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Barroso e o comunismo de almanaque | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 183

Comunismo de almanaque vs. comunismo real

Com ares de revelação, Barroso apresentou o verbete 'comunismo' no almanaque. E, de sua pretensa não correspondência com a realidade brasileira, concluiu por sua inexistência histórica

Flávio Gordon
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“A noção de que alguma vez pregáramos a revolução e a violência deveria ser ridicularizada como um espantalho, refutada como uma calúnia espalhada por reacionários maliciosos. Já não nos referíamos a nós mesmos como ‘bolcheviques’, nem mesmo como comunistas — e o uso público da palavra era agora reprovado dentro do partido. Éramos apenas honestos, humildes e pacíficos antifascistas, defensores da democracia.”
(Arthur Koestler, The God that Failed, 1949)

Há alguns dias, durante sessão do julgamento-espetáculo no qual um dos réus do 8 de janeiro era oferecido em sacrifício para aplacar a fúria vingativa dos “deuses da democracia”, Luís Roberto Barroso pediu a palavra para uma observação. E, como acontece sempre que o sábio iluminista se dispõe a civilizar os bárbaros, todos paramos para ouvir. A expectativa, por óbvio, era a de sermos brindados com algum insight fulgurante e surpreendente. Expectativa lamentavelmente frustrada, porque, em lugar da clarividente palavra do profeta, o que acabamos recebendo foi uma lição do Conselheiro Acácio.

Com um riso de canto de boca, no qual se misturavam deboche e contentamento no ato de tripudiar das supostas crendices do adversário político imolado, Barroso resolveu explicar, pausada e didaticamente, por que não há nem sinal de comunismo no Brasil contemporâneo. “Comunismo é um modo de organização política e econômica fundado na propriedade coletiva dos meios de produção, em uma economia planificada, na abolição da propriedade privada, e numa fase intermediária conhecida como ‘ditadura do proletariado’, que antecede a abolição final do Estado. Essa é a doutrina comunista baseada no pensamento de Friedrich Engels e Karl Marx” — pontificou o ministro. “No Brasil vigoram a livre-iniciativa, a economia de mercado, a meticulosa proteção da propriedade privada na Constituição e no Código Civil, e não existe vestígio de ditadura do proletariado. Não há vestígio de ditadura, porque nós temos eleições livres e periódicas a cada dois anos, e do proletariado muito menos. Talvez a Faria Lima tenha mais influência do que o proletariado de uma maneira geral.” E concluiu Barroso, aludindo à própria missão civilizatória: “Eu só faço esta observação porque a gente precisa restabelecer no Brasil, num processo importante de pacificação, o sentido mínimo das palavras, e enfrentar a incultura”. 

Ministro do STF Luís Roberto Barroso
Ministro do STF Luís Roberto Barroso | Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Não há como discordar da frase final. É preciso enfrentar a incultura. Sobretudo, talvez, a incultura dos cultos. E a tal ponto que me parece urgente lembrar uma lição que qualquer estudioso principiante de ciência política deve — ou deveria — saber: não se pode compreender a natureza de um movimento político com base apenas em sua definição dicionarizada, muito menos de seus slogans autopromocionais. Não se poderia, por exemplo, concluir que o PCC não existe porque, afinal, não há realmente “paz, justiça e liberdade” — o lema do grupo criminoso — nas regiões que domina.

Assim também, não se pode deduzir a existência ou inexistência concreta de um fenômeno complexo como o comunismo a partir de sua entrada na enciclopédia. E foi exatamente o que fez o magistrado. Com ares de revelação, Barroso nos apresentou o verbete “comunismo” no almanaque. E, de sua pretensa não correspondência com a realidade brasileira, concluiu cabalmente por sua inexistência histórica e material. 

Ora, em ciência política, a definição de almanaque deve ser o começo — e não a conclusão — da análise. Numa corrida de tipo maratona, Barroso estancou logo na linha de largada. Levando-se em conta apenas o seu sentido fixo e dicionarizado, seria impossível concluir pela existência de regimes comunistas em tempo ou em parte alguns, sequer mesmo na Rússia, onde, pela primeira vez, a doutrina marxista encarnou na história. Examinemos, pois, ponto por ponto, o comunismo em sua versão dicionarizada, tal como exposta pelo ministro do STF.

1.“Comunismo é um modo de organização política e econômica fundado na propriedade coletiva dos meios de produção”

Quando, ainda em termos exclusivamente doutrinais, se fala em propriedade coletiva dos meios de produção, obviamente se está subentendendo a necessidade prática de uma instituição que encarne essa coletividade abstrata — no caso, o Estado. O que se está afirmando, portanto, e o que reza o marxismo de almanaque, é a propriedade estatal dos meios de produção ou, em outras palavras, a estatização total da economia. 

Resta que, no marxismo das coisas — e não no das palavras —, a ideia de estatização total da economia sempre foi um objetivo de longuíssimo prazo, jamais concebido como uma meta política da ordem do dia, a ser realizada pontual e definitivamente. Ao contrário, o próprio Marx sempre a concebeu de maneira assintótica, a ser realizada mediante taxação progressiva do capital privado e, sobretudo, via controle político sobre o mercado. Ao nível do comércio internacional, por exemplo, Marx defendeu o livre mercado, uma vez que dele dependia a necessária internacionalização da revolução proletária. “O sistema da liberdade de comércio apressa a revolução social” — foram as palavras do pai fundador do comunismo na Associação Democrática de Bruxelas, em janeiro de 1848.

Karl Marx | Foto: Wikimedia Commons

Também Lenin, ao lançar a Nova Política Econômica (NEP), em 1921, tinha plena consciência da impossibilidade prática de uma completa estatização da economia. Aliás, o primeiro líder bolchevique — que, de acordo com o parâmetro de Barroso, tampouco poderia ser considerado um comunista — sempre desprezou as ortodoxias doutrinais e a rigidez ideológica. Para ele, o comunismo era basicamente uma técnica e uma práxis, não um conjunto constante de dogmas. Como escreveu Gorbachev sobre o pragmatismo leninista: “Lenin via que o socialismo iria se defrontar com problemas colossais, e que deveria resolver toda sorte de dificuldades que a revolução burguesa havia deixado sem solução. Daí sua utilização de métodos que não parecem intrinsecamente socialistas ou que, ao menos, se afastam em certa medida dos conceitos clássicos do desenvolvimento socialista, tal como geralmente aceitos (…) Lenin possuía o raro talento de sentir, no momento certo, a necessidade de mudanças profundas, de um reexame dos valores, de uma revisão das diretivas teóricas e dos slogans políticos”.

Lenin sabia que, para o exercício do poder político-militar — como já havia dito Napoleão Bonaparte —, todo partido precisa de três coisas fundamentais: dinheiro, dinheiro e dinheiro. Sabia também que o único sistema econômico no mundo a criar dinheiro era, obviamente, o capitalismo. Portanto, sendo impossível a estatização completa da economia, todo governo de tipo socialista precisa tolerar algum grau de economia de mercado, mesmo que de maneira disfarçada e clandestina. 

Foi o que já aconteceu já na URSS, com sua economia capitalista clandestina, e é o que acontece na China contemporânea, com seu capitalismo de Estado. Os principais líderes comunistas perceberam claramente que a economia é o terreno menos controlável de uma sociedade, e que, não podendo dispensar uma boa dose de liberdade nessa seara, era-lhes mais conveniente obter controle sobre tudo o mais: o Estado, a Justiça, a educação, a cultura e a vida privada. 

Sim, muito mais do que a economia, era a família que a Nomenklatura bolchevique queria manter sob a sua tutela. Como explica o historiador Orlando Figes em Sussurros: A Vida Privada na Rússia de Stalin: “A família era o primeiro campo de batalha dos bolcheviques. Nos anos 1920, eles tinham por artigo de fé que a ‘família burguesa’ era socialmente danosa: autocentrada e conservadora, era vista como um reduto de religião, superstição, ignorância e preconceito; estimularia o egoísmo e o consumismo, oprimindo mulheres e crianças. Os bolcheviques esperavam que a família desaparecesse à medida que a Rússia soviética se tornasse um sistema socialista pleno, no qual o Estado assumiria a responsabilidade por todas as funções domésticas básicas, fornecendo berçários, lavanderias e refeitórios em centros públicos e conjuntos habitacionais”.

Cartaz com a imagem de Vladimir Lenin | Foto: Reprodução
2. “Uma economia planificada”

Em 1920, Ludwig von Mises publicou o ensaio O Cálculo Econômico sob o Socialismo, onde demonstrava cabalmente que economia socialista era uma contradição em termos e uma impossibilidade lógica, sua existência tendo menos materialidade que a de um poltergeist. “O socialismo é a abolição da racionalidade econômica” — sentenciou Mises, sem jamais ter sido desmentido. 

Nesse sucinto e brilhante ensaio, o economista austríaco examinava as alegações centrais do marxismo, expondo o socialismo como um esquema que, ademais de utópico, era também ilógico, antieconômico e impraticável por natureza. Não fornecendo qualquer meio para se fazer um cálculo econômico objetivo, diz Mises, a economia socialista impede que os recursos sejam alocados em suas aplicações mais produtivas. “Na quimera de suas fantasias” — escreveu celebremente o autor —, “os socialistas invariavelmente discorrem sobre como pombos assados irão de alguma forma voar diretamente para dentro das bocas dos camaradas, mas se furtam de mostrar como esse milagre virá a ocorrer”.

Com efeito, sendo não apenas praticamente inviável como logicamente impossível, nunca houve economia socialista em regime comunista algum, a despeito do que verse a ortodoxia doutrinal. O que houve e ainda há nesse tipo de regime — que visa a um controle político e cultural, e não primordialmente econômico — é sempre uma economia de tipo fascista, em que a liberdade empresarial é uma concessão do Estado, e na qual os empreendedores estão sempre sob o tacão do partido dirigente, que os submete e chantageia politicamente mediante imposição de uma legislação draconiana.

3. “Abolição da propriedade privada”

Como escrevemos acima, a propriedade privada nunca foi inteiramente abolida nos regimes socialistas. Nos países da Cortina de Ferro, por exemplo, sempre houve um misto de economia estatal e privada. Mais ainda, nesses regimes fundados sob o pretexto de instaurar a sociedade sem classes, houve sempre uma estratificação de classe mais vigorosa do que em qualquer nação capitalista, aproximando-se, de fato, de um sistema de castas. 

Já em 1936, no livro A Crise da Democracia, demonstrava-o o austromarxista Otto Bauer, ao revelar o aparecimento de uma classe dominante e economicamente privilegiada na URSS, formada pela cúpula do partido comunista local. Coisa de 20 anos depois, também o fez Milovan Djilas no livro A Nova Classe (1957), descrevendo a oligarquia economicamente privilegiada composta dos membros do politburo do Partido Comunista Iugoslavo. E, ainda mais do que Bauer e Djilas, foi o advogado e dissidente soviético Konstantin Simis quem, no livro URSS: A Sociedade Corrupta — O Mundo Secreto do Capitalismo Soviético (1982), traçou o retrato definitivo da sociedade soviética de classes, na qual, via mercado negro e corrupção, os altos quadros do governo, do partido e do funcionalismo público (em suma, da Nomenklatura) tinham acesso a produtos importados, finos e exclusivos, enquanto o restante da população vivia na escassez das mercadorias locais.

Simis inicia o livro contando sobre uma visita feita a um casal de amigos, em que o marido pertencia à elite partidária. Chegando com sua mulher ao lar dos anfitriões importantes, para quem levaram um bolo comprado numa padaria de rua, recebeu da dona da casa uma resposta constrangida: “Ora, por que você fez isso? Não precisava se incomodar. Não comemos essas coisas da cidade, você sabe”.

Por óbvio, o sistema político vigente nesses regimes nunca foi uma ditadura “do proletariado”, mas uma ditadura da elite do partido comunista. Desde Karl Marx — que costumava escorraçar os proletários que iam ter consigo em seu escritório — até Vladimir Lenin

Ainda que fiel à regra de etiqueta segundo a qual não se chega à casa dos outros de mãos abanando, Simis sabia que, naquela casa, não se consumiam “coisas da cidade”, mas tão somente “coisas do Kremlin” — mercadorias adquiridas nas lojas privadas de acesso exclusivo da casta superior do partido comunista. Nas palavras do autor: “A elite dirigente não tinha apenas as suas lojas; tinha sua própria agência de ingressos para teatro, suas próprias livrarias (nas quais se achavam livros raros) e suas próprias farmácias (que vendiam remédios importados inexistentes nas farmácias ordinárias). Tudo isso permitia à elite dirigente gozar de vantagens materiais inacessíveis aos cidadãos comuns. Com efeito, qualquer coisa ligada aos governantes era exclusiva e separada”.

As coisas não foram diferentes em Cuba, a filial caribenha da URSS, onde Fidel Castro e seu entourage viveram sempre como paxás em meio a um povo miserável. Em seu livro de memórias, Juan Reinaldo Sánchez, ex-segurança de Castro, relata a vida luxuosa levada pelo ditador caribenho: “Em contradição com o que sempre disse, Fidel jamais renunciou ao conforto capitalista nem optou por viver em austeridade. Ao contrário, o seu modo de vida era o de um capitalista, sem nenhuma espécie de limite. Nunca acreditou que os seus discursos o obrigassem a levar a vida austera de todo revolucionário que se preze: nem ele nem Raúl jamais cumpriram os preceitos que pregavam aos seus compatriotas”.

Livro A Vida Secreta de Fidel, de Juan Reinaldo Sánchez | Foto: Divulgação

Observa-se um padrão similar na China contemporânea, onde os membros da elite comunista dirigente ficaram bilionários, quase todos se servindo de redes offshore para ocultar o próprio patrimônio, como revelou o escândalo dos Panama Papers. Eis, afinal, o único marxismo existente e historicamente observável: aquele por meio do qual a propriedade privada dos pobres é expropriada e entregue aos ricos — os mandatários do regime e seus amigos. Porque, ao contrário do que se passa nas democracias liberais capitalistas, nas quais há um certo sistema de freios e contrapesos entre os detentores do poder político e os detentores do poder econômico, nas ditaduras socialistas de economia fascista essas posições se confundem, estando o poder econômico indissociável do poder político. Como explicou há mais de duas décadas o professor Olavo de Carvalho, no socialismo, “quanto mais alta a posição de um indivíduo e de um grupo na hierarquia política, mais riqueza estará à sua inteira e direta mercê: não haverá classe mais rica do que os governantes”.

4. “Ditadura do proletariado”

Eis outra fórmula de almanaque — uma figura de linguagem — que nunca encontrou correspondência na realidade histórica dos regimes comunistas. Por óbvio, o sistema político vigente nesses regimes nunca foi uma ditadura “do proletariado”, mas uma ditadura da elite do partido comunista. Desde Karl Marx — que costumava escorraçar os proletários que iam ter consigo em seu escritório — até Vladimir Lenin — que não tardou em demonstrar a verdadeira natureza da ditadura aos proletários de Kronstadt e outros insubmissos, os quais, por terem se rebelado contra a centralização bolchevique do poder político, foram massacrados impiedosamente por ordem do líder bolchevique —, é notório o desprezo das lideranças comunistas pelo proletariado de carne e osso.

Mas, além da discrepância entre palavras e coisas ali onde ao menos havia um proletariado como classe revolucionária, a caracterização inequívoca do comunismo como “ditadura do proletariado” desconsidera os contextos comunistas nos quais os agentes revolucionários não eram os trabalhadores urbanos. Contextos como, por exemplo, o do comunismo na China, em que, como se sabe, a classe revolucionária era o campesinato (algo que, segundo o marxismo-leninismo ortodoxo, seria impensável). Ou, ainda, os regimes comunistas no continente africano, cuja base socioantropológica não era proletária ou mesmo campesina, mas tribal e pastoril. Em suma, deduzir a inexistência de comunismo da ausência de uma “ditadura do proletariado” equivale a concluir que nunca houve comunismo na China, na África e sequer mesmo na Rússia de Lenin, Trótski e Stalin. Eis uma bela conclusão… de almanaque.

Não se pode extrair uma unidade do movimento comunista internacional a partir de seu corpus ideológico. O comunismo não pode ser compreendido como uma doutrina unificada, pois a matriz marxista original já sofreu toda sorte de alterações e adaptações conforme os diferentes contextos histórico-culturais. Antes que ao nível doutrinal, a unidade do comunismo encontra-se no pertencimento a uma mesma cultura política

No século 19, o antropólogo britânico Edward B. Tylor, um dos pais da disciplina, definiu cultura como “um todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Logo, a cultura é um ambiente total, que envolve o indivíduo por todos os lados, conformando as suas dimensões cognitiva, psíquica, emocional, social, histórica e simbólica. Aplique-se esse entendimento ao campo da política, e teremos uma noção do que é uma cultura política.

Assim como a cultura em geral, uma cultura política não pode ser compreendida como um corpo doutrinal ao qual se adere de maneira consciente e plenamente voluntária, como quem apanhasse produtos na prateleira do supermercado. Não se trata de um objeto extrínseco situado no campo visual de um sujeito, mas, ao contrário, do próprio campo visual pelo qual o sujeito contempla todo e qualquer objeto. Eis por que noções tipicamente liberais como as de “escolha racional” ou “cálculo de interesses” sejam inadequadas para a compreensão de uma cultura política como a do comunismo, que se ergue sobre um complexo de valores, tradições, linguagem, simbolismos e representações compartilhados, que consolidam uma identidade coletiva, uma memória social e um fundamento para a ação prática. Sem recorrer a esse tipo de compreensão nuançada, fica difícil compreender a natureza do comunismo, bem como a sua longevidade e notável difusão geográfica. 

Como explica o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, referindo-se ao comunismo brasileiro em particular: 

“Muitos militantes tornaram-se comunistas por identificarem-se com a imagem de Luís Carlos Prestes, de Stalin ou da União Soviética, a ‘pátria do socialismo’; ou então pelo sentimento de afinidade com familiares comunistas (pais, avós, tios, irmãos); ou, ainda, seduzidos pela leitura de um romance proletário ou social, com seu desfile de heróis positivos e inimigos desprezíveis; ou atraídos pela satisfação simbólica de pertencer a uma forte comunidade de sentido — a ‘família’ comunista — que se imaginava na vanguarda da humanidade e do progresso social (…) Durante o período mais intenso, tornar-se comunista era adentrar um novo universo, verdadeiramente aderir a uma cultura, à qual não faltavam rituais de iniciação e um conjunto de normas, valores e linguagem próprios.”

LIvro Raising Reds: The Young Pioneers, Radical Summer Camps, and Communist Political Culture in the United States, de Paul C. Mishler | Foto: Divulgação

De modo análogo, o historiador Paul C. Mishler mostra como, nos Estados Unidos das décadas de 1920-1950, o partido comunista empenhou-se em formar instituições cujo objetivo era transmitir a sua visão de mundo às crianças, envolvê-las desde cedo num ambiente total para o desenvolvimento da personalidade. “O Movimento de Crianças Comunistas, como era chamado, incluía, junto com os Pioneiros [Jovens Pioneiros da América], programas extracurriculares; acampamentos de verão; e as seções ‘júnior’ de organizações lideradas pelos comunistas” — escreve o autor. “Entre os anos 1920 e 1950, os programas para as crianças do movimento comunista foram um importante fator no desenvolvimento de uma cultura política comunista nos Estados Unidos (…) Ademais, essas atividades ajudaram a fazer do partido comunista dos Estados Unidos um movimento de famílias.”

Ora, os atuais ocupantes do poder no país são todos pertencentes a essa cultura política, mesmo os que não se veem como comunistas. O que dirá então dos que assumem a identidade com orgulho, como é o caso, por exemplo, do ministro da Justiça e do próprio presidente da República? De fato, não se encontrará no Brasil — como jamais se encontrou em parte alguma — a materialização fiel do comunismo de almanaque, do comunismo de palavras no dicionário. Mas encontraremos aqui todo o simbolismo comunista, a prática política comunista e a consciência de uma pertença histórica. Encontraremos o punho erguido, o coro da Internacional Socialista, a ex-presidente comunista (que, aliás, indicou o Barroso para o STF) discursando entre dois banners de Marx e Lenin no 13º Congresso do PCdoB, o projeto do Foro de São Paulo de “recuperar na América Latina o que se perdeu no Leste Europeu”, a aliança com ditaduras comunistas no continente, a parceria com o Partido Comunista da China etc. Por fim, é no mínimo curioso que uma das garantias dadas pelo ministro Barroso para a inexistência do comunismo no país — para não falar da ausência de vestígio de ditadura, argumento com o qual os atuais presos políticos, censurados e exilados talvez não concordem — tenha sido logo a “meticulosa proteção da propriedade privada na Constituição e no Código Civil”. Ora, não nos parece que, na interpretação do próprio Barroso, e da maioria de seus pares, sequer mesmo esse direito elementar em regimes democráticos e não comunistas esteja assim tão meticulosamente protegido no Brasil de nossos dias, país em que — como só acontece em ambientes políticos socialistas ou cripto-socialistas — o proprietário privado pode sempre ser surpreendido por um “perdeu, mané!”.

Luís Roberto Barroso | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Leia também “O STF e a liberação das drogas”

24 comentários
  1. Clarice Baldotto
    Clarice Baldotto

    Parabéns Flavio!!! O “iluminado” acabou de ser apagado..

  2. Claudia Aguiar de Siqueira
    Claudia Aguiar de Siqueira

    Uma surra, Flávio. Excelente.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente análise. Brasília foi moldada para o comunismo, sendo construída no coração do Brasil como se sem ela não fosse possível ter vida. A casta dos privilegiados.

  4. José Ervolino Neto
    José Ervolino Neto

    Caraca… que aula! Valeu minha assinatura multiplicado por mil. Um gênio esse cara.

  5. MARIA DE LOURDES FERNANDES CAUDURO
    MARIA DE LOURDES FERNANDES CAUDURO

    Excelente analise Dr Gordon! Compartilhei muito! Parabéns! Pena que a maioria das pessoas não têm condições de compreender! Abs

  6. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Essa edição da. Revista oeste está sensacional. Queria poder compartilhar todos os artigos

  7. Leandro Prazeres Soares
    Leandro Prazeres Soares

    Excelente artigo.

  8. Route 66
    Route 66

    Espero e gostaria que o Barroso lesse o brilhante artigo… Até acho que leu, mas do alto de sua “cultura” não vai admitir.

  9. José Luiz Fernandes de Castro Lima
    José Luiz Fernandes de Castro Lima

    Excelente matéria. Parabéns. Boa parte do que li eu costumo falar para meus alunos, desmistificando posições de ativistas que lecionam nas escolas.

  10. MNJM
    MNJM

    Belíssimo texto, Arrasou com o iluministro que se acha o intelectual. Deu uma aula.
    O país está exatamente no caminho do comunismo, através do Consórcio Lula/STF.
    Muita hipocrisia de corja de togados.

  11. Enoch Bruder
    Enoch Bruder

    FLÁVIO GORDON agigantou-se na lavra deste inapelável e certeiro deslinde do que realmente é o ideário roto e rasgado comunista, despachando em grande estilo, com frete pago só de ida, o papinho ginasiano obtuso do narcisista iluministro que, inapelavelmente, MERDEU MANÉ, NÃO AMOLA!

  12. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Flávio Gordon , não escreveu um artigo e sim uma AULA .

  13. Carlos Eduardo F. Rezende
    Carlos Eduardo F. Rezende

    A cultura do iluministro é de almanaque mas a pose é de intelectual. Venci o Bolsonarismo, perdeu mane.

  14. Daniel BG
    Daniel BG

    Arthur Koestler bem exemplificou com a metáfora “espantalho”, porém suas palavras não foram praticadas e os espantalhos estão soltos. Estão nas escolas, no meio artístico, no tráfico de drogas, nas instituições, no STF e TSE, estão tomando as almas das pessoas.

  15. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    No meu ponto de vista esse barroso é o mais autêntico representante da organização política à qual pertence. É impressionante aonde o narcisismo exacerbado pode levar um indivíduo deslumbrado com a imagem que faz de si próprio. Na fala mansa, no jeitinho dos seus movimentos labiais, sempre vejo nele um indivíduo convicto de suas escolhas pessoais de sua forma de vida que acha serem as únicas corretas. Dessa famosa e ilustre boca, não sei o que come, não sei o que entra, mas sempre me parece sair um solene “perdeu, Mané”.

    1. Eládio Torret Rocha
      Eládio Torret Rocha

      O artigo do Flávio Gordon – ele sim, um intelectual – deu perfeita noção da patacoada judicante.

  16. NOS
    NOS

    Que paulada, Gordon! Esse ministro “se acha demais”. Parabéns.

  17. João Choucair Gomes
    João Choucair Gomes

    Mais uma brilhante aula do Gordon. Terminando de ler “Ideologias de massas e suas metamorfoses”. Muito bom. Sinto que de final de janeiro de 2023, quando o livro foi impresso, até hoje, as coisas pioraram bem . Estamos numa velocidade perigosa.

  18. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse Barroso pensa que a população brasileira é acéfala, uma retórica rasteira falando que a ditadura do proletariado antecede a abolição do estado, pelo contrário agiganta o estado. E um sujeito desse não tem credibilidade pra falar, disse que Venezuela é uma democracia igual ao Estados Unidos e ao Brasil depois diz que é uma ditadura de direita, e usa um termo, perdeu mané não amola, e diz que eleição não se ganha se toma. Esse STF nem pro lixo serve, nada se recicla

  19. Carlos Roberto De Zoppa
    Carlos Roberto De Zoppa

    O ministro Barroso, metido a intelectual, poderia não ter exposto a sua ignorância no plenário do supremo. Este artigo poderia ser envviado ao ministro, como cortesia do Gordon, para evitar a repetição do desconhecimento da história.

  20. Marcos Antonio
    Marcos Antonio

    Se o lema do PCC é: Paz, Justiça e Liberdade, eles devem mesmo comemorar a vitória de Lula. Hoje eles têm uma paz, uma justiça e estão livres.

  21. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Não amola

  22. Sergio Braga
    Sergio Braga

    Parabéns Flávio! Cirúrgico e esclarecedor como sempre. Esse artigo precisa ser propagado. Esses covardes caras de pau não se cansam de enfiar diariamente na boca dos ingênuos “pílulas azuis”. Mais uma vez parabéns pela poderosa PILULA VERMELHA! Grande abraço!

  23. jacqueline ribeiro tavares
    jacqueline ribeiro tavares

    Perfeito!!!

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