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Governo Lula volta com o programa Mais Médicos | Fotos: Walterson Rosa/MS
Edição 163

A escravidão volta a vigorar no Brasil

Com o objetivo de apagar o legado de Jair Bolsonaro, Lula sepulta o Médicos pelo Brasil e desenterra o Mais Médicos de Dilma Rousseff, que se transformou num instrumento político da ditadura cubana

Edilson Salgueiro
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Aplausos efusivos de um punhado de engravatados conduziram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao púlpito instalado no Palácio do Planalto. Naquele 3 de março de 2023, o petista anunciaria a retomada de um programa que submeteu milhares de profissionais de saúde cubanos à escravidão: o Mais Médicos, lançado há dez anos pela ex-presidente Dilma Rousseff.

Lula quer ressuscitar o Mais Médicos de Dilma | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Entusiasmado com a recepção da plateia, formada por ministros e jornalistas ideologicamente alinhados, Lula defendeu a volta do programa, que fora suplantado por um projeto mais eficiente — o Médicos pelo Brasil, sancionado em 2019 pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Nosso objetivo não é saber a nacionalidade do médico, mas a nacionalidade do paciente, que é um brasileiro que precisa de saúde”, disse o petista.

A declaração de Lula é uma tentativa de diminuir a desconfiança da população e das instituições especializadas sobre o Mais Médicos. Mas esse discurso sucumbe à realidade dos fatos. De 2013 a 2018, por exemplo, mais de 11 mil cubanos estiveram em 3 mil cidades brasileiras — ocupando 60% do total das vagas disponíveis. Brasileiros com formação no exterior (5 mil) e intercambistas (3,5 mil) preencheram as vagas restantes.

O Mais Médicos beneficiou 63 milhões de brasileiros espalhados por 4 mil municípios. Mas ninguém foi tão favorecido quanto a casta política cubana. Segundo o acordo intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), a ditadura instalada em Cuba tinha o direito de embolsar 70% do salário dos médicos, estimado em R$ 12 mil. Outros 25% ficavam com quem trabalhava de fato, enquanto 5% pertenciam à Opas.

Enviar médicos para o exterior não era apenas uma maneira de o governo cubano ganhar dinheiro, mas também uma estratégia de propaganda. Havana pretendia vender para o mundo a imagem de potência médica.

Jalecos extraditados

Assim que Bolsonaro venceu as eleições presidenciais de 2018, a ditadura cubana determinou que seus médicos deixassem o Brasil e voltassem para a terra natal. De acordo com o advogado André de Santana Corrêa, representante dos cubanos no país, a decisão de Havana atenta contra a Constituição Federal. “Essa medida fere quatro princípios fundamentais: o direito adquirido, a dignidade humana, a isonomia e o valor social do trabalho”, afirmou.

Corrêa argumenta também que o rompimento do acordo não é justificável, porque ambos os governos chamaram os médicos para trabalharem no Brasil por seis anos — e acabaram excluídos ao fim dos três primeiros. “Isso nos traz a ideia de escravidão moderna, como se os médicos cubanos fossem commodities”, ressaltou. “Eles tinham a perspectiva de melhorar suas condições de vida. Infelizmente, esse sonho não se tornou realidade.”

André de Santana Corrêa é advogado dos médicos cubanos no Brasil | Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Quase 200 médicos entraram na Justiça e pediram que seus contratos fossem negociados individualmente com o governo brasileiro. Em resposta, Havana passou a se movimentar para descobrir quem eram os cidadãos que estavam se rebelando. Havia um motivo especial: Cuba deixaria de abocanhar cifras milionárias à custa do trabalho alheio.

Uma decisão da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal deu parecer favorável aos médicos cubanos. Segundo o órgão, a questão não diz respeito ao cumprimento de um acordo bilateral, mas à necessidade de garantir aos profissionais de saúde a possibilidade de exercerem sua liberdade.

Nos Estados Unidos, a Justiça deu esperança aos profissionais que se sentiram ludibriados pelo governo de Cuba e pela organização que intermediou a negociação. Em abril de 2022, o Tribunal de Apelações do Distrito de Columbia concedeu a quatro cubanos que trabalharam no Mais Médicos o direito de processarem a Opas. Na denúncia, os profissionais alegam ter exercido trabalhos análogos à escravidão entre 2013 e 2018. Intermediária financeira de Brasília e de Havana, a Opas usou sua própria conta bancária nos EUA para converter reais brasileiros em dólares e transferir uma quantia significativa de dinheiro para a ditadura cubana, como mostrou reportagem do Wall Street Journal.

Raio X

É na esteira desses problemas que a equipe de Lula formulou a Medida Provisória n° 1165/2023. A matéria visa a restabelecer o Mais Médicos como o principal programa de direcionamento de profissionais para a rede de atenção primária à saúde (APS), que envolve prevenção, diagnóstico, tratamentos de baixa complexidade, reabilitação e cuidados paliativos. Há a previsão de contratar 15 mil pessoas em 2023, ampliando o total de participantes para 28 mil. Nesse cenário, o Médicos pelo Brasil perde o protagonismo.

O programa lançado durante o governo Bolsonaro recebeu a aprovação depois de extenso debate entre o Ministério da Saúde, o Congresso Nacional e as instituições especializadas que representam 560 mil profissionais habilitados nos Conselhos Regionais de Medicina (CRM). Já o Mais Médicos de Lula propõe ideias desfavoráveis para a classe médica, como o vínculo profissional exclusivamente por bolsa e a contratação de profissionais formados no exterior — sem a necessidade de revalidação do diploma.

O programa ressuscitado por Lula não prevê a fixação dos médicos nas comunidades — uma das questões mais importantes da atenção primária à saúde

“Participei desse debate no Parlamento”, disse o deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS). “Em que pese programas sempre terem espaço para aprimoramento, felizmente o Médicos pelo Brasil teve a discussão com a sociedade que faltou — propositalmente, em larga medida — na época do lançamento do Mais Médicos por Dilma. A Medida Provisória n° 1165/2023 havia sido assinada no mesmo dia em que médicos cubanos eram colocados em aviões e enviados como commodities ao Brasil, sem a menor discussão.”

Há diferenças fundamentais entre os programas

Algumas diferenças entre os programas chamam a atenção. No Médicos pelo Brasil, por exemplo, é possível estabelecer vínculos empregatícios com os profissionais depois do período de atuação por bolsa (dois anos). Há também a possibilidade de progressão salarial até R$ 36 mil para os médicos que atuarem em regiões de maior vulnerabilidade social. No Mais Médicos, por sua vez, o modelo de remuneração é exclusivamente por bolsa. Os profissionais recebem cerca de R$ 13 mil, mais gratificação equivalente a R$ 2,5 mil por mês, caso trabalhem durante quatro anos em regiões vulneráveis.

As distinções não param aí. O Mais Médicos retoma a possibilidade de contratação de profissionais formados no exterior — sem diploma revalidado — para preencherem os possíveis vazios assistenciais. No Médicos pelo Brasil, os profissionais com formação em outros países precisam comprovar sua competência através do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira (Revalida). Na prática, o governo Lula castiga as regiões vulneráveis com médicos desqualificados, aumentando ainda mais a desigualdade entre o atendimento dado à população mais carente e aquele concedido às pessoas mais ricas.

Bolsonaro e Queiroga, durante cerimônia de contratação dos primeiros profissionais do Médicos pelo Brasil | Foto: Alan Santos/Presidência da República

Outra diferença: no Mais Médicos 2023, a seleção dos profissionais segue critérios subjetivos. As convocações ocorrem por meio de chamamentos públicos — sem processos seletivos estruturados. Já o Médicos pelo Brasil estabelece regras objetivas, e os profissionais devem fazer uma prova eliminatória.

Por último, mas não menos importante, o Mais Médicos restringe o tempo máximo de atuação dos profissionais a oito anos (ciclo de quatro anos, prorrogáveis pelo mesmo período). No Médicos pelo Brasil, por sua vez, esse tempo é indeterminado para aqueles que possuírem o título de medicina de família e comunidade. O programa ressuscitado por Lula não prevê a fixação dos médicos nas comunidades — uma das questões mais importantes da atenção primária à saúde, segundo especialistas consultados por Oeste.

“O PT não é o Partido dos Trabalhadores?”

Agora, Lula tem um nó a desatar: o governo pretende restabelecer o programa de importação de profissionais estrangeiros via Opas? Para o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, a oposição deveria propor uma emenda à MP 1165/2023 que impedisse a evasão dos recursos dos médicos para ditaduras.

“O dinheiro deve ficar com os profissionais”, ressaltou Queiroga. “Sou contra a atual medida provisória. O PT não é o Partido dos Trabalhadores? Por qual motivo não assina a carteira dos médicos? Por que querem que os profissionais trabalhem de maneira clandestina, sem vínculo empregatício?”

Quem participa ativamente do processo de reconstrução da MP 1165/2023 é a deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP), que apresentou uma emenda proibindo a transferência de recursos para a ditadura cubana. “Não podemos ser coniventes com a apropriação indevida de pagamentos”, afirmou a deputada, ao argumentar que as bolsas deveriam ser pagas diretamente para os médicos — sem desvio de recursos para intermediários nem organismos internacionais.

Adriana Ventura quer barrar o envio de verbas para Cuba | Foto: Reprodução/Wikipedia

O presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Hiran Gallo, também alerta para a seleção de profissionais sem diploma revalidado. “Esse cuidado se ampara em dados estatísticos”, disse. “Desde que foi criado, em 2011, o Revalida já aprovou quase 12 mil médicos — dos quais pouco mais de 7 mil brasileiros (63%) formados no exterior e cerca de 4,5 mil estrangeiros (37%). O número de aprovados equivale a 18% do total de 62 mil candidatos que se inscreveram no exame.”

Apesar de serem maioria entre os aprovados, ressalva Gallo, os brasileiros formados no exterior têm um desempenho levemente pior que o registrado pelos estrangeiros. A média dos primeiros é de 17,8%, com cerca de 38 mil inscritos e pouco mais de 7 mil aprovados. Os estrangeiros chegam a 18,85% de aprovação, com 24 mil inscritos e quase 4,5 mil aprovados.

“A explicação para esse fenômeno está na baixa qualidade das faculdades de medicina, principalmente nas fronteiras do Brasil com o Paraguai e com a Bolívia, que formam a maioria dos estudantes brasileiros que fazem o Revalida”, observou o presidente do CFM. “Apesar da barreira da língua, estudantes de outras nacionalidades têm desempenho melhor que os brasileiros. É um sintoma preocupante.” Para Gallo, admitir a participação de portadores de diplomas estrangeiros sem aprovação no Revalida — de qualquer nacionalidade — configura uma situação de risco para os pacientes. “Especialmente para aqueles que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde, ou seja, a parcela mais vulnerável da população”, salientou.

O CFM acredita que não há necessidade de celebração de acordos com instituições de ensino superior estrangeiras. Atualmente com 389 cursos, o Brasil é o segundo país em número de escolas médicas no mundo — atrás apenas da Índia, com 392.

Hiran Gallo é presidente do CFM | Foto: Divulgação/CFM

Raphael Câmara, ex-secretário nacional de Atenção Primária do Ministério da Saúde, diz que Lula pretende emplacar o Mais Médicos por motivos financeiros. “O valor usado para contratar os profissionais no Médicos pelo Brasil é o dobro do verificado no Mais Médicos”, observou. “O salário é maior, e os custos trabalhistas são altos. O governo prefere contratar mais pessoas, mesmo que sejam menos qualificadas. A ideia é apostar no volume e dizer para os brasileiros que estão fazendo mais contratações.”

No Médicos pelo Brasil, lembra Câmara, os profissionais tinham carteira de trabalho assinada. “Esse vínculo é semelhante ao estabelecido com funcionários da Petrobras”, explicou. “Os médicos não podem ser demitidos sem um motivo concreto. Para demitir, é necessário um processo administrativo complexo. Aqueles que trabalham corretamente permanecem em seus cargos. Há um plano de carreira, o que é absolutamente fundamental.”

Patrícia Izetti, ex-coordenadora-geral de Doenças Crônicas do Ministério da Saúde, acredita que os programas lançados por Lula, Dilma e Bolsonaro têm objetivos distintos. “O Médicos pelo Brasil foi construído para ser uma política de Estado, e não de governo”, argumentou. “O PT quer acabar com esse projeto, pois entende que é uma propaganda do governo Bolsonaro.”

Patrícia Izetti é ex-coordenadora-geral de Doenças Crônicas do Ministério da Saúde | Foto: Reprodução/Instagram
Em compasso de espera

A oposição ainda trabalha para reparar os equívocos do Mais Médicos, considerado um dos principais projetos do governo Lula-3. O retorno desse programa, idealizado por Dilma em 2013, simboliza a ressurreição das piores práticas políticas da América Latina — paternalismo, violência e opressão.

É com esse cenário em vista que os parlamentares têm de agir no Congresso Nacional. Quando a discussão sobre o Mais Médicos chegar à Câmara dos Deputados e ao Senado, os representantes do Legislativo terão de definir quais princípios nortearão o debate: o respeito aos direitos humanos, valor indispensável às democracias liberais, ou a veneração às ditaduras, comportamento habitual em países subdesenvolvidos.

O Médicos pelo Brasil é um arquétipo das melhores políticas governamentais, porque tem regras claras, recursos finitos, fiscalização independente e objetivos definidos: atender às necessidades dos mais pobres, que não têm acesso à saúde, e premiar os profissionais competentes. O Mais Médicos, ao contrário, é um modelo perfeito da ineficiência dos programas estatais: regras obscuras, recursos infindáveis, fiscalização atrelada ao governo e objetivos reais indecifráveis. Lula quer levar o país de volta para a UTI.

Leia também “Mais Médicos: jalecos escravizados”

5 comentários
  1. Marcos Rogério de Medeiros Almeida
    Marcos Rogério de Medeiros Almeida

    De fato, no Brasil, médicos que se formaram em universidades estrangeiras precisam passar pelo processo de revalidação do diploma, chamado de Revalida, para poderem exercer a profissão no país.

    Acredito que deveria fazer teste os médicos formados no Brasil e no exterior ( os erros médicos não são poucos e a falta de uma prova (tipo entrar na OAB ), deveria ser feito para entrar no CRM. Aposto que os estrangeiros ainda iria ganhar dos nacionais . Mas essa questão ninguém levanta …pobre não faz medicina no Brasil.

    Essa medida deveria ser necessária para garantir a segurança e a qualidade do atendimento médico prestado à população, por formados aqui ou fora.

  2. MNJM
    MNJM

    Excelente matéria. O foco do desgoverno é destruir tudo quer for favorável ao povo (ainda diz que é o pai dos pobres), administração petista é um fiasco, pura ideologia com muita incompetência.
    Esperamos que o Congresso atue para não deixar prevalecer o apoio a ditadura cubana, ignorando os direitos humanos e a qualidade dos serviços para o povo. PT quer vitrine, nunca esteve preocupado com o povo, pior q muitos não enxergam.

  3. Bruno Araujo Barbaresco
    Bruno Araujo Barbaresco

    Qdo o presidiário ficar doente, vai procurar o Mais médico, ou vai para o Sírio??

  4. Eduardo
    Eduardo

    Conheci um médico do programa “MAIS MÉDICOS” vindo de Cuba.
    A primeira coisa que ele fez foi casar com uma brasileira, ter uma filha e em seguida trazer toda a família que estava em Cuba para o Brasil.
    Segundo ele, a situação em Cuba em todos os aspectos ( inclusive na medicina ) é uma grande catástrofe.

  5. Dalva da Silva Prado
    Dalva da Silva Prado

    O objetivo desse desgoverno petista é ,desfazer tudo o que foi feito em favor da população. Espero que o Congresso barre mais essa estupidez, protegendo os mais pobres que merecem assistência médica segura.

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