fazem agora, surgiu da necessidade de os visitantes das prisões virarem o boné para poder chegar mais perto do vidro que os separava do detento visitado.

Foto: Shutterstock

No entanto, se algum dia foi verdadeira, essa tese não é mais — ela não tem mais como dar conta de uma epidemia tão disseminada de automutilação. Não tenho uma teoria totalmente satisfatória para explicar o fenômeno, mas desconfio que, em uma sociedade de massa, a necessidade de se expressar e se conformar ao mesmo tempo — o que é individualismo sem individualidade — possa ser uma explicação parcial.

Mas vamos voltar brevemente à história de Pedrinho Matador. Eu nunca tinha ouvido falar dele até alguns dias atrás e, quando li a história, mal pude acreditar. Como um homem pode ter conseguido — e sido capaz de — matar 47 pessoas enquanto estava preso, sem contar as cerca de 50 que ele matou do lado de fora? Se o Brasil tivesse adotado a pena de morte e o executado no início de sua carreira, não haveria gritos de ultraje no restante do mundo, pelo menos nos Estados Unidos e na Europa Ocidental (o Japão e a Índia de alguma forma se safaram da pena de morte): mas não há um vislumbre de indignação diante da ideia de um homem ter podido matar 47 outros homens enquanto estava na prisão, o que sugere condições nas quais alguém desvia o olhar, porque elas devem ser muito terríveis.

Pedrinho Matador, na Penitenciária 2, de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, em 2004 | Foto: José Patrício/Estadão Conteúdo/AE

Mas que atire a primeira pedra aquele que não tiver pecados. Na Inglaterra, fazemos as coisas de uma forma mais refinada. O dr. Shipman matou aproximadamente 200 pacientes — por acaso, mais ou menos no decorrer dos 25 anos em que a tatuagem entrou na moda — por meio de uma injeção de morfina. Suas vítimas eram principalmente mulheres mais velhas, o que, presumo eu, não seja o caso dos alvos do Pedrinho Matador.

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7 comentários
  1. José Roberto Manfio
    José Roberto Manfio

    Tatuagem principalmente aquelas que são feitas em togo o rosto e cabeça, causa um mau estar, que não consigo nem olhar para o indivíduo.

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Respeito quem tem, mas eu não gosto de tatuagem.

  3. José Mário
    José Mário

    Então, passei 34 anos como profissional de polícia militar, atuei não somente em meu Estado (PE) como em vários outros também.

    Posso afirmar nesses anos todos que o Pedrinho “matador” é fruto do enfraquecimento do SER POLICIAL, onde isso somado a vários outros fatores, impõe essa situação sine qua nom: MATADOR PRESO CONTINUA MATANDO…

    Quando no exercício da minha profissão citada acima, procurava claro nos suspeitos indícios de seu perfil através do tipo de tatuagens que usavam, pois muitas eram confissões de quem eram e faziam. Importante que os criminosos mais perigosos que enfrentei não tinha tatuagens, eram discretos e passavam despercebidos num grupo de 5 ou 6. Ou seja, os criminosos mais periculosos não ostentam, antes procuram a surdina, a discrição, e raros são aqueles que são pegos por descuidos e falta de atenção.

    A minha geração de policiais pernambucanos (PM), enfrentou a tentativa na década de 80 e 90, de ocupação do COMANDO VERMELHO no nordeste, e foram diversos confrontos, muitos deles desiguais porque os criminosos tinham fuzis automáticos ou semiautomáticos enquanto nós ainda usávamos os de tiro por ação do ferrolho, ou seja, cada tiro precisávamos puxar o ferrolho, ejetar o cartucho e recolocar outro para então fazer o disparo, e os criminosos tinham fuzis com carregadores de 25 a 30, e disparava apenas apertando o gatilho…

    Mas trazendo para os dias de hoje, acredito que estamos caminhando para tempos muitos difíceis no enfrentamento ao crime, seja ele organizado ou não, e muito porque ao contrário de um criminoso preso por matar 50 e depois dentro da cadeia matar mais 47, só ficará preso mesmo quem matar um promotor, um juiz ou alguma autoridade do judiciário, os demais mal serão presos, é um método para deixar a sociedade insegura e aterrorizada, pois assim, presas fáceis serão.

    Em tempo: ARMAS NÃO MATAM, PESSOAS SIM.

  4. Jorge Luiz Soares Ribeiro
    Jorge Luiz Soares Ribeiro

    Excelente texto, como de costume. Parabéns.

  5. Vinícius da Silva Carneiro Lima
    Vinícius da Silva Carneiro Lima

    Tbm compartilho esse sentimento caro IPM , msm não sendo um praticante de leitura bíblica sou temente e consciente que esse fato é verídico e notório nos dias hoje , já tenho certeza plena .

  6. Divino Souto De Paula
    Divino Souto De Paula

    “adolescentes geriátricos”! vibrei com a expressão. T. Dalrymple é fantástico, já li quase todos os seus livros

  7. IMP
    IMP

    Estamos na entrada da nova SODOMA E GOMORRA, quem nao acredita basta comparar a atualidade com os 20 anos anteriores. A cada dia que passa as palavras da Biblia vao criando vida e o latente passou a ser realidade. Tenha a coragem e leia os 4 Evangelhos e com certeza entendera o meu comentario.

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