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Edição 173

As cartas de um aprendiz do Diabo

Mesmo diante de tantos sinais claros do que está em curso, até mesmo o líder da oposição teve de repetir em público que tudo está uma maravilha na democracia brasileira

Rodrigo Constantino
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Zé era um enviado do Capeta na missão de arrematar almas no Brasil. País tropical, sensual, com um tradicional “jeitinho” ao lidar com a coisa pública, o ambiente se mostrava um tanto favorável à sua missão, à exceção da insistência no Cristianismo. Não era tão difícil assim seduzir aquela pobre gente para um pacto mefistofélico, abandonando Deus no caminho. Mas Zé, meticuloso e ambicioso, não estava satisfeito. Resolveu escrever uma carta ao próprio chefe, o Capiroto, para ver o que mais poderia ser feito para acelerar sua missão.

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O Diabo, então, respondeu, e ali começou uma troca de correspondência entre ambos. O Diabo, mais paciente e experiente, tentava acalmar seu jovem aprendiz: “Tudo está indo conforme o planejado”. Mais e mais almas sucumbiam, mostravam-se incapazes de resistir às tentações oferecidas pelo Capeta, e os ingressos para o Inferno batiam recorde atrás de recorde, matando a Disney de inveja. “Não há qualquer motivo para tanta apreensão assim”, dizia o Diabo ao seu promissor discípulo.

“Um desejo cada vez maior por um prazer cada vez menor é a fórmula”, explicou. E os brasileiros não caíam feito patinhos nesse truque? Não desejavam mais e mais, vivendo em condições cada vez piores? Tudo apontava na direção certa. O calor infernal já dava para ser sentido à distância. “Uma religião moderada é tão boa para nós quanto nenhuma religião — e mais divertida”, colocou o Diabo. Zé teve de concordar que o povo brasileiro era tão crente que mantinha várias religiões simultâneas, mas quase nunca com devoção sincera. Os cristãos fiéis eram poucos, na prática. A palavra da moda no país era “moderação”. Estava tudo de acordo com o plano.

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O povo brasileiro é brincalhão, gosta de palavrões, mas esse não era o maior trunfo do Diabo. Mil piadas obscenas, ou mesmo blasfemas, não ajudam tanto na condenação de um homem quanto sua descoberta de que quase tudo o que ele deseja fazer pode ser feito, não apenas sem a desaprovação, mas com a admiração de seus semelhantes, desde que consiga tratar a coisa em si como uma piada. E quem leva o Brasil a sério? Quem assina uma carta pela democracia para ajudar um corrupto bajulador de tiranos certamente sabe que tudo é uma grande piada. E o Diabo adora!

Zé entendia os argumentos do chefe, mas não estava totalmente convencido. Por que o Brasil não poderia acelerar numa Ferrari, como a Venezuela, rumo ao seu destino? O Capeta rebateu: “De fato, a estrada mais segura para o Inferno é a gradual — a inclinação suave, suave sob os pés, sem curvas repentinas, sem marcos, sem placas de sinalização. Aquela velha história do sapo escaldado, lembra? A melhor forma de destruir a liberdade e a fé é fatiá-las como um salame, aos poucos, para que as vítimas sintam ainda viver na normalidade”.

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Espalhar a descrença na busca pela Verdade é fundamental, e aqui o Diabo parabenizou seu aprendiz. Zé tinha contribuído bastante para fazer com que os brasileiros não mais levassem a sério a possibilidade de conhecer o que é Verdadeiro, substituindo isso pelos debates infindáveis onde tudo é mera opinião, e nenhuma vale mais do que a outra. A grande coisa é fazer a vítima valorizar uma opinião por alguma qualidade diferente da verdade, introduzindo assim um elemento de desonestidade e faz de conta no seu coração. “Genocida”, gritava a elite adestrada. “Democrata”, bradava a mesma turma quando era o adversário socialista.

“O medo torturado e a confiança estúpida são estados mentais desejáveis”, disse o Diabo. “A tarefa a realizar é conseguir que um homem primeiro valorize a justiça social como uma coisa que o Inimigo exige, e então levá-lo ao estágio em que ele valorize o Cristianismo porque pode produzir justiça social. Ou seja, infiltrar-se na própria Igreja e transformar Jesus num ativista de esquerda, eis a jogada de mestre! E não seja humilde, Zé, pois isso é coisa de quem segue nosso Inimigo: você teve mérito nessa conquista! Veja hoje quantos padres pregando a nossa mensagem!”

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“Acredite nisso, não porque é verdade, mas por algum outro motivo; esse é o jogo”, explicou o Mestre do Inferno. “Pare para pensar em quanta gente boa no Brasil coloca o pragmatismo acima da Verdade, gosta de se considerar uma pessoa ‘prática’, desprovida de radicalismos, de paixões, disposta a acreditar em duas coisas contraditórias e impossíveis ao mesmo tempo, tudo para não receber o rótulo de ‘extrema direita’ por parte da nossa turma na extrema esquerda!”

O ódio é melhor combinado com o medo. A covardia, entre todos os vícios, é puramente dolorosa — horrível de prever, horrível de sentir, horrível de lembrar; o ódio tem seus prazeres

“Assim como escolhemos e exageramos o prazer de comer para produzir gula, escolhemos esse prazer natural da mudança e o transformamos em uma exigência de novidade absoluta. Tem dado certo, Zé! ‘Mudança’, clamam nossos soldadinhos. ‘Pior do que está não fica’, defendem. E assim toda tradição é derrubada, todo tabu é abandonado, e toda insanidade é colocada no altar por ser ‘moderna’. Essa coisa de fazer as pessoas repetirem que homem pode ser mulher e vice-versa foi incrível. Depois que aceitam essa loucura, tudo é possível. Estamos ganhando, Zé, não se desespere.

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O Inimigo adora banalidades. De um curso de ação proposto, Ele quer que os homens, até onde posso ver, façam perguntas muito simples: ‘É justo? É prudente? É possível?’. Agora, se pudermos manter os homens perguntando: ‘Isso está de acordo com o movimento geral de nosso tempo? É progressista ou reacionário? É assim que a história está indo?’, eles negligenciarão as questões relevantes.

Não se esqueça de usar o argumento ‘cara eu ganho, coroa você perde’. Se aquilo pelo qual ele ora não acontece, então essa é mais uma prova de que as orações de súplica não funcionam; se acontecer, ele será, é claro, capaz de ver algumas das causas físicas que levaram a isso e, ‘portanto, teria acontecido de qualquer maneira’, e assim uma oração concedida torna-se uma prova tão boa quanto uma negada de que as orações são ineficazes. 

O ódio é melhor combinado com o medo. A covardia, entre todos os vícios, é puramente dolorosa — horrível de prever, horrível de sentir, horrível de lembrar; o ódio tem seus prazeres. Portanto, muitas vezes é a compensação pela qual um homem amedrontado se reembolsa pelas misérias do Medo. Quanto mais ele temer, mais ele odiará. E o ódio também é um grande anódino para a vergonha. Para fazer uma ferida profunda em sua caridade, você deve primeiro derrotar sua coragem. Se a coragem é a virtude das virtudes, o que dizer desse povo amedrontado, acovardado e com medo, Zé? Estamos no bom caminho!

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Para produzir os melhores resultados da fadiga do paciente, você deve alimentá-lo com falsas esperanças. A sacada da chuva de picanha foi sensacional, devo admitir. Todo ditador ou mesmo demagogo — quase todo astro de cinema ou cantor — pode agora atrair dezenas de milhares de ovelhas humanas com ele. Eles se entregam (o que há deles) a ele; nele, para nós. Pode chegar um momento em que não teremos necessidade de nos preocupar com a tentação individual, exceto para alguns poucos. Na era moderna ficou ainda mais fácil coletar almas em lotes!

‘Democracia’ é a palavra com a qual você deve conduzi-los pelo nariz. O bom trabalho que nossos especialistas em filologia já fizeram na corrupção da linguagem humana torna desnecessário adverti-los de que eles nunca devem ser autorizados a dar a essa palavra um significado claro e definível. Eles não vão. Nunca lhes ocorrerá que ‘Democracia’ é propriamente o nome de um sistema político, mesmo de um sistema de votação, e que isso tem apenas a mais remota e tênue conexão com o que você está tentando vender a eles. 

Nem, é claro, eles devem ser autorizados a levantar a questão de Aristóteles: se ‘comportamento democrático’ significa o comportamento de que as democracias gostam ou o comportamento que preservará uma democracia. Pois, se o fizessem, dificilmente poderia deixar de ocorrer a eles que não precisam ser os mesmos. Em nome da democracia, portanto, esse povo vem matando cada pilar necessário para a sobrevivência de algo que mereça ser chamado de democracia. É lindo ver a ditadura vingar em nome da democracia!

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Agora vai, Zé, continuar com sua importante missão. Estou cansado, preciso de um tempo relaxando nas labaredas do Inferno. Não se cobre tanto assim, não fique preocupado em demasia: todo o seu trabalho até aqui tem rendido ótimos frutos. Vejo o Brasil como extremamente promissor. Já posso salivar pela quantidade gigantesca de almas ingressando por aquele portão. Mesmo diante de tantos sinais claros do que está em curso, até mesmo o líder da oposição, a esperança dos patriotas conservadores cristãos, teve de repetir em público que tudo está uma maravilha na democracia brasileira. Quer vitória maior do que essa, Zé?”

Após as trocas de cartas, Zé ficou mais tranquilo. De fato, seu esforço tinha sido recompensado. O Brasil era quase todo deles. Justo um país considerado católico, devoto ao Inimigo. Não era pouca coisa, e Zé tinha todo o direito de se regozijar. Ligou na mesma hora para o cafetão e encomendou uma dezena de prostitutas — algumas menores de idade, além dos melhores vinhos e muito charuto cubano. A festa seria de arromba!

Leia também “Manicômio tributário”

17 comentários
  1. Jorge Luiz Dias Ferreira
    Jorge Luiz Dias Ferreira

    Texto Magistral. Parabéns, Constantino!

  2. Lenart Palmeira do Nascimento Filho
    Lenart Palmeira do Nascimento Filho

    Constantino, muito boa essa sua versão de Cartas de um Diabo ao seu Aprendiz. Lewis deve estar olhando para o Brasil com preocupação, de onde estiver. A Revista Oeste é um farol no meio desse mar de jornais e revistas de esquerda, incluindo aí o consórcio.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Rodrigo Constantino, seu artigo é de rir pelas metáforas, mas é de chorar pela realidade que vivemos.
    É lamentável que os propagadores da “democracia relativa” não tenham a mesma seriedade e honestidade para tomar a mesma decisão de Clítenes e decretar seu próprio ostracismo.

  4. Herbert Gomes Barca
    Herbert Gomes Barca

    sensacional ! só uma dúvida o tal do Zé tinha sobrenome de ALEXANDRE !!??

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A sociedade brasileira precisa ir as ruas.

  6. Hans Herbert Laubmeyer Filho
    Hans Herbert Laubmeyer Filho

    Simplesmente excelente.

  7. Alcione Magalhães Ferreira
    Alcione Magalhães Ferreira

    Excelente,inteligente,Constantino.

    1. Dirceu Pardinho Andrade
      Dirceu Pardinho Andrade

      Excelente artigo do Consta. Enquanto os suditos ideais anestesiam o canavial de ingênuos e alguns malandros brasileiros, estes segundos já com malas prontas para fugirem quando o “paraíso” se estabelece nas terras tupiniquins, avisados eles foram.

  8. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    O mal está nas paradas de sucesso, trazendo fome, guerra e mortes.

  9. Paulo Ribeiro dos Santos Filho
    Paulo Ribeiro dos Santos Filho

    Constantino sempre impecável – ” atualmente os homens escolhem as verdades mais convenientes ao convívio “social” , nunca as que passam pela chave do intelecto ” ontem recebi uma msg que dá conta que o “papa” deseja reescrever a Bíblia – É SERIO ISSO?

  10. Ed Camargo
    Ed Camargo

    A verdade é para o poder o que o fogo é para a cera, por isso o poder e a verdade são inimigos mortais. Esse texto do Constantino é eficiente e esclarecedor sobre o inimigo que enfrentamos do lado de dentro.
    Uma nação tem como sobreviver aos seus idiótas e até mesmo seus ambiciósos. Más uma nação não tem como sobreviver a traição que vem de dentro.
    Um inimigo na fronteira é menos formidável e fácil de reconhecer pois ele carrega suas cores e sua bandeira abertamente e marcha de encontro ao país. Más, o traidor, ele se move livremente e dissimuladamente ao nosso redor. Ele é um sabotador a serviço do inimigo.
    Ele possui a natureza traidora de um escorpião, ele é cruel, más não demonstra, ele anda pelos corredores do congresso fazendo fofócas e piadas.
    O traidor não tem aparência de traidor pois ele veste a camisa do seu time e fala a mesma línguagem e possui as mesmas caracteristicas familiares de suas vítimas, e seus delitos passam despercebidos ou ignorados.
    Ele usa a mídia ( GloboLixo) como um papagaio repetidor de frases polarizantes, como: “Estado Democrático de Direito”, “O amor venceu” e dessa forma mantendo o povo pacífico e inerte enquanto arquiteta seus planos de ditadura.
    Ele é um mestre na arte de projeção, fazendo uso da palavra “Golpe”, “Genocida” e como em um passe de mágica, toda sua atividade nefária é recalibrada como crimes de seus oponentes ou predecessores.
    Ele usa táticas de “Fraude” e “Manipulação” para idealizar, confundir e intimidar outros, sua face é reconhecida em todo territorio nacional, ele vis-à-vis ao demônio, apela à falta de princípios morais que se encontra imersa dentro do coração dos homens.
    Ele apodrece o espírito de uma nação, trabalhando sorrateiramente na calada da noite, em sua clandestinidade enfraquece os pilares da nação.
    Ele infecciona e corrompe o corpo político de uma forma que a sordidez domine, fazendo com que o mesmo já não tenha como resistir e a nação sucumbe a corrupção, destruição, violência e miséria.
    Um assassino é menos temível, o traidor é uma praga para qual não há vacina e contamina a nação, nada contém sua sêde insaciável de poder, logo transformando-se em um Tirano.
    A nossa educação e experiências de vida, o moral ideal sob o qual muitos de nós fomos criados, ser honesto e fazer o bem, molda-nos naquilo que somos hoje. Isso também nos dá um intrínseco entendimento das complexidades da falácia humana, tais como: Decepção, falsidade, heresia. Nossos antagonistas, conhecidos como “Petralhas”, gostam de usar o medo e animosidade para intimidar-nos.
    Eles são extremamente desagradáveis e exibem uma arrogância sem restrições. Alguns de nós quando somos alvo dos petralhas, nos sentimos intimidados e até nos tornamos desânimados, pois psicologicamente não entendemos como outros seres humanos podem ser tão perversos e desumanos. Se voce se sente desta forma, não deixe o medo definir quem voce é, todos nós que estamos nesta luta contra o malígno devemos ser firmes em nossas convicções e retidão. O único propósito da existência do medo, é a conquista dos fracos. A verdade é o inimigo mais temível dos petralhas e o medo é arma que utilizam. Não deixe o desespero, destruir sua autoridade moral.

  11. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    De tanta metáfora só pensamos que é proibido falar, mas sabemos que o Brasil não ficará calado com tanta injustiça. Botemos fé em gente como Constantino, esse é um exemplo de como combater o capeta

  12. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Constantino, esse artigo é campeão, amei demais.Uma leitura não é suficiente,precisa reler para apreciar,parabéns. Você é talento puro.

  13. Aline Nizer Lederer
    Aline Nizer Lederer

    Excelente o artigo!

  14. Celso Ricardo Kfouri Caetano
    Celso Ricardo Kfouri Caetano

    PERFEITO, CONSTANTINO……..texto digno de nota e de reflexão. Brasil o país do futuro só se for no inferno mesmo.

    Celso R K Caetano

  15. Emilio Sani
    Emilio Sani

    Parabéns pelo excelente texto, vai fazer companhia para o também excelente Chifres, rabo e tridente do Ernesto Lacombe.

  16. Emilio Sani
    Emilio Sani

    Parabéns pelo belo texto, ficará junto com o do Lacombe como os melhores sobre o diabo.

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