Um forte sistema de alta pressão atmosférica, de origem polar, se formou durante vários dias ao longo da costa sul brasileira. Enquanto as pessoas cuidavam de suas vidas, o sistema crescia, até que atingiu o litoral, trazendo ventos fortes, chuvas e ressaca. Um barco pesqueiro com oito tripulantes virou no litoral de Santa Catarina, e dois pescadores permaneciam desaparecidos. O sistema então subiu o país, empurrando à sua frente uma massa de ar extremamente quente. A onda de calor fez os termômetros baterem 34 graus em São Paulo e quase 40 graus no Rio. Parecia que alguém tinha aberto a porta de um forno que derramava seu ar quente sobre as pessoas.
No Rio, multidões ocuparam as praias. Andar um quarteirão tornou-se prova de resistência. As pessoas entreolhavam-se, sem conseguir se lembrar de uma sequência de dias tão quentes. Até que, na tarde de uma quinta-feira, entrou um vento terral que encapelou o mar e depois girou, passando a vir de sudoeste e trazendo muitas nuvens. De madrugada a frente fria chegou, derrubando as temperaturas e despejando chuva sobre a cidade.
Na sexta choveu e fez frio o dia inteiro. À noite saímos, a família inteira, em meio ao temporal, em busca de um jantar.
A maioria dos restaurantes da Avenida Atlântica, na orla de Copacabana, são armadilhas para turistas. Há boas exceções. Encontramos uma delas, meio por acaso, meio por recomendação. Uma cantina italiana; um refúgio da chuva e do vento, escondido em meio ao caos do bairro. Entramos.
Um trio musical de violoncelo, violino e acordeom tocava canções italianas. Os clientes pediam músicas. Eu já sabia o que pediria.
Fui cumprimentado por um casal que me reconheceu. Sempre é bom ouvir palavras encorajadoras, e essas vieram acompanhadas da oferta de uma taça de vinho. Bebi com alegria. Nos sentamos em uma mesa atrás de uma coluna e pedimos pizza branca e mais vinho. Eu pensei: “Como é bom estar vivo, como é bom ter uma família. Como é bom poder comer e beber quando se tem fome e sede”.
Outro casal, do outro lado do salão, pareceu me reconhecer; o homem levantou uma taça de vinho em minha direção, fazendo um brinde; sua mulher o acompanhou no gesto.
Eu levantei a minha taça. “Saúde!” Brindamos à distância.
“Parabéns”, ele disse em voz alta, me cumprimentando por meu trabalho e por uma coragem que nem sei se tenho. Sempre tenho vontade de dizer que não faço nada demais, é apenas meu trabalho, minha resposta a um chamado que não consigo explicar direito. Quero dizer que não sei mais do que ninguém, que estou permanentemente em busca de respostas.
Mas não digo nada.
Cabeças se viravam e rostos sorriam em nossa direção. A cantina agora era um abrigo em que nos refugiávamos do mundo para celebrar a fraternidade entre estranhos, cidadãos comuns unidos, talvez, pela mesma sede de liberdade e pela fuga da chuva. Naquela noite nos saciávamos com vinho; um dia nossa sede será saciada com justiça. Enquanto esse dia não chega, como disse mais ou menos Chesterton, devemos uns aos outros uma terrível lealdade.
Minha filha termina seu prato sob meu olhar e o da minha mulher. Um cheiro de azeite enche o ambiente. Que privilégio ter abrigo e comida nessa noite de temporal. Que privilégio descobrir nos olhos de estranhos que sementes boas estão germinando.
O trio de músicos está ao nosso lado; é minha vez de fazer um pedido. Peço que toquem Brucia la Terra, a música do filme O Poderoso Chefão.
O músico do acordeom sorri quando ouve meu pedido. Ele começa a tocar, seguido pelo violoncelo e o violino.
Um trecho da versão em português diz:
Fale baixinho e só o céu vai nos ouvir
Diga que o nosso amor ninguém vai destruir
E eu lhe dei a minha vida
Você me trouxe a paz que tanto procurei
Que poder tem a música.
Lá fora a chuva cai forte, molhando justos e ímpios, filósofos e bandidos, trabalhadores e os que vivem de explorar o trabalho. Dentro da cantina estamos todos embalados pela canção: eu e minha família e, nas outras mesas, outras famílias, casais, grupos de amigos.
Nesta noite — pelo menos nesta noite, pelo menos neste momento — somos todos irmãos.
Que privilégio saber tocar um instrumento.
Alguém pergunta a idade do senhor que toca o acordeom. Ele tem quase 90 anos. O som dos três instrumentos se mistura e se eleva:
Fale baixinho e me envolva com calor
Me abrace forte e confesse o seu amor
Eu lembro de um texto que li em um antigo exemplar da revista Reader’s Digest, de uma coleção de edições do tempo da Segunda Guerra Mundial que minha tia Denise mantinha guardada na casa de praia em Maxaranguape, no Rio Grande do Norte. No texto alguém explicava o sentido da vida.
A música, o pão e o vinho, e essa aliança provisória e inesperada com desconhecidos, me dizem que somos instrumentos de desígnios maiores que mal compreendemos
“Imagine uma casa isolada em uma enorme planície, em uma noite escura. Está caindo uma forte tempestade, com raios e trovões.” Na escuridão e na chuva tremenda, a única luz vem da casa. Lá dentro, alguém resolve abrir as janelas. Nesse momento, um pássaro entra por uma janela, vindo do temporal. Ele atravessa a sala voando e sai por outra janela, de volta à escuridão.
“Esse pássaro somos nós”, dizia o texto, “e a breve passagem pela sala iluminada é a nossa vida”. É nisso que penso enquanto bebo da taça de vinho e olho minha mulher, minha filha e a temporária irmandade de desconhecidos que me cercam com encorajamento e afeto.
Estamos, todos, em um breve voo por uma sala iluminada.
Mas o som do acordeom livra minha alma de aflição. A música, o pão e o vinho, e essa aliança provisória e inesperada com desconhecidos, me dizem que somos instrumentos de desígnios maiores que mal compreendemos.
A música que eu havia pedido chega ao fim. Estendo a mão para cumprimentar o senhor do acordeom. Na minha mão, dobrada e escondida, está uma gorjeta que é maior do que eu poderia dar, mas muito menor do que ele merece.
Ele retribui meu aperto de mão e coloca a nota no bolso sem olhar.
Depois, sorri.
Eu sorrio também.
“Que Deus te abençoe, te guarde e te proteja”, digo em pensamento.
Lá fora nos espera a chuva que continua caindo, muito forte e muito fria, sobre o Rio, sobre o Brasil.
Leia também “O discreto charme do conservadorismo”
É muita inspiração Motta. Lendo seu brilhante texto fui montando as imagens.
Passou um filme em minha cabeça relembrando os gratificantes momentos que já vivi seja assistindo ao filme O Poderoso Chefão ou lendo as páginas da revista Reader’s Digest.
Muito singelo! Vc tem o dom de transmitir sentimentos maravilhosos relacionados a fraternidade, família, amizade, . Esse lindo texto passa aconchego , paz, esperança . Muito gostoso ; estava precisando . Obrigada!
Que privilégio ler sua crônica!
Mas que lindo texto, Motta. Parabéns!
Esse relatos do cotidiano são bacanas.
Muito obrigado pelo texto. simplesmente maravilhoso.
Motta, agradeço sempre suas palavras! Exalam sobriedade.
Todo mundo deveria saber tocar um instrumento…
Que delícia o texto de Roberto Motta!
Leveza, simplicidade e ao mesmo tempo tenacidade e um convite à reflexão!
Roberto, seu texto me fez viajar para fora dessa baderna que vive o nosso país…poucos minutos, mas que valeram a pena! Parabéns.
Maravilhoso
A tempos não lia uma coisa assim, leve, tranquila, e por trás uma mensagem cheia de esperanças. Belíssimo texto parabéns Grande Motta. Digo eu: QUE DEUS ABENÇÕE SEMPRE VOCÊ E SUA FAMÍLIA.
Que maravilha de texto Motta! Fui transportado para uma mesa próxima a você. Um brinde à vida!
Admiro seu trabalho, pelo seu conhecimento, pelas pesquisas que faz. Este texto – O país da chuva – é um texto brilhantemente poético, numa linguagem de poesia pura. Outra atitude que vejo em toda sua escrita e seus posicionamentos em vídeo é a demonstração de que é um grande leitor. Todo grande leitor é ótimo indicador de livros, o que muito aprecio. Também faço indicações e doações de livros, pois sou professor de Língua Portuguesa e Francesa e Literatura Portuguesa.Parabéns.
Mota você me emocionou com essa reportagem, que revista cheia de gente maravilhosa
Concordo totalmente , Erasmo!
Texto muito inspirado. Parabéns
😌
Que maravilha de texto. Leio como se estivesse à mesa ao lado. Um descrição poética e real do seu amor pela sua família e da fugaz vida.
Belo!
Don Camillo ❤️
Emocionante seu texto, e sua memória da musica do filme e principalmente colocar o link me trouxe mais emoções, pois visitei a cidade onde foram filmadas as cenas, Savoca, perto de Taormina, onde a atração principal é o bar Vitelli e existe também uma homenagem ao diretor Coppola em forma de uma placa grande de sua silhueta com vista para as montanhas…nunca irei esquecer este texto em particular, mas leio todos seus aqui na Oeste obrigatoriamente, pois são sempre excelentes, obrigado
Motta nos trás um momento de exercício da fraternidade entre pessoas. Esse é o sentimento que a divisão da sociedade em grupos procura e consegue destruir. Não somos irmãos, somos adversários, o “nós contra eles” prevaleceu. No devaneio que me trás a narrativa da virtude dos corações despojados de sentimentos ruins, ali, comendo, bebendo, ouvindo boa música, sendo gente, aparece, na minha mente, a figura de um Inquisidor Geral. Nele, não há espaço para o amor, a fraternidade, o respeito. Ele prefere arruinar vidas, destruir famílias, deliciar-se na desgraça que impõe aos outros, colhidos por acaso entre os seus compatriotas. Um novo Torquemada, renascido dos dejetos do inferno. Nesse momento, agradeço a Deus por não termos alguém assim entre nós. Foi apenas um pesadelo em um cochilo momentâneo de um velho com pouca esperança.
A revista Oeste deveria permitir a edição dos comentários. Há erros de gramática no meu, que só percebi ao ler depois de publicar. Olá, Revista? Dá para implementar esse recurso?
sou da mesma opinião, tentamos não errar, mas as vezes passa algum erro desapercebido
Motta ,sinto muito pena de não residir mais na cidade onde nasci e residi por quase 30 anos ! Mas daqui de Brasília hoje faço um brinde a você e aos colaboradores da revista Oeste ! Muito obrigado por sempre escrever e falar muitas verdades no Pingo nos Is ! Os brasileiros e o Brasil precisam de sua coragem e autenticidade ! Selva !
Mota, ficou maravilhosa a sua crônica, uma escrita suave e fluida.
Senti como se estivesse presente no ambiente descrito.