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Incêndio florestal em Texas Creek, localizado a aproximadamente 27 quilômetros ao sul de Lillooet, Canadá | Foto: Reprodução/Redes Sociais/BC Wildfire Service
Edição 174

Commentariolus sobre incêndios no Canadá e fumaças no Brasil

De maio para cá, o país da América do Norte perdeu para o fogo mais de 3% de sua floresta boreal

Evaristo de Miranda
-

Aprendi o silêncio com os faladores,
A tolerância com os intolerantes,
A bondade com os maldosos
E, por estranho que pareça,
Sou grato a esses professores.”
Kahlil Gibran (1883-1931)

O artigo Incêndios no Canadá e queimadas no Brasil, publicado na Revista Oeste, apontou o silêncio de grande parte da mídia brasileira e estrangeira sobre a ocorrência e a dimensão dos atuais incêndios florestais no Canadá e seus impactos ambientais. E suscitou reações superiores às produzidas pelo drama do Canadá em redes sociais e grupos. O artigo, não os incêndios.

Sobre a crise ambiental canadense, apesar de seus impactos hemisféricos cada vez maiores, segue o apagão midiático, de artistas, ONGs e políticos. Como se ninguém tivesse nada a dizer. Imagine se fosse no Brasil. De maio para cá, o Canadá já perdeu para o fogo mais de 11 milhões de hectares de suas florestas, ou mais de 3% de sua floresta boreal. Agora são cerca de 900 incêndios ativos, dos quais quase 600 fora de controle. Desde o início desta crise ígnea, já foram detectados mais de 4,2 mil incêndios florestais.

Em dois meses, o Canadá calcinou e reduziu a cinzas uma área florestal superior ao total das áreas desmatadas na Amazônia nos últimos dez anos, para se ter uma ideia da dimensão territorial do desastre. É como queimar em 60 dias uma área superior à totalidade dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo ou um Portugal ou mais de duas Suíças. Quase o equivalente a Santa Catarina. E a situação se agrava sob um silêncio midiático quase absoluto.

O artigo suscitou demandas, ponderações, críticas e reparos de leitores, aos quais cabe agradecer. Houve também reações de especialistas em tudo, os tudólogos. Esses especialistas em guerra na Ucrânia e preço de fertilizantes recentemente opinavam sobre submarinos e naufrágios, e agora tornaram-se experts em clima e incêndios florestais canadenses. Suas mensagens diretas, em grupos ou redes sociais, como sinais de fumaça, merecem esclarecimentos, com dados, para afastar o smog do desentendimento. Sem dados, você é só mais uma pessoa com opinião, dizia W. Edwards Deming. Diálogo se constrói com argumentos, e não com convicções e apriorismos.

O foco do artigo foi apontar o silêncio da mídia nacional e internacional sobre os incêndios do Canadá. E não confrontar essa catástrofe ambiental aos desafios ambientais da Amazônia, cujo recorde de queimadas em junho, o maior em 16 anos, foi assinalado no mesmo artigo. A maioria dos leitores reativos, quando questionada, informou ter ouvido falar dos incêndios canadenses pela primeira vez, através do artigo na Revista Oeste. E quem havia lido ou ouvido algo antes não tinha ideia da dimensão colossal dos incêndios de 2023 até ler o artigo. Q.E.D.

Canadá já perdeu para o fogo mais de 11 milhões de hectares de suas florestas | Foto: Reprodução/Redes Sociais/BC Wildfire Service

O artigo não acusou ninguém pelos incêndios. Reportou fatos, números e interpelou quem, aqui e alhures, sempre pronto a atribuir responsabilidades e resultados catastróficos sobre as florestas no Brasil, parece não ter nada a dizer sobre a situação florestal dramática e em agravamento no Canadá. A intenção não foi condenar ou justificar incêndios lá ou desmatamentos cá, tecnicamente incomparáveis, e sim apontar o persistente silêncio midiático e de artistas gárrulos, políticos e ONGs loquazes face ao inferno canadense.

Entre os comentários enfumarados recebidos, alguns explicaram a dificuldade do Canadá com incêndios por ser uma situação nova: “o Canada tem mais dificuldades do que nós em apagar incêndios porque nunca tiveram que fazer isso [sic]” ou “nunca as florestas do Canadá incendiaram antes”. Na realidade, há séculos as florestas canadenses sofrem incêndios. Nos últimos 40 anos (de 1983 a 2022), a média anual de incêndios foi de 7.102.

Para outro especialista, “isso está acontecendo porque estamos atingindo o ponto de não retorno do aquecimento planetário”. Aliás, nos raros artigos sobre o tema, os incêndios canadenses servem apenas para comprovar os efeitos das mudanças climáticas. Na realidade, as maiores ocorrências de incêndios florestais não são recentes, nem dos últimos 20 anos, e sim do século passado. Em três ocasiões o número de incêndios ultrapassou a casa dos 10 mil anuais no Canadá: em 1989 (10.988), em 1991 (10.542) e em 1998 (10.466), sempre no século 20. Ainda não se atingiu metade desses valores em 2023. Desde a virada do século, nas décadas de 2000 e 2010, houve redução nos registros de incêndios (gráfico acima). Em 40 anos, os menores números foram registrados em 2009 (3.766 incêndios) e agora em 2020 (3.928 incêndios). No ano passado foram 4.883. Em 2023, até meados de julho, foram mais de 4,2 mil incêndios. O clima favorece as condições de eclosão e propagação do fogo. A causa da maioria é a atividade humana.

Os incêndios canadenses são uma parte da dinâmica de seus ecossistemas florestais | Foto: Reprodução/Redes Sociais/BC Wildfire Service

Outro especialista vaticinou: “Indiretamente, o desmatamento da Amazônia é responsável pelo que está acontecendo no Canadá”. Como analisar o alcance na física da atmosfera e na metafísica da noosfera desse “indiretamente”? É surrealista afirmar sobre uma troca inter-hemisférica “indireta” de calor e umidade entre o sul da Amazônia e o Canadá. O fator humano local, não o distante amazônico, é apontado pelos canadenses como a principal causa de incêndios primaveris (maio/junho). No Quebec, dados de 2012 a 2021 demostraram: 80% dos incêndios florestais resultaram da atividade humana.

Parte dos incêndios canadenses tem origem em descargas elétricas. Muitas delas são desencadeadas pelas colunas de ar aquecido dos incêndios com cinzas, aerossóis etc. Não apenas. Os canadenses nas últimas décadas buscaram um estilo de vida, com residências e bairros situados cada vez mais em áreas florestais, em contato com a natureza. A urbanização das florestas, a limpeza primaveril de folhas e galhos (rebuts) em áreas urbanizadas, o adensamento da rede viária, elétrica e de comunicação, a circulação de veículos, os trabalhos florestais e agrícolas, o desenvolvimento da mineração e da logística decorrente ampliaram o risco de incêndios, sem citar piromaníacos e outros interesses escusos. Além do aumento do turismo de aventura, trilhas e acampamentos ao ar livre, destacado pela governadora Danielle Smith, da província de Alberta, grande produtora mundial de petróleo, combustível fóssil ligado às emissões de gases de efeito estufa.

Parte dos incêndios canadenses tem origem em descargas elétricas | Foto: Reprodução/Redes Sociais/BC Wildfire Service

Face à crescente e problemática interface urbano-florestal, um programa nacional foi fundado há mais de 20 anos. O FireSmart™ Canada ajuda os canadenses a aumentar a resiliência das áreas urbanizadas a incêndios florestais e a minimizar os impactos. Morar onde ocorrem incêndios florestais coloca casas e vidas em risco. Os padrões de desenvolvimento desempenham papel significativo na ampliação ou redução do impacto de um incêndio florestal em bairros e comunidades. Em áreas de alta densidade, o fogo passa facilmente de um edifício a outro. O potencial de dano se intensifica com materiais de construção inflamáveis. Como não dar origem a incêndios florestais e viver com mais segurança? Existem orientações técnicas e até aplicativos do FireSmart™ sobre localização de casas, cuidados com entorno e vizinhos (zonas de ignição), orientações acerca da natureza dos materiais e projetos de construção, para-raios etc. Parece insuficiente. A recém-publicada “Carta honesta de um bombeiro americano para o Canadá” aponta o quanto o fator humano pesa no início do fogo, o desafio de alinhar o desenvolvimento de edifícios e infraestrutura com as responsabilidades de proteção contra incêndio, os limites do modelo de gestão pública do problema no Canadá. E ele recomenda ao país seguir o modelo australiano de prevenção e combate a incêndios.

Este ano, em meados de julho, os incêndios já devastaram mais de 11 milhões de hectares, cinco vezes a média anual, bem antes do final desta crise

Os comentários recebidos sobre a inexperiência canadense são descabidos. Os canadenses têm longa história no combate a incêndios florestais, em meios e operações. Exemplo de meios é o Canadair CL-415, avião anfíbio e cisterna, construído como avião corta-fogo, projetado e construído no Canadá e empregado em todo o mundo no combate aéreo a incêndios. E a Havilland Canada lançou recentemente o DHC-515.

Os canadenses têm longa história no combate a incêndios florestais | Foto: Reprodução/Redes Sociais/BC Wildfire Service

Em termos operacionais, o Canadian Interagency Forest Fire Centre Inc. monitora e disponibiliza informações sobre o combate ao fogo em todo o país. Mapas e dados são atualizados pelo Centre Interservices des Feux de Forêt du Canada. Ainda assim, cerca de mil bombeiros do México, Itália, Portugal, Espanha, França, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Costa Rica, Chile, Coreia do Sul e África do Sul estão no Canadá para ajudar.

Os incêndios canadenses são uma parte da dinâmica de seus ecossistemas florestais. Em dezenas de anos, a floresta se recupera, se não houver reincidência do fogo e outros fatores desfavoráveis. O extraordinário na atual dinâmica dos incêndios canadenses é seu alcance e propagação. A média anual de áreas queimadas nos últimos 40 anos foi de 2.205.312 de hectares (desvio-padrão de 1.703.266 de hectares). Algo semelhante a queimar todo ano uma área equivalente ao Estado de Sergipe (2.192.542 de hectares). Este ano, em meados de julho, os incêndios já devastaram mais de 11 milhões de hectares, cinco vezes a média anual, bem antes do final desta crise. A previsão é de favorabilidade aos incêndios. Segundo o Climate Prediction Center, o resto do verão será bem seco este ano, em boa parte da América do Norte.

Qual será o valor final da área florestal queimada no Canadá e das emissões de carbono resultantes em 2023? Qual será seu impacto sobre a saúde humana e a mortalidade prematura no Canadá e nos Estados Unidos? Vale ver o relatório canadense de 2021. E sobre a biodiversidade? Metade das espécies de aves do Canadá, ou 150, e 85 espécies de mamíferos — bisão, urso, lobo, carcaju, wapiti, castor, lince, esquilo, alces… e o caribu da floresta — viviam ali. Sobre as causas dessa dinâmica incendiária, sobre a evolução do balanço entre áreas queimadas e em regeneração, futuras reflexões com numbers, maps & facts trarão uma compreensão sobre determinados padrões territoriais e seu determinismo antropogênico ou natural. Cabe aguardar.

Nuvem de fumaça dos incêndios canadenses sobre os Estados Unidos, em junho de 2023 | Foto: Reprodução/Nasa Earth Observatory

Sobre “comentar comentários” de tudólogos e não aprender a silenciar com esses faladores, dois pensadores iluminam a compreensão, sem incandescê-la. Para o filósofo e beato franciscano João Duns Scotus (1266-1308), “a cognoscente et cognito paritur notitia” (“a informação nasce do conhecedor e do conhecido”). Para o místico espanhol San Juan de la Cruz (1542-1591), “ab objecto et potentia paritur notitia (“a informação nasce do objeto e da faculdade/poder de entendimento”). E prossegue San Juan de la Cruz: “Portanto, se alguém falasse a um homem sobre coisas que ele nunca foi capaz de entender e cuja semelhança ele nunca viu, ele não teria mais iluminação delas do que se nada tivesse sido dito a ele”.

Grandes incêndios e pontos de fogo na América do Norte, em 19 de julho de 2023 | Foto: Firms-Nasa

Leia também “Incêndios no Canadá e queimadas no Brasil: dois pesos e poucas medidas”

11 comentários
  1. Pedro Hemrique
    Pedro Hemrique

    Esclarecedor seu artigo! Seria ótimo se os jornalistas do chamado “Consórcio de imprensa” antes de escreverem e falarem sobre este assunto aprendessem a pesquisar. Não é de se estranhar que este consórcio não comente o assunto afinal este é o país do faz de contas!

  2. Carlos Eduardo F. Rezende
    Carlos Eduardo F. Rezende

    Parabéns pela aula Evaristo. Esses “terraplanistas, esqueceram do Bolsonaro.

    Não seria o Bolsonaro responsável pelos incêndios no Canada?

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Gostei do termo ”tudólogo”, kkkk

  4. Jorge Luiz Ojeda
    Jorge Luiz Ojeda

    O di Caprio é Macron devem estar com dificuldade para respirar, afinal o Canadá fica bem mais perto do a Amazônia.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Bom é ver o grau de idiotismo do tudólogo, relacionar os incêndios do Canadá com queimadas na Amazônia

  6. Mario Giannini
    Mario Giannini

    Parabéns Professor!

    Isso está se tornando cada vez mais frequente. Os imperialistas, travestidos de moralistas humanitários, escondem suas limitações e nos agridem com teorias sem base. Que cuidem de suas vidas e não nos aborreçam mais com tantas insinuações. A história nos mostra do que são capazes.

    Abraço.

  7. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Os excelentes artigos do professor Evaristo de Miranda nos proporcionam enriquecedores comentários de leitores que nos instigam pesquisar os nomes citados como o do professor Ricardo Felício que pude buscar na internet em “conversa paralela” da revista “Brasil Paralelo” e observar a razão da leitora Maria Macia. Parabéns Evaristo de Miranda e leitores da Revista Oeste.

  8. RCB
    RCB

    Governos, imprensa e ONGs controlam os meios de comunicação e criminalizam a liberdade de informação e manifestações nas redes sociais. Sobrou muito pouco, como esse artigo revelador da verdade e da desinformação deliberada com a extensão dos incêndios no Canadá. Não falta muito para a Amazônia ser entregue por “nove dinheiros”…

  9. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Khalil Gibran foi um iluminado
    Na abertura do seu artigo ja disse tudo citando esse formidavel escritor
    A Maria Macia abaixo tb foi muito feliz no seu comentario
    Estamos vivendo um periodo horrivel q nunca pensei na minha inocencia que poderia existir
    Temos que lutar e insurgir em nome dos nossos antepassados que tanto sofreram pra nos deixar esse legado. Parabens Evaristo
    Continue nos presenteando com seus arrigos

  10. Nelson Ramos Barretto
    Nelson Ramos Barretto

    Excelente artigo. A manipulação da imprensa distorce os fatos com exageros e silêncios. Pierre Bourdieu explica como a imprensa pode manipular uma notícia apresentando um aspecto da questão e ocultando outro. Até agora não vi nenhuma notícia. Ou melhor, hoje ouvi que o Brasil está enviando bombeiros para ajudar o Canadá, mas não se sabe porque? E sobre a nossa Amazônia continuam os exageros.

  11. Maria Macia
    Maria Macia

    Perfeita análise. E tudo isso na semana em que a USP demitiu o grande climatologista Ricardo Felício, um dos mais corajosos cientistas brasileiros. Sua coragem em denunciar as fraudes do IPCC e quetais lhe custou a carreira. Falar a verdade em tempos de nazismo dos algoritmos tem um preço tão alto, às vezes, quanto o da conservação do próprio carbono. O carbono que eles querem eliminar tem CPF. É triste, mas é a verdade crua de um mundo cujo rei está nu – para quem tem olhos para ver.

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