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Foto: Shutterstock
Edição 183

Ausência de jornalismo

A rebeldia latente da vocação repórter foi domesticada pelo professor militante; já não se quer ouvir todos os lados, basta o oficial

Alexandre Garcia
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Lá no meu início de jornalismo, há mais de meio século, estagiário no Jornal do Brasil, ainda que houvesse uma Lei de Segurança Nacional, aprendi que a vigilância ante os desvios da lei, da Constituição, dos valores éticos é uma constante em nossa vida de jornalista. Atentos às injustiças, aos desvios no serviço público, agíamos em defesa da sociedade, ainda que o Estado pudesse agir em defesa de si próprio. Millôr Fernandes disse que o jornalismo é crítica; o resto são secos e molhados. Meu primeiro chefe, Alberto Dines, no seu Observatório da Imprensa, dizia que jornalismo é investigativo, ou não é jornalismo. É press release — eu acrescentaria. Jornalismo é vigilância, crítica e rebeldia contra imposições do Estado, já que o Estado está a serviço da nação que o sustenta — e não o contrário.

Alberto Dines, em 1974 | Foto: Domínio Público

Senti isso recentemente, quando pedi investigação sobre as comportas de barragens do Rio das Antas, ante a surpreendente inundação do Vale do Taquari. Coleguinhas não se deram ao trabalho de ir ao site da empresa administradora das represas para ver as fotos das comportas. Simplesmente repetiram o que o governo federal dizia: que nem sequer havia comportas. E, no entanto, elas estão lá — lembrando Galileu diante da fogueira da inquisição. Eppur si muove!

Hoje, por razões de afinidade ideológica com o Estado — nem quero pensar em fisiologismo —, há um silêncio eloquente sobre tudo que é esfregado na cara do povo

O artigo de Deltan Dallagnol na Gazeta do Povo, no último dia 15, expondo dez questões sobre o julgamento de réus do 8 de janeiro, me faz perguntar como chegamos a este ponto. Como deixamos que questões ofensivas ao Estado de Direito, ao devido processo legal, à Constituição fossem aceitas como normais. Aí se incluem direitos individuais fundamentais: liberdade de expressão, manifestação sem anonimato, reunião sem armas, sigilo das comunicações, inviolabilidade do domicílio, mandato, juiz natural, iniciativa do Ministério Público, inércia e isenção do juiz, direito de defesa, ônus da prova, individualização da acusação, proporção das penas, vedação de censura e de tribunal de exceção — enfim, questões comezinhas, feijão-com-arroz da democracia, abandonadas sem protesto, sem reação, sem guardiões da cidadania, da liberdade, das leis, incluindo o enterro do combate à corrupção, representado pela Lava Jato.

Foto: Reprodução Gazeta do Povo

Hoje, por razões de afinidade ideológica com o Estado — nem quero pensar em fisiologismo —, há um silêncio eloquente sobre tudo que é esfregado na cara do povo. Ainda bem que há honrosas exceções e a bendita rede social para divulgar o deboche e o desprezo pela ordem que está inscrita na nossa bandeira. George Orwell, no seu 1984, a propósito da URSS, acaba sendo profético em relação ao Brasil, que a cada dia lembra mais a União Soviética. Talvez nem nos falte uma Sibéria, com nomes de Papuda e Colmeia. O voto equilibrado de Nunes Marques foi quase um segredo na mídia majoritária.

STF TSE Nunes Marques
Ministro Nunes Marques | Foto: Felipe Sampaio/SCO/STF

A ausência de jornalismo mostra como é essencial o jornalismo. Sem ele, todos perdem, inclusive os que agora se omitem. Sem ele, liberdades se vão junto com o devido processo legal, e lá vamos reproduzindo Orwell, Kafka, Gheorghiu. Uma nota oficial vale mais que o fato. O jornalismo virou burocrático, como tem insistido o professor Carlos Alberto Di Franco. A rebeldia latente da vocação repórter foi domesticada pelo professor militante; já não se quer ouvir todos os lados, basta o oficial. O Estado é para o nosso bem. Não deu certo na União Soviética, mas, afinal, agora vai dar certo, para o bem de todos. Lá do Shamayim, meu mestre Dines, se pode ver isso, está sofrendo no paraíso.

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8 comentários
  1. Danilo Amaral
    Danilo Amaral

    Sou jornalista. Ler isso me deu uma nostalgia do porquê, um dia, quis ser da imprensa. Não mais.

  2. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Alexandre, já pensou então se você faz um artigo sobre a transparência e auditoria das urnas eletrônicas, tão necessárias para o futuro político de nosso pais, e que, como todos sabemos foi a causa dos conflitos de 8 de janeiro que estranhamente o Executivo e o Judiciário transformaram em GOLPE?
    Estou com 78 anos e nunca vi as FFAA serem tão desrespeitadas pelo atual poder Executivo, pelo Judiciário e pelo carcomido CONSORCIO DA IMPRENSA, como fossem uns INÚTEIS que nos consomem elevados recursos sem nos oferecer qualquer contribuição. Pior ainda é existirem altas patentes que se acovardam e consentem essa crítica, esquecendo-se que estão levando a maioria da população democrática brasileira que respeita a Lei e a Ordem, a Família e os Costumes, a desacreditar de tão honrosa INSTITUIÇÃO de outrora.
    Esquecem que, quem nos conduziu a entender da INSEGURANÇA das urnas eletrônicas foram os Técnicos de Informação das FFAA e de especialistas privados que criaram as urnas eletrônicas e que sugeriram aperfeiçoamentos para evitar possíveis fraudes.
    Alexandre só em democracias como a nossa, pedir transparência nas urnas eletrônicas virou crime. Todos ouvimos várias vezes o presidente Bolsonaro dizer que passaria a faixa para o VENCEDOR desde que as urnas fossem transparentes e auditáveis.

  3. MNJM
    MNJM

    Alexandre perfeito! Assistir jornais na mídia militante é desinformação certa. O governo libertou muita grama com publicidade, óbvio, como não tem nada de bom para apresentar precisa da mídia comprada para falar bem do governo. É uma piada o esforço da turma militante para passar sempre uma boa imagem do governo. As vezes fica tão difícil , que um escorrega.

  4. Leila marta Vieira Lima
    Leila marta Vieira Lima

    Estamos sendo calados diante ao medo do que possa nos acontecer, diante dos nossos olhos a injustiça, a maldade, STF impera com os seus desmandos e desrespeito com a nossa constituição. Quem poderá nos salvar?

  5. DANILO ALVES CORREA FILHO
    DANILO ALVES CORREA FILHO

    Como assim rebeldia latente? A rebeldia do repórter não deveria ser explícita e óbvia?

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Vivemos num momento bizarro da nossa história onde se empurra goela abaixo as inverdades fabricadas pelo governo ladrão comunista terrorista genocida estelionatário fraudulento assassino crápula mentiroso, é como se estivéssemos vivendo há 200 anos atrás

  7. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Querido patrício. Já enviei alguma coisa pra ti e renovo o alerta. Todos falam de 3 barragens e escondem que existem 3 outras bem acima do Rio das Antas. Elas estão na Pedra Lisa, distrito de Cazuza Ferreira, São Francisco de Pala, divisa com Bom Jesus e Cambará do Sul. Por que a imprensa não fala delas que ali começou a enchente? Porque aquela represas estão funcionando com licenças ambientais compradas naquele escritório em São Paulo da amante do cara que foi preso pela lava-jato. O processo dela está engavetado há dez anos no STF em segred de justiça e ninguém sabe o destino ou o resultado do processo. Por esta razão o jornalismo regional é aquele criticado por ti. No fundo do sertão estão provas que a máfia não deseja aparecer.

  8. Pedro Hemrique
    Pedro Hemrique

    Análise perfeita! Impressionante o que as faculdades de comunicação com ideologia político partidária fizeram e continuam a fazer com os estudantes. Todos perdem não há crítica aos absurdos do governo de plantão!

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